Ex-militar vira réu por tortura e estupro na ditadura
15 de agosto de 2019
Justiça considerou que crimes cometidos por sargento que atuava na "Casa da Morte" de Petrópolis não são cobertos pela Lei da Anistia. É a primeira vez que um membro da repressão vira réu por crime de estupro.
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O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) aceitou nesta quarta-feira (14/08) uma denúncia contra um sargento reformado acusado de tortura, estupro e sequestro durante a ditadura militar no Brasil. Antônio Waneir Pinheiro de Lima, o "Camarão", é suspeito de ter atuado na chamada Casa da Morte, um centro clandestino de torturas e assassinatos instalado pelo regime militar em Petrópolis (RJ) no início dos anos 1970.
Esse é o primeiro processo criminal de estupro aberto contra um militar que atuou na repressão durante ditadura (1964-1985) e a primeira vez que um tribunal de segunda instância da Justiça brasileira entende que a denúncia de crimes cometidos durante o regime não devem ser barradas com base na Lei da Anistia.
A denúncia teve como base as acusações da historiadora Inês Etienne Romeu (1942-2015), ex-membro do grupo Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que em 1971 foi torturada, estuprada e mantida ilegalmente prisioneira por cerca de três meses na chamada Casa da Morte, que era administrada pelo Centro de Informações do Exército (CIE) .
Ela foi a única sobrevivente dos prisioneiros que passaram pelo local. Entre 18 e 22 pessoas foram assassinadas ali – seus corpos seguem desaparecidos.
Segundo contou Romeu em depoimento à Comissão da Verdade de Petrópolis, durante o período como prisioneira ela foi seguidamente torturada pelos militares que comandavam o aparelho e estuprada duas vezes por "Camarão".
Depois da ditadura, Camarão, hoje com 75 anos, um ex-paraquedista do Exército que atuava na Casa da Morte (inicialmente um imóvel cedido aos militares por um empresário alemão), passou mais de quatro décadas no anonimato.
Ele ganhou o apelido de colegas militares por causa do tom avermelhado da sua pele. Em 2014, quando descobriu que estava sendo procurado por jornalistas, ele fugiu da sua casa no interior do Rio de Janeiro.
Foi localizado três meses depois por um grupo de trabalho do Ministério Público Federal (MPF) no interior do Ceará e detido pela Polícia Federal. Ele nega que tenha participado de torturas ou estuprado Romeu e disse que atuou apenas como "vigia" do imóvel, sem saber o que outros militares faziam no seu interior.
Romeu só conseguiu deixar o local com vida porque prometeu para os militares que passaria a agir como infiltrada em grupos de esquerda, mas ela nunca cumpriu o acordo forçado. Posteriormente, ela voltou a ser presa - desta vez oficialmente - e foi condenada à prisão perpétua. Permaneceu na prisão até 1979 e ao sair tornou públicas as informações que reuniu. Ela também foi a última presa política a ser libertada pela ditadura.
Em 1981, graças a esses dados, jornalistas conseguiram localizar o imóvel e a história da Casa da Morte passou a ser tema de estudos e reportagens.
A decisão do TRF-2 que tornou Camarão réu atendeu a um pedido do MPF, que recorreu de uma decisão da 1ª Vara Federal Criminal de Petrópolis, que inicialmente rejeitou a denúncia. Na ocasião, o juiz que analisou o caso invocou a Lei da Anistia para a rejeição.
Na denúncia, os procuradores do caso afirmaram que "em razão de sua militância estudantil e política, Inês Etienne Romeu tornou-se alvo do governo ditatorial brasileiro, tendo sido perseguida e monitorada por órgãos de inteligência, sequestrada, presa ilegalmente, torturada e estuprada conforme demonstram várias provas amealhadas na investigação".
Os procuradores do caso também argumentaram que o caso configurava crime de lesa-humanidade e seria imprescritível e não sujeito à Lei da Anistia.
Na sessão do TRF-2 que reverteu a decisão da primeira instância, o placar da turma que analisou o recurso foi de dois a um.
A desembargadora federal Simone Schreiber e o desembargador Gustavo Macedo divergiram do relator do processo, Paulo Espírito Santo, que argumentou que a denúncia não abordava crimes imprescritíveis. Já os dois desembargadores que votaram a favor de aceitar a denúncia concordaram com os argumentos do MPF de que as ações contra Romeu configuravam crimes de lesa-humanidade.
"Assim, diante da existência de conjunto probatório mínimo, ao embasar o recebimento da denúncia, e do reconhecimento do impacto das normas de direito internacional interno de que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis e inanistiáveis, há que ser recebida a denúncia", disse Schreiber em seu voto.
Camarão ainda pode recorrer da decisão ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). O caso deve ainda provocar novas batalhas jurídicas e aumentar a pressão sobre o Supremo Tribunal Federal (STF), que em 2010 afastou a possibilidade de revisar a Lei da Anistia.
Regime militar que sufocou a democracia se estendeu por 21 anos. Período foi marcado por perseguições, tortura, censura, crescimento e derrocada econômica.
Foto: Arquivo Nacional
A perseguição política
A perseguição de adversários se concentrou nos meses após o golpe de 1964 e entre o final da década de 60 e início dos anos 70. Mais de 5 mil pessoas foram alvo de punições como demissões, cassações e suspensão de direitos políticos. Ao todo, 166 deputados foram cassados. O regime também perseguiu membros em suas fileiras. Pelo menos 6.951 militares foram presos, desligados e presos.
Foto: Arquivo Nacional
Assassinatos e desaparecimentos
Assim como a perseguição política, os assassinatos de opositores promovidos pelo regime se concentraram em algumas fases da ditadura. Mas todos os generais-presidentes foram tolerantes com a prática. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou a responsabilidade do regime militar pela morte de 224 pessoas e pelo desaparecimento de 210 – 228 delas morreram durante o governo Médici (1969-1974).
Foto: Arquivo Nacional
Tortura
Na ditadura, a tortura virou uma prática de Estado. Já no governo Castelo Branco (1964-1967) foram apresentadas 363 denúncias de tortura. Na fase de Médici (1969-1974), seriam mais de 3.500. O relatório "Brasil: Nunca Mais" lista 283 formas de tortura aplicadas pelo regime, como afogamentos, choques elétricos e o pau de arara. Ao longo de 21 anos, houve mais de 6 mil denúncias de tortura.
Foto: Arquivo Nacional
A luta armada
Ao dar o golpe, os militares citaram a corrupção e o esquerdismo do governo Jango. A luta armada, às vezes apontada como razão de ser da ditadura, nem foi mencionada. Só em 1966 ocorreram as primeiras ações relevantes de grupos de esquerda, que cometeriam atentados e assaltos com o objetivo de promover uma revolução. Em 1974, todos já haviam sido aniquilados, mas a ditadura duraria mais uma década
Foto: Arquivo Nacional
Os atos institucionais
O regime militar recorreu a uma série de decretos chamados atos institucionais para manter seu poder. Entre 1964 e 1969 foram promulgados 17 atos, que estavam acima até da Constituição. Alguns promoveram a cassação de adversários (AI-1) e a extinção dos partidos políticos existentes (AI-2). O mais duro deles, o AI-5, instituiu em 1968 a censura prévia na imprensa e a suspensão do "habeas corpus".
Foto: Arquivo Nacional
A censura
Boa parte da imprensa apoiou o golpe, mas vários jornais passaram a criticar o regime, alguns mais cedo, outros mais tarde. Com o AI-5, passou a vigorar uma censura prévia em vários meios de comunicação. O regime censurava até más notícias, promovendo uma imagem fictícia da realidade do país. Epidemias, desastres e atentados eram temas vetados. Músicas, filmes e novelas também foram censurados.
Foto: Arquivo Nacional
Colaboração com outras ditaduras
Junto com os regimes da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, a ditadura brasileira integrou a Operação Condor, uma aliança para perseguir opositores no Cone Sul. O regime também ajudou a treinar oficiais chilenos em técnicas de tortura. Um dos casos mais notórios de colaboração foi o sequestro em 1978 de dois ativistas uruguaios em Porto Alegre, que foram entregues ao país vizinho.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
O milagre econômico...
Após três anos de ajustes, os militares promoveram a partir de 1967 investimentos e oferta de crédito. A fórmula deu resultados. Entre 1967 e 1973, a expansão do PIB brasileiro foi de 10,2% ao ano. O país passou a ser a décima economia do mundo. O crescimento aumentou a popularidade do regime durante a fase mais repressiva da ditadura. Mas o "milagre brasileiro" duraria pouco.
Foto: Arquivo Nacional
... e a derrocada econômica
A conta do "milagre" chegou após os dois choques do petróleo e uma série de decisões desastradas para manter a economia aquecida. Ao fim da ditadura, o país acumulava dívida externa 30 vezes maior que a de 1964 e inflação de 225,9% ao ano. Quase 50% da população estava abaixo da linha de pobreza. Os militares pegaram um país com graves problemas econômicos e entregaram um quebrado.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Corrupção
A censura e a falta de transparência favoreceram a corrupção. O período foi marcado por vários casos, como o Coroa-Brastel, Delfin, Lutfalla e a explosão de gastos em obras. O regime promoveu e protegeu figuras como Paulo Maluf e Antônio Carlos Magalhães, que já nos anos 70 eram suspeitos em casos de corrupção. Também abafou casos, como a compra superfaturada de fragatas do Reno Unido nos anos 70.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Grandes obras
A ditadura promoveu obras faraônicas, divulgadas com propaganda ufanista, como Itaipu e a ponte Rio-Niterói. Algumas foram marcadas por desperdícios e erros, como a Transamazônica e as usinas de Angra. Em 1969, o regime criou uma reserva de mercado para as empreiteiras nacionais ao proibir a atuação de estrangeiras. É nessa época que empresas como a Odebrecht passam a dominar as obras no país.
Foto: Arquivo Nacional
Anistia e falta de punições
Em 1979, seis anos antes do fim da ditadura, foi promulgada a Lei da Anistia, perdoando crimes cometidos por motivação política. Mas ela tinha mão dupla: garantiu também a impunidade para agentes responsáveis por mortes e torturas. No Chile e na Argentina, dezenas de agentes foram condenados por violações de direitos humanos após a volta da democracia. No Brasil, ninguém foi punido.