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Todos canibais?

18 de julho de 2011

O que artistas de todo o mundo querem nos dizer ao fazer do canibalismo o tema de suas obras? Quem visitar Berlim poderá ver no espaço de exposição "me Collectors Room" diversas tentativas de resposta a essa pergunta.

Will Cotton, 'Consuming Folly', 2009-2010Foto: Will Cotton/Mary Boone Gallery

Segundo Jeanette Zwingenberger, curadora da exposição Alles Kannibalen? (Todos canibais?), a ideia da mostra no espaço de exposições berlinense "me Collectors Room" nasceu do fato de há cerca de dez anos artistas contemporâneos se ocuparem do tema da antropofagia.

Além da parte contemporânea da exposição, que abrange fotografias, vídeos, instalações, esculturas, desenhos e pinturas de 40 artistas internacionais, são mostradas também obras históricas em torno do tema da antropofagia, como fotografias das primeiras viagens de pesquisa etnográfica ou objetos etnográficos de culturas não europeias.

Não se trata, explica Zwingenberger, do clichê dos selvagens canibais, mas de "um conceito ampliado de canibalismo", no qual a relação do ser humano consigo e com o mundo se realiza por meio da "incorporação".



Tendências da sociedade


Através de uma série de questionamentos, os curadores da mostra, realizada em cooperação com a fundação La maison rouge, de Paris, lançam uma visão sobre diversas tendências de nossa sociedade, que artistas como a norte-americana Cindy Sherman, o alemão Norbert Bisky e os brasileiros Vik Muniz e Adriana Varejão resgatam em Todos canibais?

Na era do pós-colonialismo, a assimilação entre as diferentes culturas não seria um dos frutos da globalização? Ao explorar os recursos naturais do planeta, não estaríamos devorando a Terra? Em tempos de crise econômica, qual o destino da nossa sociedade de consumo?

Com o retorno de conceitos tradicionais de maternidade no pós-feminismo, não seria necessário tomar consciência de que o primeiro canibal é a própria criança no seio de sua mãe? E, em tempos de sociedade digital e virtualização, como o ser humano se relaciona com o Outro e com seu corpo feito de carne e osso?

Oswald de Andrade


Em artigo publicado em 1993 no jornal La Repubblica, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009) lançou a tese, diz a curadora, que deu origem ao título da exposição: "Nós somos todos canibais. A forma mais fácil de se identificar com o Outro ainda é comê-lo".

Lévi-Strauss resgata assim um tema bastante atual, mas suas ideias não são, no entanto, originais. O badalado antropólogo francês, autor de Tristes Trópicos, viveu no Brasil na década de 1930 como pesquisador e professor de Sociologia da então recém-fundada Universidade de São Paulo.

O universo cultural da São Paulo dos anos 1930 não deveria ser tão grande para que Lévi-Strauss não se deixasse também influenciar pelas ideias de Oswald de Andrade, autor do Manifesto Antropofágico (1928), onde ele resgata e reverte o clichê do canibalismo, postulando justamente que o Brasil, um país de cultura mestiça, assimilou as oposições: colonizado x colonizador, tecnologia x natureza, civilização x barbárie.

Na edição especial da francesa artpress sobre a mostra Todos canibais?, Jeanette Zwingenberger explica que o movimento intelectual iniciado por Oswald de Andrade foi reafirmado pela 24ª Bienal de São Paulo, que tinha como tema o canibalismo. Na atual exposição, justifica Zwingenberger, "os artistas mostram a atualidade e abordam a incorporação de um ponto de vista ainda mais radical".

Formas de canibalismo

Fundado em 2010 pelo colecionador de arte alemão Thomas Olbricht, o "me Collectors room" de Berlim constitui um novo gênero de espaço de exposições, algo entre uma galeria de arte e um museu, onde são apresentadas exposições temporárias de artistas contemporâneos, coleções convidadas, como também o acervo do próprio colecionador.

As obras de Todos canibais? se espalham pelos diversos espaços do "me Collectors room". Trabalhos do francês Frédérique Loutz e do belga Michaël Borremans são expostos logo na entrada, onde se localizam o café e o saguão. São obras que têm os contos de fadas como tema. Para a curadora, tal expressão onírica da arte reflete o medo das crianças de enfrentar o mundo dos adultos – crueldade, impotência e o medo de serem devoradas são temas frequentes em tais histórias.

A mostra prossegue num grande espaço adjacente. Lá está a maior parte das obras. No entanto, a justaposição dos diversos trabalhos numa grande sala torna confusa a distinção entre os diferentes pontos de vista dos artistas em sua alusão ao canibalismo.

Diferentes interpretações


E são muitas as interpretações decorrentes das diferentes obras expostas na sala principal. O desenho Jeu d'enfants N° 1 (Jogo de Crianças N° 1) do francês Jérôme Zonder retrata, segundo os curadores da mostra, os jogos transgressivos praticados por adultos e crianças e seu potencial de se transformar em algo feio a qualquer momento. "Em tempos de videogames violentos e jogos online, o trabalho levanta a questão sobre que cenários (jogos) crianças e adultos habitam hoje em dia", afirmam os curadores.

No vídeo Melons (At a loss), a artista norte-americana Patty Chang é vista comendo seu próprio peito a colheradas. Segundo Zwingenberger, o trabalho trata das tendências de autorrepulsa e autodestruição evidenciadas em nossa sociedade por fenômenos como a anorexia.

Em sua série de retratos de albinos africanos, que ainda são vítimas de preconceito no continente negro, o fotógrafo sul-africano Pieter Hugo enfatiza o senso de alteridade caracterizado por um problema corporal, explicam os curadores.

Fragmentação do corpo


Um dos pontos fortes da exposição são os trabalhos da brasileira Adriana Varejão (de uma parede azulejada, que lembra um açougue ou um necrotério, surgem vísceras, o que provoca uma inversão do dentro e fora) e da búlgara Oda Jaune, cuja pintura suave e realista nos revela um aspecto nosso que nos continua inacessível: a nossa carne.

Adriana Varejão e Oda Jaune, explica a curadora, nos confrontam com as nossas próprias vísceras. Não é somente a aparência externa que conta, mas também os órgãos internos têm seu valor, "pois é justamente através deles que o corpo assume uma interface com todos os outros seres vivos".

Através da escolha dos trabalhos de Varejão e Jaune para a exposição, Zwingenberger afirma querer fazer alusão ao processo da fragmentação da unidade corporal em nossa sociedade, como também questionar a nova imagem do corpo nos nossos dias.

Canibalismo positivo

A mostra também contrapõe trabalhos de antigos mestres com obras contemporâneas. Ao subir as escadas do "me Collectors room", o visitante pode ver uma pintura do século 15 da Virgem Maria amamentando uma criança e uma obra da norte-americana Cindy Sherman, cujo trabalho fotográfico é centrado em figuras-chave que moldaram a identidade feminina. Na série History Portraits, de 1990, o visitante pode ver Sherman fantasiada de Virgem lactante, vestida de dama aristocrática e segurando um seio falso de onde jorra leite.

Parte do andar superior é dedicada a uma nova forma de canibalismo – a relação entre a mãe e a criança que ela carrega. Sigmund Freund descreve a fase oral, na qual a relação da criança com o mundo se realiza através da boca, como sendo uma forma de canibalismo positivo, explica Zwingenberger.

Pulsão multiplicatória


Trabalhos do mestre espanhol Francisco de Goya (1746-1828) também fazem parte da mostra. Nas mãos de Goya, os julgamentos realizados pela Inquisição transformaram-se em caricaturas da sociedade. Em suas gravuras, a vida se torna uma ficção medonha.

Inspirado numa cena das 'pinturas negras' de Goya, onde Saturno come um de seus próprios filhos para evitar ser deposto por ele, o brasileiro Vik Muniz cria uma imagem de Saturno que consiste unicamente do lixo que destrói nosso meio ambiente.



Para a série de fotografias Pictures of Junk (Quadros de lixo), Muniz pediu a jovens de favelas do Rio de Janeiro que coletassem detritos e os reunissem sobre um terreno de dimensões limitadas. Olhando de determinado ângulo, esse conjunto se transforma na imagem de Saturno. Inspirando-se em Goya, Vik Muniz nos mostra a destruição do mundo em que vivemos através do excesso de produção que devora nosso espaço vital.

Em seu quadro Sündenbock (Bode expiatório), de 2005, o pintor alemão Norbert Bisky também mostra uma humanidade que se autodestrói através de sua pulsão multiplicadora. A presença de diversos artistas japoneses na exposição é um sinal de que o canibalismo também é um tema recorrente na arte underground do Japão.

A exposição Alles Kannibalen? (Todos canibais?) pode ser visitada até 21 de agosto no "me Collectors Room", localizado na rua Auguststrasse 68, no bairro Mitte, em Berlim.

Autor: Carlos Albuquerque
Revisão: Roselaine Wandscheer

Norbert Bisky, 'Sündenbock', 2005: humanidade se autodestrói através de pulsão multiplicadoraFoto: Norbert Bisky/Courtesy VG Bildkunst-Bonn
Cindy Sherman, Sem Título 225, 1990Foto: Olbricht Collection/Berlin
Vik Muniz, 'Saturno devorando seus filhos', 2005Foto: Vik Muniz/Galerie Xippas/Paris
Jérôme Zonder, 'Jeu d'enfants N°1' , 2010Foto: Jérôme Zonder/Galerie Eva Hober/Paris
Oda Jaune, Sem Título, 2008: não é só a aparência externa que contaFoto: Oda-Jaune-Galerie/Daniel Templon/Paris
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