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"Eleição nos EUA acabou bem, mas não o suficiente"

Stefan Dege
17 de novembro de 2020

Em entrevista à DW, filósofa americana Susan Neiman fala sobre as "táticas fascistas" de Trump e diz que, apesar da divisão que assola os EUA, movimentos como o Black Lives Matter ainda são motivo de esperança.

Pessoa vestida com a bandeira americana mexe em cerca cheia de cartazes
Protesto contra Trump: eleição evidenciou abismo social existente nos EUAFoto: Hannah McKay/REUTERS

Donald Trump perdeu, mas conseguiu um total de votos ainda maior do que há quatro anos, numa votação que deixou muitas questões em aberto, incluindo o estado da democracia dos Estados Unidos e a divisão da sociedade.

Em entrevista à DW, a filósofa e escritora americana Susan Neiman diz como ficou chocada ao ver como o republicano ainda consegue levar seus eleitores às urnas. "Não esperava que mais de 70 milhões de americanos que assistiram ao show de Trump por quatro anos quisessem assisti-lo novamente."

A intelectual reconhece que a democracia americana ainda está em perigo, mas vê luz no fim do túnel. "Muitos movimentos de base me dão esperança, especialmente Black Lives Matter, o maior movimento social da história dos Estados Unidos", afirma.

A especialista ressalta que são necessárias mudanças nos sistemas eleitoral e social dos EUA. "Por exemplo, como esta eleição mostrou, nosso sistema eleitoral tem 200 anos de idade. O Colégio Eleitoral deve ser abolido", afirma. "Reformas sociais são urgentemente necessárias, coisas que os europeus consideram normais, mas que soam utópicas aos ouvidos americanos."

Notável comentarista das relações germano-americanas, Neiman dirige a fundação alemã Einstein Forum, em Potsdam, uma organização que promove debates, intercâmbios e cursos fora do ambiente universitário.

Deutsche Welle: Na sua opinião, a eleição presidencial nos Estados Unidos terminou bem?

Susan Neiman: Não bem o suficiente. Não esperava que mais de 70 milhões de americanos que assistiram ao show de Trump por quatro anos quisessem assisti-lo novamente. Esses mais de 70 milhões de eleitores foram um choque para mim. A situação no Congresso também continua extremamente desafiadora. Este homem, a quem Obama chamou de fascista, quase conseguiu mais quatro anos; o mundo inteiro teria sofrido. Então acabou bem, mas não o suficiente.

Susan Neiman é diretora da fundação alemã Einstein ForumFoto: Karlheinz Schindler/dpa/picture alliance

Mais do que tudo, os resultados das eleições aprofundam a cisão no país, que também está sendo abalado por uma pandemia?

Sim, claro. A campanha eleitoral também foi extremamente difícil de ser realizada por causa da pandemia. Muitos democratas que normalmente vão às ruas e batem de porta em porta não saíram dessa vez. Os republicanos, por outro lado, não seguiram as regras de higiene. A distância entre democratas e republicanos aumentou.

Agora, duas metades da população se encaram de forma irreconciliável. O que foi deixado de lado?

Reformas fundamentais, receio eu. Várias reformas estão em jogo. Por exemplo, como esta eleição mostrou, nosso sistema eleitoral tem 200 anos de idade. O Colégio Eleitoral deve ser abolido. Políticos e advogados exigem isso há muito tempo. Mas, para que isso aconteça, seria necessária uma maioria de dois terços no Congresso, o que é completamente irreal.

Reformas sociais são urgentemente necessárias, coisas que os europeus consideram normais, mas que soam utópicas aos ouvidos americanos. Nem estou falando de seguro de saúde para todos. Nos Estados Unidos, não existe nem mesmo uma licença médica garantida. Mesmo durante a pandemia, as pessoas tiveram que trabalhar, apesar de estarem gravemente doentes. Elas não têm um dia de folga.

As pessoas mais pobres, sejam entregadores de encomendas ou funcionários de restaurantes, não conseguiriam pagar o aluguel sem trabalhar. Infelizmente, muitos americanos rejeitam qualquer coisa que soe como reforma ou direitos dos trabalhadores, chamando isso de "socialismo". No entanto, precisamos urgentemente de tais reformas. Nenhum país industrializado do mundo está em uma posição tão ruim quanto os Estados Unidos.

Sucesso de movimentos de base, como Black Lives Matter, é um bom sinal, segundo NeimanFoto: Maria Khrenova/TASS/dpa/picture alliance

Metade dos americanos se considera abandonada – pela globalização, pelo progresso e pela elite política do país. Isso é realmente o caso?

É um mito. As pessoas que vimos nos comícios de Trump pareciam pobres e sem educação, a maioria acima do peso e com dentes ruins – elas realmente foram esquecidas. Mas outros eleitores de Trump ganham um bom dinheiro e até têm educação universitária. Eles votaram em Trump porque possuem ações. Sob Trump, as coisas correram bem no mercado de ações.

A outra metade do eleitorado vê Trump como a encarnação do mal, e seus apoiadores, como negacionistas da realidade. Esta perspectiva é mais precisa?

Sim, com certeza. Posso ser acusada de estar enviesada, mas temos visto por cinco anos que Trump é incapaz de reconhecer valores ou normas. Isso ficou mais óbvio quando ele insultou os soldados americanos que morreram na Primeira Guerra Mundial. Na verdade, eu achava que isso iria quebrá-lo, politicamente falando. Depreciar esses soldados mortos como "otários" e "perdedores" é blasfêmia nos EUA. Mas isso apenas revela como ele vê o mundo: ele só se preocupa com seu autointeresse materialista. Ele nem mesmo entende que os humanos podem agir por outros motivos.

Pior ainda são suas táticas fascistas. Disseminar teorias da conspiração, demonizar a imprensa como "mídia mentirosa", usar o Judiciário como sua assessoria jurídica privada, demonizar todas as formas de cooperação, usar policiais contra pessoas que se manifestam pacificamente – todas essas são táticas fascistas. Sem mencionar que o homem chamou os nazistas de "gente muito boa". Se isso não é perverso, então não sei o que é.

A democracia está morrendo nos EUA?

Eu sou uma filósofa, não uma profeta, então só posso dizer que a democracia está em perigo. No entanto, os muitos movimentos de base me dão esperança, especialmente Black Lives Matter, o maior movimento social da história americana. Por causa disso, 75% dos americanos dizem hoje que o racismo sistêmico é um grande problema. Então as coisas estão se movendo. A questão é simplesmente o que podemos fazer a respeito desse sistema de votação antidemocrático – e ainda há muito a ser feito.

Discussão entre simpatizantes de Biden e Trump: dois lados que estão longe da reconciliaçãoFoto: Matthew Hatcher/Getty Images

As fendas ainda existem. De onde virá a reconciliação?

A pressão vinda de baixo já mudou muito na história americana – veja o movimento pelos direitos civis, o movimento das mulheres, o movimento LGBTQ+. A questão é se esses movimentos podem ser agrupados em um movimento nacional que discuta não apenas identidades, mas também valores. Muitos jovens veem como o neoliberalismo está destruindo seu futuro. Então, vejo esperança a médio prazo, mas a situação ainda é precária.

O populismo é galopante em muitos países. Também nos EUA?

Não, lá não. A própria palavra populismo é extremamente problemática porque é indefinível. Sejamos honestos, na Hungria ou na Polônia, isso é puro radicalismo de direita. O nacionalismo, ou melhor dizendo, o tribalismo sempre parece ser a solução mais fácil. É sempre mais fácil apontar para os outros quando há problemas – abaixo a migração, abaixo os estrangeiros e assim por diante.

Depois, existe a globalização, que, com razão, nos dá a sensação de que a democracia não está funcionando bem. Não sabemos quem detém o poder. Não são os chefes de Estado que controlam o mundo – muito poder está nas mãos de empresas multinacionais. Em todo o mundo, seja em Cingapura ou na América do Sul, há a mesma tendência contra o globalismo e pelas tradições próprias. Essa recolhida também é compreensível.

A democracia ainda é um modelo para o futuro?

Sim, mas apenas sob uma condição – e não sei se isso é algo realista: que coloquemos recursos suficientes na educação. Com isso, não me refiro apenas a escolas e universidades, mas principalmente à mídia pública gratuita. Isso é essencial para uma democracia. Caso contrário, podemos esquecer a democracia.

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