Mais liberalismo, menos imigrantes, maior consciência climática? Chanceler federal e aliados conservadores começam difíceis negociações com verdes e liberais para formar coalizão inédita na Alemanha.
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A Alemanha entra nesta quarta-feira (18/10) em território inexplorado com o início das negociações para o que deve ser a primeira coalizão da história entre conservadores (CDU e CSU), liberais (FDP) e verdes.
Apelidada de "Jamaica" devido à semelhança entre as cores dos partidos e a bandeira do país caribenho, não será fácil formar uma aliança estável, mas a Alemanha e a chanceler federal, Angela Merkel, não parecem ter outra opção viável.
Merkel disse que o acordo levará semanas de discussão, e é fácil saber por quê. O FDP, defensor da economia de livre mercado e do Estado mínimo, e os verdes, que tendem a assumir posições de esquerda em torno da regulação estatal e de questão sociais, são adversários históricos e terão de se unir. Na ala conservadora, Merkel deverá lidar com dissonâncias entre a sua legenda, a CDU, e o partido-irmão da Baviera, a mais à direita CSU.
O FDP e os verdes serão cautelosos em fazer demasiadas concessões, tradicionalmente uma armadilha para parceiros menores em coalizões. E a CSU, acostumada com maiorias absolutas na Baviera, ainda está sofrendo com os votos perdidos para a populista de direita Alternativa para a Alemanha (AfD) e não deverá querer mover-se muito para a esquerda.
As principais questões
Provavelmente, os partidos começarão concentrando-se em pontos consensuais: aperfeiçoar a educação e a infraestrutura digital no país, construir habitações mais acessíveis, melhorar a situação das famílias e manter o enfoque básico da política externa alemã, incluindo o papel central dentro da União Europeia (UE). A partir daí, não faltam divergências.
Como os partidos alemães se financiam
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Quanto aos estrangeiros, a CDU/CSU e o FDP apoiam restringir o número de migrantes acolhidos pela Alemanha, enquanto os verdes favorecem uma política mais receptiva, que inclui o direito dos familiares de refugiados de se juntarem a eles na Alemanha. Mas há um consenso crescente de que o país precisa de uma lei de imigração encorajando potenciais imigrantes que beneficiariam a economia alemã.
No caso da segurança doméstica, os conservadores – particularmente a CSU – querem expandir a vigilância estatal, mas os verdes e o FDP se opõem a mais monitoramento por parte do governo. Todos os partidos concordam em aumentar a força policial em cerca de 15 mil funcionários.
Nos impostos, os conservadores e o FDP defendem cortes de até 30 bilhões de euros (cerca de 112 bilhões de reais), afirmando que vão beneficiar todos os segmentos da sociedade. Os verdes favorecem a redução de impostos para alemães de menor renda e uma taxação maior dos mais ricos. O FDP apoia o equilíbrio orçamentário, enquanto outros partidos enfatizam a necessidade da flexibilidade financeira.
Os liberais querem acabar com a chamada taxa de solidariedade, um imposto suplementar especial que os alemães pagam para financiar o desenvolvimento econômico no antigo leste comunista, enquanto os verdes querem combater a desigualdade econômica.
Quanto à UE, todos os partidos são pró-europeus, mas o FDP gostaria que Berlim assumisse um curso mais linha-dura frente a Estados-membros que não atendem aos padrões básicos de estabilidade financeira. Não há grandes diferenças na política em relação ao Brexit.
E na área de meio ambiente, os verdes, sem dúvida, vão impulsionar uma agenda agressiva de proteção climática. Os demais partidos não se opõem necessariamente a iniciativas ambientalistas, embora principalmente o FDP tenda a insistir que nenhuma medida deva prejudicar a economia alemã.
O gabinete
Ao mesmo tempo em que os partidos tentam concordar sobre políticas comuns, eles também assumem posições divergentes no novo governo. É certo que Merkel continuará no cargo de chanceler federal. Depois disso, todos os cargos estão em disputa – teoricamente. Mas certas tendências surgiram antes mesmo do início das negociações.
O FDP parece estar particularmente interessado em comandar o Ministério das Finanças. O seu carismático presidente, Christian Lindner, que se autoqualifica como especialista em economia, guardou silêncio sobre se ele reservaria o cargo para si ou para um correligionário. Também há rumores de que os liberais assumiriam o controle do Ministério da Justiça, como também da pasta da Educação e Pesquisa, cujos poderes seriam expandidos para incluir a digitalização.
Enquanto isso, os verdes estão praticamente certos na pasta do Meio Ambiente. Eles também poderiam estar preparados para liderar o Ministério do Exterior, com seu copresidente Cem Özdemir, filho de imigrantes turcos e crítico do presidente Recep Tayyip Erdogan, sendo cotado para o cargo. Além disso, os verdes também deverão querer o Ministério da Cooperação e Desenvolvimento.
Outros ministérios, incluindo a pasta do Interior, da Defesa e da Economia, deverão ser controlados pelos conservadores. Mas tudo isso, é claro, desde que se chegue a um acordo.
E se tudo não funcionar?
A pressão sobre os partidos para que cheguem a um acordo e formem uma aliança é imensa. O Partido Social-Democrata (SPD) descartou continuar na grande coalizão que governou a Alemanha nos últimos quatro anos. Isso faz com que "Jamaica" seja a única constelação que possibilite a Angela Merkel uma maioria parlamentar sem envolver o partido A Esquerda ou a Alternativa para a Alemanha (AfD). Mas se as negociações fracassarem, o seguinte poderia acontecer.
Merkel poderia tentar formar um governo de minoria. Nesse caso, a chefe de governo teria que buscar os votos de outros partidos na base do caso a caso, ou ao menos persuadir alguns deputados da oposição a se abster para não derrubar iniciativas do governo. Isso só foi tentado em nível nacional na Alemanha em breves períodos de transição, de um governo para o próximo, e não como um arranjo destinado a durar um período legislativo completo de quatro anos. Com Merkel saindo do pior desempenho da CDU desde as primeiras eleições do pós-guerra, em 1949, um governo de minoria seria dificilmente estável.
Se tudo mais fracassar, Merkel poderia pedir ao presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, para dissolver o Parlamento e convocar novas eleições. Mas esse seria o pior cenário. Não há razões para acreditar que os principais partidos teriam um resultado melhor do que tiveram nas eleições de 24 de setembro – o único beneficiário dessa exibição de deficiência parlamentar seria a legenda populista AfD. Novas eleições recordariam o caos da República de Weimar e o desastroso fim da primeira democracia alemã.
Merkel também poderia, é claro, apelar ao SPD para que mude de posição sobre uma grande coalizão de governo. Mas como muitos membros culpam a parceria com os conservadores pelo declínio do partido nos últimos anos, tal apelo poderia não encontrar ouvidos entre os social-democratas.
A falta de alternativas viáveis significa que os partidos envolvidos nas negociações da coalizão "Jamaica" não têm alternativa, senão chegar a um acordo.
A história da eleição alemã
Após Segunda Guerra, Alemanha já realizou 18 pleitos para eleger um Parlamento nacional e, subsequentemente, um ou uma chanceler federal. Veja quem ganhou.
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1949: Adenauer vence eleições pós-guerra
A primeira eleição após a Segunda Guerra Mundial foi, sem dúvida, a mais importante na história da República Federal da Alemanha e, certamente, a mais apertada. Konrad Adenauer, candidato da União Democrata Cristã (CDU), tornou-se o primeiro chanceler federal da então Alemanha Ocidental pela margem de um voto – o seu próprio. Seu governo se mostraria muito estável. E muito popular.
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1953: Konrad Adenauer é reeleito
Se a primeira eleição da antiga Alemanha Ocidental foi dramática, a segunda foi arrebatadora. Sob a liderança de Konrad Adenauer, a CDU levou 45,2% dos votos contra 28,8% do Partido Social-Democrata (SPD). Graças à coalizão com três outros partidos, Adenauer desfrutou uma maioria de dois terços no Parlamento.
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1957: Adenauer ganha segunda reeleição
Na terceira eleição da Alemanha Ocidental pós-guerra, a CDU de Adenauer aliou-se ao partido conservador da Baviera, a União Social Cristã (CSU), para formar a CDU/CSU, aliança que muitas vezes é denominada de "União". Juntas, as duas legendas levaram mais de 50% dos votos. Adenauer tinha 81 anos quando iniciou seu terceiro mandato como chanceler federal.
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1961: Última vitória eleitoral de Adenauer
Aos 85 anos, Konrad Adenauer venceu sua última eleição, mas seu mandato não foi feliz. Seus críticos o acusaram de não responder adequadamente à construção do Muro de Berlim. Em 1963, ele renunciou a favor do seu vice e ministro da Economia, o político conservador Ludwig Erhard. Em 1961, o Parlamento alemão era composto somente por três bancadas: CDU/CSU, SPD e Partido Liberal Democrático (FDP).
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1965: Milagre econômico leva Erhard à vitória
Ludwig Erhard (dir.) conseguiu estender a série de vitórias eleitorais dos conservadores, embora isso viesse a acabar em breve. O ex-ministro da Economia ganhou pontos pela prosperidade da Alemanha Ocidental, mas não teve sucesso em política externa e renunciou no meio de seu mandato. Seu substituto, Kurt Georg Kiesinger, foi o único chanceler federal a nunca ter vencido eleição para o cargo.
Os anos 1960 foram um período em que as pessoas na Alemanha Ocidental, como em outras partes do mundo, passaram a questionar tradições e, no último ano da década, o prefeito da antiga Berlim Ocidental, Willy Brandt, se tornou o primeiro chanceler federal social-democrata. Na realidade, o SPD recebera menos votos que a União CDU/CSU, mas uma coalizão com os liberais do FDP lhe garantiu o poder.
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1972: Brandt vence, mas não por muito tempo
As eleições alemãs seguintes foram adiantadas um ano depois que Brandt foi afastado através de uma moção de confiança. Essa medida foi negativa para os conservadores. Pela primeira vez no pós-guerra, o SPD obteve mais votos que CDU/CSU nas eleições gerais. Mas um companheiro próximo de Brandt revelou-se espião da Alemanha Oriental, e Willy Brandt renunciou a favor de Helmut Schmidt.
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1976: Helmut Schmidt solidifica o poder
Helmut Schmidt, sucessor de Brandt, conseguiu manter-se à frente da Chancelaria Federal em 1976, apesar de o SPD ter obtido 6 pontos percentuais a menos que a União CDU/CSU. Graças ao parceiro de coalizão, o Partido Liberal Democrático (FDP), a balança pendeu a favor do SPD. Essa foi a primeira eleição na Alemanha Ocidental em que jovens de 18 anos puderam votar. Antes, a idade mínima era 21.
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1980: Schmidt é reeleito, mas parceiro se vai
A reeleição de Schmidt foi relativamente fácil, em parte porque, pela primeira vez, o candidato dos conservadores vinha da União Social Cristã (CSU). Schmidt, no entanto, não conseguiu apoio popular para o seu governo. Em 1982, o parceiro de coalizão FDP deixou o governo, aliando-se à União CDU/CSU para substituir Helmut Schmidt por um chanceler federal conservador.
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1983: Helmut Kohl dá início a longo reinado
Para ganhar legitimidade, o chanceler federal Helmut Kohl, da CDU, adiantou as eleições gerais para 1983. A jogada valeu a pena, pois os conservadores venceram os social-democratas por 48,8% contra 38,2% dos votos. Muitos esquerdistas consideravam Kohl uma figura grosseira demais para ficar muito tempo no poder. Mas estavam errados. Nesse pleito, os verdes entraram pela primeira vez no Parlamento.
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1987: Kohl se reelege em onda conservadora
Os anos 1980 foram conservadores, com Ronald Reagan nos EUA, Margaret Thatcher no Reino Unido e Kohl na Alemanha. E o político da CDU aproveitou a onda para se reeleger. Para Kohl, foi uma alegria ter aparecido junto a Reagan em seu famoso discurso "Sr. Gorbachev, derrube este muro". Mas poucos imaginavam que ele iria cair em breve e que aquelas seriam as últimas eleições da Alemanha Ocidental.
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1990: Kohl vence sob signo da Reunificação
Kohl (dir.) brindou a reunificação da Alemanha com o primeiro-ministro da Alemanha Oriental, Lothar de Maizière, em 3 de outubro de 1990, e dois meses depois, eleitores de todo o país foram convocados a votar em outra eleição antecipada. O clima era de euforia, e não havia quem vencesse o "chanceler da Reunificação". Kohl foi eleito para um terceiro período legislativo.
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1994: Triunfo final para Kohl
Em 1994, cinco anos depois da queda do Muro de Berlim, os primeiros problemas sociais causados pela Reunificação se tornaram visíveis. Mesmo assim, a reeleição de Kohl foi relativamente confortável. Isso se deveu em parte a um fraco adversário social-democrata, que ficou conhecido, entre outros, por tropeçar na diferença entre líquido e bruto na TV alemã.
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1998: Schröder inicia experiência de coalizão
Em 1998, os eleitores estavam cansados de Kohl, e o social-democrata Gerhard Schröder (esq.) soube se aproveitar disso. O SPD venceu a União CDU/CSU por 40,9% contra 35,1% dos votos e formou uma coalizão com o Partido Verde, liderado por Joschka Fischer (c.). Esta foi a primeira eleição em que o PDS (hoje A Esquerda), sucessor do antigo partido socialista alemão-oriental, entrou para o Parlamento.
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2002: Schröder vence reeleição após 11/9
Na eleição de 2002, SPD e a União CDU/CSU tiraram a mesma porcentagem de votos: 38,5%. Schröder conseguiu se reeleger por seu parceiro de coalizão, os Verdes, ser mais forte que o FDP. Uma das tarefas mais árduas de Schröder foi lidar com George W. Bush. Depois do 11 de setembro, o chanceler federal proclamou "solidariedade ilimitada" com os EUA, mas a Alemanha não apoiou a Guerra do Iraque.
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2005: Início da era Merkel
Em 2005, Angela Merkel tornou-se a primeira mulher a governar a Alemanha, após Schröder, que em meio a críticas por seus programas de austeridade econômica, antecipou mais uma eleição. A política da antiga Alemanha Oriental ganhou por pouco. A vantagem dos conservadores sobre o SPD foi inferior a 1% e, em seu primeiro mandato, Merkel passou a chefiar uma "grande coalizão" com o principal rival.
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2009: Merkel realiza "coalizão dos sonhos"
O resultado do segundo pleito parlamentar de Merkel foi muito mais claro que o primeiro. Enquanto o apoio ao SPD despencava, os liberais do FDP, liderados por Guido Westerwelle, ganhavam votos. Como resultado, os conservadores foram capazes de formar uma coalizão com seus parceiros prediletos. Para a centrista Merkel, essa coalizão parecia ter saído de um sonho.
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2013: Merkel comemora terceiro mandato
Em 2013, Merkel estava consolidada como a política mais popular da Alemanha, e os conservadores terminaram à frente do SPD nas eleições. Mas como os liberais não conseguiram alcançar o limite de 5% dos votos para entrar no Parlamento, a chanceler federal reeleita teve que formar outra grande coalizão. Isso não impediu "Angie", como é conhecida carinhosamente hoje em dia, de saborear uma cerveja.
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2017: Ascensão dos populistas de direita
CDU/CSU e SPD foram os partidos mais votados, mas tiveram seu pior resultado desde o pós-guerra. Enquanto os liberais voltaram a ser representados no Bundestag, a grande vitória foi da legenda populista Alternativa para a Alemanha (AfD) – pela primeira vez desde a 2ª Guerra, um partido nacionalista está representado no Parlamento alemão.