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Letras

Simone de Mello8 de janeiro de 2007

O círilico passa a ser o 3° alfabeto da União Européia, ao lado do latino e do grego. Adoção da escrita original eslava interfere na percepção do que é europeu e põe em evidência o tênue limite entre Oriente e Ocidente.

Elias Canetti: ''O fato de existirem línguas 'diferentes' é a coisa mais sinistra do mundo''Foto: picture-Alliance/dpa

A escrita é algo que define identidade de modo até subliminar. Movimentar-se por espaços urbanos, por exemplo, sinalizados num alfabeto diferente do conhecido, é um sinal imediato de estranheza. Mesmo que não se entenda o idioma, quando se conhece o alfabeto, resta pelo menos a sensação do legível.

Com o ingresso da Bulgária, a União Européia passa a ter um terceiro alfabeto, ao lado do latino e do grego. O cirílico não apenas sempre foi o alfabeto búlgaro, como foi inventado na Bulgária. Quando o país passar a fazer parte da união monetária, sua moeda será o EWRO.

Babel na escrita eslava

Em vez de celebrar esta contribuição à pluralidade lingüística, as autoridades em Bruxelas parecem estar mais preocupadas com a "romanização" do búlgaro. Afinal, há inúmeras chaves de transliteração do cirílico para o latino e nenhuma reconhecida oficialmente como norma. A capital búlgara pode ser grafada como Sofia, Sofija ou Sofiya.

Em algum momento, toda a sinalização urbana da Bulgária deverá ser feita nos dois alfabetos, de acordo com uma norma única. Autoridades búlgaras temem que isso possa demorar bem mais que o esperado. Afinal, a sinalização do país é deficitária até em cirílico.

Para um estrangeiro não eslavo, o búlgaro – assim como o sérvio, a outra língua do Leste europeu a adotar o alfabeto cirílico – parece ainda mais confuso, por adotar como letra de forma as variantes da escrita cursiva, muitas vezes totalmente diferentes. Além disso, as minúsculas do alfabeto cirílico mais comuns na Bulgária e nos Bálcãs são diferentes, em parte, das adotadas em outros países eslavos.

Caminhos que saem de Roma

Reintegrar o cirílico como alfabeto "europeu" implica, na percepção cultural do Oeste do continente, romper com os limites interiorizados entre Oriente e Ocidente europeus. Se na memória histórica mais recente, o cirílico é a marca registrada russa num continente dividido durante décadas pela Cortina de Ferro, numa memória de alcance mais longo, remete ao processo de separação do cristianismo oriental e ocidental.

O alfabeto cirílico foi desenvolvido a partir do primeiro alfabeto eslavo, o glagolítico, inventado pelo missionário e pontífice-doutor cristão Constantino de Salônica (826/827 - 869), que no fim de sua vida adotou o nome monástico de Cirilo. Foi ele, junto com seu irmão Metódio, que conseguiu convencer o papa Adriano 2º a adotar os idiomas eslavos como língua litúrgica, ao lado do latim, grego e hebraico.

Isso não duraria muito, pois a medida seria revogada pelo papa Estevão 6º, logo após a morte de Metódio. O afastamento de Roma das missões eslavas colaborou para sua gradativa assimilação pela Igreja cristã oriental.

"Num único dia, se ouviam sete ou oito línguas".

Por menor que venha ser a interferência do cirílico na União Européia, uma maior exposição à escrita original eslava com certeza ampliará aquilo que o senso comum percebe como "europeu". Mais do que isso, a Bulgária e a Romênia – recém-ingressadas na UE – contrabandeiam para dentro da comunidade uma diversidade étnica e lingüística ímpar.

"Rutshuk [Russe], no Baixo Danúbio, onde nasci, era uma cidade maravilhosa para uma criança, e quando digo que ela se situa na Bulgária, só posso dar uma idéia insuficiente, pois lá viviam pessoas das mais diferentes origens. Num único dia, se ouviam sete ou oito línguas".

Assim relembra Elias Canetti, escritor búlgaro de expressão alemã e prêmio Nobel da Literatura de 1981, a diversidade da região onde nasceu: "Havia gregos, albaneses, armênios, ciganos. Da margem de lá do Danúbio vinham romenos. A minha ama, da qual não me recordo mais, era romena. Também havia alguns russos esparsos".

Com a Bulgária, a UE recebe – portanto – não apenas um novo alfabeto, mas uma região de permanente trânsito de etnias e culturas. Até que ponto a assimilação pelo bloco europeu contribuirá para uma "romanização" dos búlgaros, isso não se sabe. Fato é que na internet, nas trocas de e-mails e nos chats, já se propaga um búlgaro transliterado para o alfabeto latino. Sem qualquer regra, ao gosto de cada um.