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Entre a memória e o voyeurismo

Soraia Vilela9 de setembro de 2003

Comemorando o centenário de Theodor W. Adorno são lançadas quatro biografias do "pensador da distância". Ironia do destino frente àquele que via neste gênero literário uma traição à "perda da vivência".

Theodor W. Adorno (dir.) ao lado do escritor Heinrich BöllFoto: dpa

O professor Axel Honneth, ex-assistente de Jürgen Habermas e atual diretor do Instituto de Pesquisa Social - sede do que ficou conhecido como Escola de Frankfurt - resume ao diário Frankfurter Allgemeine Zeitung: "Preferimos nos afundar na vida de Adorno talvez porque sua obra nos seja demasiado complexa".

Por essas e provavelmente por outras, o centenário de um dos pensadores que mais marcaram o século 20 é celebrado com uma dose quase excessiva de biografias. Uma espécie de "olhar desavergonhado pelo buraco da fechadura", como define o diário Neue Zürcher Zeitung.

Projeto obsoleto -

Estas biografias, para o biografado em questão, pertencem a um gênero literário abominável, onde a própria vida se transforma em ideologia, enquanto "se demonstra, através de modelos quaisquer, que ainda há algo como uma vida" (carta de Adorno a Leo Löwenthal, 1942).

E é parafraseando o próprio Adorno que um de seus biógrafos - o sociólogo Detlef Claussen, autor de Theodor W. Adorno. Um Último Gênio - conclui: "Quando se pergunta (como Adorno o fez), se ainda se pode viver depois de Auschwitz, então falar da história de uma vida individual, de uma biografia, parece obsoleto".

Ursinho -

Obsoletos ou não, os relatos sobre a infância "fabulosa" de Adorno, os primeiros contatos com o anti-semitismo na escola, suas incontáveis aventuras amorosas, sua excessiva ambição intelectual e seu desprezo pelo jazz pululam pelas prateleiras alemãs por ocasião de seu centenário.

Fala-se de tudo, desde seus apelidos em família - entre estes o lendário Teddie (ursinho) ou Wildsau (javali) - a suas amargas incursões frente à Alemanha por ocasião do fim da Segunda Guerra Mundial: "Chegou a hora de ver aquilo que se esperou por anos a fio. O país transformado em lixo, milhões de Hansjürgens e Utes (N. da R. nomes alemães comuns) mortos. Um povo de pescoço quebrado, que se despede da história mundial como os cartagineses após as Segundas Guerras Púnicas".

Infância perfeita - Procurando alinhavar vida e obra daquele que acreditava "não existir continuidade entre teoria e prática", as biografias de Adorno oscilam entre a busca da infância perdida (Reinhard Pabst em Theodor W. Adorno. Infância em Amorbach, um volume recheado de imagens) e as incursões de Lorenz Jäger em Adorno. Uma biografia política. Entre um extremo e outro, o calhamaço ortodoxo Adorno. Uma Biografia, com 1032 páginas, de autoria do professor de sociologia Stefan Müller-Doohm, de Oldenburg, ex-aluno de Adorno.

Alguns episódios da vida do pensador são dissecados à exaustão, entre eles o "ataque dos peitos" das três estudantes a 22 de abril de 1969, que na rebarba dos protestos de 68 abordaram Adorno de blusas abertas, com o objetivo de confrontar o autor de Teoria Crítica com sua postura "conservadora" frente às reivindicações dos jovens de então.

Selo em comemoração aos 100 anos de AdornoFoto: AP

"Pessoa abominável" -

Entre os "relatos periféricos" estão presentes nas biografias as relações entre Adorno e Siegfried Kracauer, Thomas Mann ou Hanns Eisler e as opiniões nada amáveis sobre ele vindas de, por exemplo, Hannah Arendt ("Este homem não entra na minha casa. Ele é uma das pessoas mais abomináveis que conheço").

Filosofia noir -

O biógrafo Lorenz Jäger permeia suas "histórias" sobre Adorno com os contornos políticos da Europa na primeira metade do século 20, delineando os horizontes marcados na época pelo marxismo, pela psicanálise e, last but not least, pela música de Arnold Schönberg.

"A esfera política, com todas suas contradições, ocupa o centro do livro, por tornar mais fácil o acesso à vida e obra do pensador. O estilo de Jäger, seu olhar para o essencial no detalhe, faz milagres: um livro filosófico, mas interessante como um romance policial", registra crítica publicada no Süddeutsche Zeitung.

Outro ponto em comum entre as recém-lançadas biografias de Adorno é a atenção especial dada às modificações de seu nome, que passou no fim dos anos 30 de Wiesengrund - o sobrenome judeu do pai, um comerciante de vinhos de Frankfurt - a W. Adorno - a opção pela ascendência corsa da mãe católica (família Cavelli-Adorno della Piana).

Voyeurs involuntários -

E, como se os quatro volumes biográficos não bastassem, o leitor se vê por ocasião do centenário de Adorno ainda confrontado com a publicação das Cartas aos Pais. 1939-1951. Estas contêm ao lado de registros da vida de um emigrante, um amontoado de comentários inusitados ("Walter Benjamin, a pessoa mais estranha que conheço") ou observações sarcásticas sobre parentes malquistos.

Thomas Macho, professor de história da cultura na Universidade Humboldt de Berlim, observa em texto publicado pelo diário Frankfurter Rundschau a condição de "voyeur involuntário" a que o leitor é submetido: "Após a leitura destas cartas, os sentimentos do leitor permanecem ambivalentes. Será que ele queria mesmo saber tudo o que lhe foi dito aqui? Será que ele queria ser realmente testemunha dessa forma de comunicação privada, desprotegida e de estilo completamente distante do grande filósofo e esteta? Será que é necessário elucidar, por ocasião de um centenário, também os lados mais infantis e extremos de uma personalidade indubitavelmente significativa?". O próprio Adorno, se vivo, certamente diria que não.

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