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Estupros em abrigos mostram que tragédia não é só climática

Nina Lemos
Nina Lemos
14 de maio de 2024

Além das chuvas, também o machismo castiga as vítimas no Rio Grande do Sul: depois de "perderem tudo", mulheres e crianças ainda correm risco de serem estupradas em abrigos.

Tragédias como as enchentes no Rio Grande do Sul deixam mulheres e crianças extremamente vulneráveis à violência sexualFoto: Wesley Santos/AP Photo/picture alliance

"A mudança climática não tem gênero neutro. As mulheres e as crianças vão sofrer os maiores impactos e estarão expostas a riscos que irão afetar sua sobrevivência, saúde e segurança."

Esse trecho faz parte de um relatório sobre o impacto das mudanças climáticas na vida das mulheres e foi publicado pela ONU Mulheres em 2022, mas parece ter sido escrito especialmente sobre a tragédia que há duas semanas assola o Rio Grande do Sul.

O estado sofre uma das maiores catástrofes climáticas já vistas no país. Até esta segunda-feira (13/05), 147 pessoas tinham morrido, 127 estavam desaparecidas, mais de 800 estavam feridas e mais de 500 mil, desalojadas. Mais de 80 mil pessoas estavam em abrigos.

Obviamente, todo morto, desabrigado e atingido de alguma forma pela enchente é vítima, independentemente de gênero e orientação sexual, mas mulheres sofrem traumas particulares e enfrentam riscos maiores. Falo, claro, dos inacreditáveis casos de violência sexual registrados em abrigos durante a tragédia.

Quando os desabrigados começaram a ir para abrigos, logo apareceram as denúncias: mulheres e crianças estariam sofrendo violência sexual nesses locais de socorro.

Até sexta-feira passada, oito pessoas haviam sido presas por estupros em abrigos, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul. Mas as denúncias mostram que o número real de assédios praticados é muito maior.

O risco de violência sexual fez com que abrigos só para mulheres e crianças se tornassem uma urgência. Alguns já foram montados, a toque de caixa, pelo governo e entidades feministas e humanitárias. Entre os que ajudam nesses abrigos estão muitas mulheres, que conseguem imaginar o que as vítimas no Rio Grande do Sul estão passando.

Não estou dizendo, claro, que homens não se revoltem com essa situação. Neste domingo no Rio de Janeiro, o motorista de táxi com quem conversei, pai de duas meninas, estava indignado. "Eu tenho duas filhas, uma de 7 e uma de 10, quando vejo essas coisas fico desesperado pensando nelas", disse.

Violência sexual após Katrina

A violência sexual ligada a eventos climáticos não é um problema que atinge apenas o Brasil. Um estudo feito pelo Centro de Combate à Violência Sexual da Lousiana e o Centro Nacional de Recursos contra a Violência Doméstica dos EUA concluiu que, após o Furacão Katrina, em 2005, uma epidemia de abusos sexuais contra mulheres e crianças foi registrada em abrigos. Esse tipo de situação deixa as mulheres extremamente vulneráveis a essa violência, o que também já foi alertado pela ONU.

Precisamos nos preparar, já que as tragédias climáticas só vão aumentar.

Não falo isso por pessimismo, mas baseada em fatos. Em entrevista à DW, o climatologista Carlos Nobre afirmou que eventos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes devido ao aquecimento global. "Não tem mais volta", destacou. Ele disse ainda que as cidades brasileiras precisam se adaptar urgentemente, o que significa, entre outras coisas, tirar 3 milhões de pessoas de áreas de risco.

Difícil imaginar que isso vá acontecer. Mas os governos (federal, estaduais e municipais) precisam se preparar também para combater esse tipo de violência em tragédias climáticas.

Não acho que tenhamos tempo para mudar o mundo machista em que vivemos, onde meninas e mulheres estão sujeitas a todo tipo de violência. Além das chuvas, o machismo castiga e faz com que mulheres e suas filhas corram riscos até depois de "perderem tudo". Difícil imaginar algo pior do que perder sua casa, seus pertences, sua memória. Pior que isso só ser uma mulher que, além de perder tudo, inclusive pessoas queridas, ainda sofre violência sexual. Quantos traumas uma mulher vítima dessas tragédias sobrepostas pode aguentar?

Quanto aos homens abusadores e estupradores de mulheres e crianças (o horror) em extrema vulnerabilidade, eles não são selvagens que "não conseguem se controlar". São homens, mesmo, frutos de um machismo estrutural que transforma corpos de mulheres em coisas.

Em outros tipos de tragédias, o risco de violência sexual também aumenta. Em guerras, por exemplo, o estupro é usado como arma. É "banal" que mulheres que pertencem ao país do "inimigo" sejam violentadas. O quanto é perverso isso?

No caso das tragédias climáticas, mulheres não precisam se defender só da violência sexual. De acordo com esse relatório da ONU, a estrutura corporal das mulheres também torna mais difícil que elas sobrevivam a tragédias climáticas. E, claro, mulheres não cuidam só de si mesmas. Na maioria dos casos, o trabalho de cuidados, seja de crianças, seja de idosos e doentes da família, aumenta e muito a pressão.

No Brasil, 50,8% dos lares são chefiados por mulheres. Agora, imagine isso: uma mulher perde tudo, precisa cuidar dos filhos, arrumar roupa, comida e água potável para si e para seus filhos e ainda precisa cuidar para que suas filhas (e ela mesma) não sejam estupradas. É o fim.

Bom seria, claro, se o comportamento desses homens abusadores mudasse. Mas não tenho esperança de que isso aconteça com a rapidez que o problema requer. Melhor mesmo é fazer abrigos para as mulheres ficarem em segurança com seus filhos.

É inacreditável. Mas, infelizmente, ainda é assim que é.

Se você é homem e acha um absurdo o que está acontecendo, ajude a proteger essas mulheres.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000. Desde 2015, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão em Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada.

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