Confissão tardia de ex-membro da Resistência francesa, que testemunhou execução em massa de prisioneiros alemães em 1944, desencadeia busca por restos mortais e desperta lembranças sombrias numa região rural da França.
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No fim de 2019, um diretório local da Associação Nacional dos Antigos Combatentes e Amigos da Resistência (ANACR), em grupo francês que preserva a memória da luta contra a ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial, estava caminhando para o encerramento da sua assembleia geral, que reunia principalmente aficionados por história e familiares de antigos combatentes falecidos.
Era uma reunião de rotina na região rural de Corrèze, um departamento no centro da França famoso pela oposição feroz aos invasores alemães durante o conflito. Tudo se encaminhava de forma previsível, quando, súbito, o presidente honorário do diretório Edmond Réveil – o último combatente da Resistência ainda vivo do departamento – anunciou que tinha algo para partilhar.
Hoje com 98 anos e morador bastante conhecido do vilarejo de Meymac, Réveil contou ter testemunhado a execução sumária de dezenas de prisioneiros alemães por seus companheiros da Resistência, no penúltimo ano da guerra.
As palavras da boca do quase centenário caíram como uma bomba entre a plateia, rompendo um segredo de mais de sete décadas. Alguns temeram imediatamente que a revelação minasse o orgulhoso mito local, se não nacional, do heroísmo durante o conflito.
Desde então, Réveil tem falado abertamente sobre seu remorso, apesar das circunstâncias complexas da época. "Não deveríamos tê-los matado", comentou em junho ao jornal regional La Montagne.
De acordo com o francês, em 12 de junho de 1944, na turbulência sangrenta que se seguiu aos desembarques aliados do Dia D no norte da França, cerca de 30 combatentes dos Francs-Tireurs Partisans (FTP) – um grupo de resistência ligado aos comunistas – executaram 46 prisioneiros alemães e uma francesa acusada de colaboração. Os corpos foram enterrados numa floresta perto de Meymac.
Nenhum resto humano encontrado até agora
Sua admissão, registrada num depoimento oral em 2020, acabaria por desencadear uma escavação franco-alemã, com uma equipe de 20 participantes. Os esforços foram acompanhados por uma onda de interesse midiático na França e em outros países.
A busca por essa vala comum, que foi significativamente atrasada pela pandemia, foi concluída na quinta-feira sem que nenhum resto humano fosse de fato encontrado.
Por enquanto não estão previstas mais escavações, mas segundo o prefeito de Meymac, Philippe Brugère, as buscas devem prosseguir. Onze corpos foram encontrados na mesma região durante uma escavação realizada no fim da década de 1960 sob circunstâncias misteriosas, e cujos detalhes estão estranhamente ausentes dos registros públicos.
Brugère testemunhou em primeira mão a admissão de Réveil em 2019: "Eu próprio não sabia como reagir, de início." Executar prisioneiros de guerra é em geral considerado um crime de guerra, mas o fato de os FTP serem guerrilheiros e não um exército convencional torna as coisas mais complicadas, sublinhou o prefeito.
"Dava para sentir o cheiro de sangue"
Neste caso, o contexto pesa bastante. Como Réveil explicou no depoimento de 2020, o FTP tinha feito prisioneiros durante uma operação de guerrilha contra a ocupação na cidade vizinha de Tulle, mas não tinha planos para o que viria a seguir. "Não queríamos matá-los, mas não podíamos ficar com eles."
Os guerrilheiros não podiam alimentá-los nem abrigá-los, e ainda corriam o risco de ser executados, caso capturados. O risco de represálias alemãs sobre o vilarejo de Meymac também era muito real. Dias antes, as forças ocupadoras em Tulle tinham enforcado 99 habitantes como punição pela ofensiva dos membros da FTP. No mesmo período, os nazistas também haviam massacrado 643 civis, entre os quais 247 crianças, na cidade de Oradour-sur-Glane, a cerca de 100 quilômetros de Meymac. Muitos foram queimados vivos no interior de uma igreja.
"A gente tinha que encontrar uma solução", diz Réveil. Depois de manterem os alemães em cativeiro por vários dias, finalmente veio uma ordem para executá-los.
O hoje quase centenário se recusou a participar da matança, e conta que o comandante local "chorou como uma criança". Depois de serem forçados a cavar as próprias covas, os prisioneiros foram fuzilados e enterrados na floresta perto de Meymac.
"Estava muito quente... Dava para sentir o cheiro de sangue", lembra Réveil. Em seguida os algozes foram obrigados a jurar segredo: "Todo mundo sabia, mas ninguém falava sobre o assunto."
Para o prefeito Brugère, a confissão foi um ato de coragem, bem como uma oportunidade de desabafo para um homem próximo do fim da vida: "Acho que foi importante para ele a coisa não cair no esquecimento."
Brugère ressalva, porém, que nem todos da comunidade encararam a iniciativa de forma tão positiva, considerados os horrores sofridos sob a ocupação nazista. "Ainda há alguns – uma pequena minoria – em Meymac, por exemplo, e em outros lugares, que acham difícil entender por que estamos investigando."
"Terra da Resistência"
Após a invasão e ocupação da França pelos nazistas em 1940, boa parte da população se dividiu entre quem apoiava a Resistência, liderada pelo general Charles de Gaulle e grupos como o FTP, e quem era a favor do regime colaboracionista do marechal Philippe Pétain.
Todo esse período da história da França ainda é objeto de debate. Depois da guerra, a narrativa oficial do governo De Gaulle foi que a maioria da França se alinhara com a Resistência. A grande região de Limousin, onde fica o departamento Corrèze, é "uma terra da Resistência, é conhecida por isso", afirma Brugère. "Os alemães a apelidaram de 'Pequena Rússia'."
Essa herança é motivo de orgulho na região. Quando o testemunho de Réveil começou a ganhar cobertura na imprensa local e nacional, o diretório da ANACR em Corrèze classificou vários artigos como incendiários e imprecisos.
"Não temos o direito de bancar o juiz", escreveu a associação num comunicado à imprensa em maio. "É preciso que nos questionemos o que teríamos feito, de que lado estaríamos? No campo da Resistência ou na desonra da colaboração com os nazistas?"
Dois residentes de Meymac manifestaram ressalvas semelhantes. "Quem não conhece a história de tudo o que aconteceu aqui na nossa região poderia logo dizer 'Oh, os resistentes eram uns bastardos'”, disse Jeanne, de 69 anos.
"Estou um pouco chateado com isso tudo”, acrescentou Marc, de 70 anos. "Todo mundo sabe de tudo isso há muito tempo. E se não falaram sobre isso, é porque juraram segredo." Ambos os entrevistados se recusaram a revelar seus sobrenomes à DW.
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Uma tragédia, mas uma fonte de esperança
O próprio Réveil não se incomoda que alguns prefiram deixar o passado para trás, afirma seu amigo e vizinho Joel Bezanger, de 58 anos. Embora sua geração não nutra animosidade contra o povo alemão, "definitivamente crescemos com a lenda dos bons combatentes da Resistência e dos maus alemães".
Por isso que o testemunho de Réveil é tão importante, frisa o dentista nascido em Tulle: "Não se precisa acreditar que havia os mocinhos de um lado e os bandidos do outro. A guerra não é assim. Há muitos bandidos, ou pelo menos exacerbação da violência. Reconhecer tal nuance não prejudica o legado da Resistência."
Para os supostos executados em junho de 1944, o fato de uma equipe de reunindo especialistas alemães e franceses trabalhar para recuperar os seus restos mortais provavelmente seria surpreendente.
Para o prefeito Philippe Brugère, trata-se de mais um indicativo que sempre há possibilidade de reconciliação: "É um paradoxo: é um acontecimento trágico que ainda nos dá muita esperança."
Cronologia da Segunda Guerra Mundial
Em 1° de setembro de 1939, as Forças Armadas alemãs atacaram a Polônia, sob ordens de Hitler. A guerra que então começava duraria até 8 de maio de 1945, deixando um saldo até hoje sem paralelo de morte e destruição.
Foto: U.S. Army Air Forces/AP/picture alliance
1939
No dia 1° de setembro de 1939, as Forças Armadas alemãs atacaram a Polônia sob ordens de Adolf Hitler – supostamente em represália a atentados poloneses, embora isso tenha sido uma mentira de guerra. No dia 3 de setembro, França e Reino Unido, que eram aliadas da Polônia, declararam guerra à Alemanha, mas não intervieram logo no conflito.
1939
A Polônia mal pôde oferecer resistência às bem equipadas tropas alemãs – em cinco semanas, os soldados poloneses foram derrotados. No dia 17 de setembro, o Exército Vermelho ocupou o leste da Polônia – em conformidade com um acordo secreto fechado entre o Império Alemão e a União Soviética apenas uma semana antes da invasão.
Foto: AP
1940
Em abril de 1940, a Alemanha invadiu a Dinamarca e usou o país como base até a Noruega. De lá vinham as matérias-primas vitais para a indústria bélica alemã. No intuito de interromper o fornecimento desses produtos, o Reino Unido enviou soldados ao território norueguês. Porém, em junho, os aliados capitularam na Noruega. Nesse meio tempo, a Campanha Ocidental já havia começado.
1940
Durante oito meses, soldados alemães e franceses se enfrentaram no oeste, protegidos por trincheiras. Até que, em 10 de maio, a Alemanha atacou Holanda, Luxemburgo e Bélgica, que estavam neutros. Esses territórios foram ocupados em poucos dias e, assim, os alemães contornaram a defesa francesa.
Foto: picture alliance/akg-images
1940
Os alemães pegaram as tropas francesas de surpresa e avançaram rapidamente até Paris, que foi ocupada em meados de junho. No dia 22, a França se rendeu e foi dividida: uma parte ocupada pela Alemanha de Hitler e a outra, a "França de Vichy", administrada por um governo fantoche de influência nazista e sob a liderança do general Pétain.
Foto: ullstein bild/SZ Photo
1940
Hitler decide voltar suas ambições para o Reino Unido. Seus bombardeios transformaram cidades como Coventry em cinzas e ruínas. Ao mesmo tempo, aviões de caça travavam uma batalha aérea sobre o Canal da Mancha, entre o norte da França e o sul da Inglaterra. Os britânicos venceram e, na primavera europeia de 1941, a ofensiva alemã estava consideravelmente enfraquecida.
Foto: Getty Images
1941
Após a derrota na "Batalha aérea pela Inglaterra", Hitler se voltou para o sul e posteriormente para o leste. Ele mandou invadir o norte da África, os Bálcãs e a União Soviética. Enquanto isso, outros Estados entravam na liga das Potências do Eixo, formada por Alemanha, Itália e Japão.
1941
Na primavera europeia, depois de ter abandonado novamente o Pacto Tripartite, Hitler mandou invadir a Iugoslávia. Nem a Grécia, onde unidades inglesas estavam estacionadas, foi poupada pelas Forças Armadas alemãs. Até então, uma das maiores operações aeroterrestres tinha sido o ataque de paraquedistas alemães a Creta em maio de 1941.
Foto: picture-alliance/akg-images
1941
O ataque dos alemães à União Soviética no dia 22 de junho de 1941 ficou conhecido como Operação Barbarossa. Nas palavras da propaganda alemã, o objetivo da campanha de invasão da União Soviética era uma "ampliação do espaço vital no Oriente". Na verdade, tratava-se de uma campanha de extermínio, na qual os soldados alemães cometeram uma série de crimes de guerra.
Foto: Getty Images
1942
No começo, o Exército Vermelho apresentou pouca resistência. Aos poucos, no entanto, o avanço das tropas alemãs chegou a um impasse na Rússia. Fortes perdas e rotas inseguras de abastecimento enfraqueceram o ataque alemão. Hitler dominava quase toda a Europa, parte do norte da África e da União Soviética. Mas no ano de 1942 houve uma virada.
1942
A Itália havia entrado na guerra em junho de 1940, como aliada da Alemanha, e atacado tropas britânicas no norte da África. Na primavera de 1941, Hitler enviou o Afrikakorps como reforço. Por muito tempo, os britânicos recuaram – até a segunda Batalha de El Alamein, no outono de 1942. Ali a situação mudou, e os alemães bateram em retirada. O Afrikakorps se rendeu no dia 13 de maio de 1943.
Foto: Getty Images
1942
Atrás do fronte leste, o regime de Hitler construiu campos de extermínio, como Auschwitz-Birkenau. Mais de seis milhões de pessoas foram vítimas do fanatismo racial dos nazistas. Elas foram fuziladas, mortas com gás, morreram de fome ou de doenças. Milhares de soldados alemães e da SS estiveram envolvidos nestes crimes contra a humanidade.
Foto: Yad Vashem Photo Archives
1943
Já em seu quarto ano, a guerra sofreu uma virada. No leste, o Exército Vermelho partiu para o contra-ataque. Vindos do sul, os aliados desembarcaram na Itália. A Alemanha e seus parceiros do Eixo começaram a perder terreno.
1943
Stalingrado virou o símbolo da virada. Desde julho de 1942, o Sexto Exército alemão tentava capturar a cidade russa. Em fevereiro, quando os comandantes desistiram da luta inútil, cerca de 700 mil pessoas já haviam morrido nesta única batalha – na maioria soldados do Exército Vermelho. Essa derrota abalou a moral de muitos alemães.
Foto: picture-alliance/dpa
1943
Após a rendição das tropas alemãs e italianas na África, o caminho ficou livre para que os Aliados lutassem contra as potências do Eixo no continente europeu. No dia 10 de julho, aconteceu o desembarque na Sicília. No grupo dos Aliados estavam também os Estados Unidos, a quem Hitler havia declarado guerra em 1941.
Foto: picture alliance/akg
1943
Em setembro, os Aliados desembarcaram na Península Itálica. O governo em Roma acertou um armistício com os Aliados, o que levou Hitler a ocupar a Itália. Enquanto os Aliados travavam uma lenta batalha no sul, as tropas de Hitler espalhavam medo pelo resto do país.
No leste, o Exército Vermelho expulsou os invasores cada vez mais para longe da Alemanha. Iugoslávia, Romênia, Bulgária, Polônia... uma nação após a outra caía nas mãos dos soviéticos. Os Aliados ocidentais intensificaram a ofensiva e desembarcaram na França, primeiramente no norte e logo em seguida no sul.
1944
Nas primeiras horas da manhã do dia 6 de junho, as tropas de Estados Unidos,Reino Unido, Canadá e outros países desembarcaram nas praias da Normandia, no norte da França. A liderança militar alemã tinha previsto que haveria um desembarque – mas um pouco mais a leste. Os Aliados ocidentais puderam expandir a penetração nas fileiras inimigas e forçar a rendição de Hitler a partir do oeste.
Foto: Getty Images
1944
No dia 15 de agosto, os Aliados deram início a mais um contra-ataque no sul da França e desembarcaram na Provença. As tropas no norte e no sul avançaram rapidamente e, no dia 25 de agosto, Paris foi libertada da ocupação alemã. No final de outubro, Aachen se tornou a primeira grande cidade alemã a ser ocupada pelos Aliados.
Foto: Getty Images
1944
No inverno europeu de 1944/45, as Forças Armadas alemãs reuniram suas tropas no oeste e passaram para a contra-ofensiva em Ardenne. Mas, após contratempos no oeste, os Aliados puderam vencer a resistência e avançar inexoravelmente até o "Grande Império Alemão" – a partir do leste e do oeste.
Foto: imago/United Archives
1945
No dia 8 de maio de 1945, os nazistas se renderam incondicionalmente. Para escapar da captura, Hitler se suicidou com um tiro no dia 30 de abril. Após seis anos de guerra, grande parte da Europa estava sob entulhos. Quase 50 milhões de pessoas morreram no continente durante a Segunda Guerra Mundial. Em maio de 1945, o marechal de campo Wilhelm Keitel assinava a ratificação da rendição em Berlim.