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Escritores fora de lugar

Simone de Mello30 de novembro de 2005

O escritor no escritório industrial, vozes de mortos via fax, terrorismo na literatura, carnaval aos pés dos Alpes e outros deslocamentos. Confira alguns livros de destaque recém-publicados na Alemanha.

'Quando um livro e uma cabeça dão de encontro e o som é oco, será que a culpa é do livro?' Georg Christoph LichtenbergFoto: AP
'Gold im Mund', de Anne Weber. Frankfurt: Suhrkamp, 2005

O mais recente livro da contista e romancista Anne Weber (Offenbach, 1964), Gold im Mund (Ouro na Boca. Frankfurt: Suhrkamp, 2005; 127p.), contrapõe a atividade do escritor autônomo ao trabalho de um funcionário.

Enquanto o texto Liebe Vögel (Caros Pássaros), escrito enquanto a autora ainda trabalhava em um escritório, retrata a frustração de quem é obrigado a trabalhar com horários fixos e confinado em espaços inóspitos, a narrativa Gold im Mund é resultado de um auto-experimento da escritora.

Escritor e escriturário

Como escritora em residência da cidade suíça de Biel, Anne Weber pediu para trabalhar dentro de um escritório de empresa e conseguiu uma mesa na seção odontológica do conglomerado Cendres e Métaux.

Anne WeberFoto: dpa

"Talvez eu venha a descobrir em breve as razões e a finalidade das contínuas atividades à minha volta; até isso acontecer, contento-me em poder nadar na superfície desta estranheza, espreitando os sons destes ofícios, sem ser notada ou incomodada", anota Weber.

Numa narrativa tecida a partir de observações esporádicas e desprovida de enredo fictício, Anne Weber tece uma crítica sutil da deturpação do trabalho pelo capitalismo. "Um pouco de metafísica, uma pitada de crítica ao capitalismo, algo de sátira e uma colher de reflexão sobre o ato de escrever" (Frankfurter Allgemeine Zeitung).

In memoriam

A poeta austríaca Friederike Mayröcker (Viena, 1924) publicou seu segundo livro em memória do falecido poeta Ernst Jandl, com quem ela viveu 50 anos.

'Und ich schüttelte einen Liebling', de Friederike Mayröcker. Frankfurt: Suhrkamp, 2005

Em Und ich schüttelte einen Liebling (E sacudi um querido. Frankfurt: Suhrkamp, 2005; 238p.), Mayröcker reúne imagens, recordações, expressões e vivências comuns, ampliando com maior casualidade a memória do parceiro registrada nos poemas de Requiem für Ernst Jandl, publicado em 2001.

"E sempre que soa o sino do fax, acredito e espero que seja você, e que você me dê notícias de seu mundo. Que emocionante seria ouvir sua voz, você me dizer como está, o que está fazendo, se está ouvindo música, ou qual fogo você está atravessando, ou seja, de um fogo para outro, e se você ainda pensa em mim."

Friederike MayröckerFoto: AP

O mais recente livro de Mayröcker não é apenas um testemunho poético da ausência, mas também um documento de uma das parcerias poéticas mais interessantes da literatura de vanguarda do pós-guerra e do Grupo de Viena.

"Uma prova viva de que existe uma terceira alternativa entre a literatura experimental e o retorno ao realismo: uma literatura que se deriva da linguagem e por ela se deixa inspirar, sem esquecer da existência" (Süddeutsche Zeitung).

Literatura e terrorismo

'Spiele', de Ulrike Draesner. Munique: Luchterhand, 2005

Em seu romance Spiele (Jogos. Munique: Luchterhand, 2005; 494p.), a poeta e prosadora alemã Ulrike Draesner elegeu terrorismo como tema literário. Neste livro, a autora insere a história familiar de uma mulher em crise no contexto do drama dos reféns do atentado terrorista das Olimpíadas de 1972, em Munique.

A autora narra os precedentes do 11 de setembro e retorna ao ato de terror que marcou os Jogos Olímpicos de Munique, cometido por terroristas árabes, que tomaram com reféns esportistas israelenses, e encerrado por uma intervenção policial que culminou com a morte de todos. A protagonista do romance se ocupa com o fenômeno do terrorismo e encontra pistas interessantes em suas pesquisas.

Ulrike DraesnerFoto: dpa

A iniciativa de abordar o terrorismo como tema literário também partiu de outros escritores nos últimos anos, como os americanos Jonathan Safran Foer, Paul Auster, Pnina Moed Kass e o alemão Michael Lüders. No caso do romance de Draesner, a crítica lamentou que o "ambicioso discurso histórico-filosófico" da autora seja "perfurado de maneira forçada com a realidade cotidiana" (Frankfurter Allgemeine Zeitung).

Prodígio da excentricidade

Em seu mais recente livro Das Fest der Steine oder die Wunderkammer der Exzentrik (A Festa das Pedras ou o Prodígio da Excentricidade. Viena: Paul Zsolnay Verlag, 2005; 644p.), o romancista e poeta austríaco Franzobel escolheu o gênero do romance picaresco para enfocar as rupturas históricas do século 20 sob a perspectiva do humor e do absurdo.

O protagonista Oswald Wuthenau, um impostor desesperado por sua falta de raízes, parte em meados da década de 50 para a América do Sul, onde conhece nazistas refugiados na região, participa de rituais orgiásticos, sobrevive a um apedrejamento, se casa e constrói a primeira usina nuclear da Argentina. Ao retornar para a Europa, este admirador de Hitler é condecorado com a medalha Brecht na Alemanha Oriental e prossegue suas aventuras em Viena.

Continue lendo a resenha do último romance de Franzobel >>>

'Das Fest der Steine oder die Wunderkammer der Exzentrik', de Franzobel. Viena: Paul Zsolnay Verlag, 2005

A trajetória de Wuthenau é narrada por Danny Milchmann, um judeu anão, funcionário do serviço secreto israelense e especialista em técnicas de hipnose. Seu interlocutor, ao mesmo tempo seu prisioneiro, é um neonazista hermafrodita.

Ao longo de quase 650 páginas, Franzobel caricatura o pós-guerra, transformando os pivôs da consciência histórica européia em um bestiário. Nesta compilação de excentricidades, a América do Sul não parece particularmente exótica.

FranzobelFoto: dpa

A técnica carnavalizante de Franzobel (pseudônimo de Stefan Griebl [1967], formado a partir do placar de um jogo de futebol entre a França e a Bélgica: Fran 2x0 Bel) não diferencia entre gregos e troianos, absorvendo sem hierarquia todos os repertórios e referências – da escrita indecifrada do Disco de Phaistos, descoberto em Creta e datado de 1700 a.C. até o código pidgin dos dialetos vienenses.

"Pois é. Quem for buscar sentido e significado neste romance está perdido", lamentou a crítica alemã, que – por um lado – qualificou o livro como um epos histórico-psicológico, mas não deixou de condenar a ilegibilidade da narrativa, a falta de estrutura e ordem e o enredo abstruso.

Leia abaixo um trecho do capítulo "Sábado de Páscoa, 1963: no qual uma processão a Iemanjá imerge na tempestade".

Madlen, a mulher do soluço, se tornou uma sacerdotisa daquela religião de umbanda, conforme ela mesma decidido no dia da orgia em Olavarría. Ela acabava de passar um ramo de aloendro na testa do travesti Lorena, o adorador ou a adoradora de Iemanjá que trazia no pescoço uma grande estrela de Davi prateada.

– Desate-nos todos os nós, Iemanjá, desfaça todos os entraves, nos leve até o arco-íris. Oh, Dona Guilhermina, me faça cavaleiro, como meu pai. [...] Ela não estava completamente vestida, seus longos cabelos ruivos brilhavam como brasa na cinza branca. Madlen estava feliz, em unidade consigo mesma.

Enquanto o cristianismo enxerga o diabo como algo lascivo e erótico, os umbandistas declaram como princípio negativo tudo o que consideram demoníaco, os instintos mais baixos, o poder, o cálculo, a sede de dinheiro. A força vital refreada, os bloqueios e o medo da vida. Aquilo que se atrofiou, não foi vivido, aquilo que corrói o estômago, o entravamento e tudo de destrutivo. É isso que eles combatem, este impedimento pelo medo, o endurecimento. Foi por isso que se libertaram do cristianismo e de todas as outras grandes religiões, adorando deuses que aparentemente se assemelham a santos católicos, mas cujos nomes e significado provêm de outro lugar, da África. [...]

Os umbandistas, que endeusam cachoeiras e acreditam na criação, querem a beleza, a transposição de limites. O que eles querem é o milagre, o domínio de seu mundo – assim como acrobatas chineses que plantam bananeira em cima de sete cadeiras empilhadas e cambaleantes e ainda por cima equilibram em todos os membros uma pilha de pratos na ponta de um bastão, à margem de qualquer equilíbrio. É assim que os umbandistas querem ser, é até aí que Madlen os quer conduzir.

Jamais tantas pessoas haviam viajado a Montevidéu só por causa de Iemanjá. Toda a mágica cidade de Buenos Aires tinha embarcado em ferries rumo ao Uruguai, misturando bebidas esquisitas, fumando haxixe e cantando: "Eu vou pintar você, vou mandar pintar, vou pintar você de amarelo, de vermelho, vou mandar pintar e repousar por você". E todos estavam felizes. Assim como os indianos do Ganges entram no mar, eles querem estar perto de sua deusa. Iemanjá, onde tudo começou a fluir, onde tudo cantava.

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