Fala do chefe da ONU escala crise diplomática com Israel
25 de outubro de 2023
Guterres disse que ataque do Hamas "não surgiu do nada, mas de 56 anos de ocupação". Governo israelense reage, pede renúncia do secretário-geral e diz que vai negar vistos a representantes das Nações Unidas.
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Israel anunciou nesta quarta-feira (24/10) que vai negar vistos a representantes das Nações Unidas após as declarações do secretário-geral da ONU, António Guterres, perante o Conselho de Segurança do órgão.
Em reunião na terça-feira,Guterres disse que o ataque do grupo terrorista Hamas de 7 de outubro "não surge do nada, mas de 56 anos de ocupação". Como reação, Israel pediu a renúncia do dirigente.
O anúncio da recusa dos vistos foi feito pelo embaixador israelense na ONU, Gilad Erdan, que acrescentou que seu país já começou a adotar essa política, já tendo recusado um visto ao subsecretário-geral da ONU para os Assuntos Humanitários, Martin Griffiths.
"É hora de dar a eles uma lição", disse Erdan se referindo aos funcionários da ONU, em entrevista à rádio do Exército israelense.
"Palestinos sofrem 56 anos de ocupação sufocante"
A polêmica eclodiu na terça-feira, quando Guterres "condenou inequivocamente os horríveis e sem precedentes atos terroristas" do Hamas, embora tenha ressaltado que o que aconteceu tem suas raízes em longas décadas de conflito com os palestinos. "Os ataques do Hamas não ocorrem no vácuo. O povo palestino foi sujeito a 56 anos de ocupação sufocante", afirmou Guterres.
Ele também disse que a população palestina viu como "sua terra era devorada sem cessar pelos assentamentos e assolada pela violência".
A fala de Guterres foi proferida durante discurso em uma reunião especial do Conselho de Segurança sobre o conflito entre Israel e o Hamas, desencadeado pelo ataque do grupo militante em 7 de outubro. O atentado deixou pelo menos 1.400 israelenses mortos, e mais de 220 foram feitos reféns.
Em retaliação, ataques aéreos israelenses destruíram grandes áreas do enclave de Gaza, deixando pelo menos 6.500 palestinos mortos, incluindo mais de 2.700 crianças, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza.
Nesta quarta-feira, Guterres destacou um trecho de seu discurso, em postagem na plataforma X (antigo Twitter): "As queixas do povo palestino não podem justificar os horríveis ataques do Hamas. Esses ataques horrendos não podem justificar a punição coletiva do povo palestino."
As declarações do secretário-geral da ONU provocaram reação de autoridades israelenses, que condenaram as palavras e pediram a sua renúncia.
"Você não tem vergonha?", questionou o ministro das Relações Exteriores de Israel, Eli Cohen, que estava presente na sessão das Nações Unidas e suspendeu uma reunião planejada com Guterres.
Reação do presidente do Museu do Holocausto
A fala de Guterres também foi criticada por Dani Dayan, presidente do Museu do Holocausto de Jerusalém, Yad Vashem, que argumentou que "o massacre de judeus pelo Hamas em 7 de outubro foi genocida nas suas intenções e imensamente brutal na sua forma".
"Parte da razão pela qual difere do Holocausto é porque os judeus hoje têm um Estado e um Exército. Não estamos indefesos ou à mercê de outros", acrescentou o presidente do Yad Vashem.
Segundo Dayan, após o ataque a Israel pelo grupo islâmico palestino, "se colocou à prova a sinceridade dos líderes mundiais, intelectuais e pessoas influentes" em nível internacional, como Guterres. Nesse contexto, o secretário-geral da ONU "não passou na prova", segundo Dayan.
Depois dos massacres perpetrados pelo braço militar do Hamas em Israel há mais de duas semanas – o ataque com maior número de mortes na história do Estado judaico –, o governo israelense comparou suas ações às do "Estado Islâmico" (EI) ou ao genocídio nazista de milhões de judeus.
Israel também declarou que as atrocidades cometidas pelo grupo islâmico foram o pior massacre contra judeus desde o Holocausto.
Críticas das famílias dos reféns israelenses
A fala foi também alvo de críticas de familiares dos reféns do grupo islâmico Hamas, que a considerou "escandalosa".
"Que vergonha dar legitimidade a crimes contra a humanidade quando se trata de judeus! As declarações do secretário-geral da ONU são escandalosas!", afirmou o grupo de famílias dos cerca de 220 sequestrados em comunicado.
"Crianças foram queimadas vivas, mulheres foram violadas e civis foram torturados e assassinados a sangue frio. Tudo com o objetivo de aniquilar todos os israelenses e judeus na área capturada pelo Hamas", observaram as famílias.
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Guterres diz que falas foram deturpadas
Nesta quarta-feira, Guterres se pronunciou sobre as críticas aos seus comentários da véspera, dizendo que precisava "esclarecer as coisas, especialmente por respeito às vítimas e suas famílias".
"Estou chocado com as deturpações feitas por alguns sobre minha declaração ontem no Conselho de Segurança – como se eu estivesse justificando os atos de terror do Hamas", disse ele a jornalistas reunidos na sede da ONU em Nova York. "Isso é falso. Foi o contrário."
O chefe das Nações Unidas observou que, no dia anterior, condenou o ataque do Hamas a Israel e enfatizou que "nada pode justificar matar, ferir e sequestrar deliberadamente civis, ou lançar foguetes contra alvos civis".
Ele insistiu que falou, sim, "sobre as queixas do povo palestino" – "mas ao fazer isso também afirmei claramente, e cito: 'As queixas do povo palestino não podem justificar os terríveis ataques do Hamas'. Fim de citação".
Alemanha apoia chefe de ONU
Também nesta quarta, o governo da Alemanha declarou que Guterres tem sua "confiança" e que a exigência de Israel para que ele renuncie "não é apropriada".
"Temos que dar meio passo atrás. A situação está muito carregada, muito tensa. Estamos todos chocados e não tenho a sensação de que os pedidos de renúncia sejam apropriados", disse Steffen Hebestreit, porta-voz do chanceler federal Olaf Scholz, em coletiva de imprensa em Berlim.
Ele acrescentou que a Alemanha se mantém "inabalavelmente" ao lado de Israel, mas também está fazendo esforços para "mediar".
"Vemos o que está acontecendo em Israel, o que está acontecendo em Gaza. Estamos tentando abrir janelas humanitárias para que os civis continuem a receber comida, água", disse o porta-voz. "Nesta situação, meu conselho seria que, em nível internacional e público, não devemos permitir-nos ficar divididos, mas sim enfrentar juntos um conflito muito complicado e delicado."
A longa história do processo de paz no Oriente Médio
Por mais de meio século, disputas entre israelenses e palestinos envolvendo terras, refugiados e locais sagrados permanecem sem solução. Veja um breve histórico sobre o conflito.
Foto: PATRICK BAZ/AFP/Getty Images
1967: Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU
A Resolução 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, aprovada em 22 de novembro de 1967, sugeria a troca de terras pela paz. Desde então, muitas das tentativas de estabelecer a paz na região referiram-se a ela. A determinação foi escrita de acordo com o Capítulo 6 da Carta da ONU, segundo o qual as resoluções são apenas recomendações e não ordens.
Foto: Getty Images/Keystone
1978: Acordos de Camp David
Em 1973, uma coalizão de Estados árabes liderada pelo Egito e pela Síria lutou contra Israel no Yom Kippur ou Guerra de Outubro. O conflito levou a negociações de paz secretas que renderam dois acordos 12 dias depois. Esta foto de 1979 mostra o então presidente egípcio Anwar Sadat, seu homólogo americano Jimmy Carter e o premiê israelense Menachem Begin após assinarem os acordos em Washington.
Foto: picture-alliance/AP Photo/B. Daugherty
1991: Conferência de Madri
Os EUA e a ex-União Soviética organizaram uma conferência na capital espanhola. As discussões envolveram Israel, Jordânia, Líbano, Síria e os palestinos – mas não da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) –, que se reuniam com negociadores israelenses pela primeira vez. Embora a conferência tenha alcançado pouco, ela criou a estrutura para negociações futuras mais produtivas.
Foto: picture-alliance/dpa/J. Hollander
1993: Primeiro Acordo de Oslo
Negociações na Noruega entre Israel e a OLP, o primeiro encontro direto entre as duas partes, resultaram no Acordo de Oslo. Assinado nos EUA em setembro de 1993, ele exigia que as tropas israelenses se retirassem da Cisjordânia e da Faixa de Gaza e que uma autoridade palestina autônoma e interina fosse estabelecida por um período de transição de cinco anos. Um segundo acordo foi firmado em 1995.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Sachs
2000: Cúpula de Camp David
Com o objetivo de discutir fronteiras, segurança, assentamentos, refugiados e Jerusalém, o então presidente dos EUA, Bill Clinton, convidou o premiê israelense Ehud Barak e o presidente da OLP Yasser Arafat para a base militar americana em julho de 2000. No entanto, o fracasso em chegar a um consenso em Camp David foi seguido por um novo levante palestino, a Segunda Intifada.
Foto: picture-alliance/AP Photo/R. Edmonds
2002: Iniciativa de Paz Árabe
Após Camp David, seguiram-se encontros em Washington e depois no Cairo e Taba, no Egito – todos sem resultados. Mais tarde, em março de 2002, a Liga Árabe propôs a Iniciativa de Paz Árabe, convocando Israel a se retirar para as fronteiras anteriores a 1967 para que um Estado palestino fosse estabelecido na Cisjordânia e em Gaza. Em troca, os países árabes concordariam em reconhecer Israel.
Foto: Getty Images/C. Kealy
2003: Mapa da Paz
Com o objetivo de desenvolver um roteiro para a paz, EUA, UE, Rússia e ONU trabalharam juntos como o Quarteto do Oriente Médio. O então primeiro-ministro palestino Mahmoud Abbas aceitou o texto, mas seu homólogo israelense Ariel Sharon teve mais reservas. O cronograma previa um acordo final sobre uma solução de dois estados a ser alcançada em 2005. Infelizmente, ele nunca foi implementado.
Foto: Getty Iamges/AFP/J. Aruri
2007: Conferência de Annapolis
Em 2007, o então presidente dos EUA George W. Bush organizou uma conferência em Annapolis, Maryland, para relançar o processo de paz. O premiê israelense Ehud Olmert e o presidente da ANP Mahmoud Abbas participaram de conversas com autoridades do Quarteto e de outros Estados árabes. Ficou acordado que novas negociações seriam realizadas para se chegar a um acordo de paz até o final de 2008.
Foto: picture-alliance/dpa/S. Thew
2010: Washington
Em 2010, o enviado dos EUA para o Oriente Médio, George Mitchell, convenceu o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, a implementar uma moratória de 10 meses para assentamentos em territórios disputados. Mais tarde, Netanyahu e Abbas concordaram em relançar as negociações diretas para resolver todas as questões. Iniciadas em setembro de 2010, as negociações chegaram a um impasse dentro de semanas.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Milner
Ciclo de violência e cessar-fogo
Uma nova rodada de violência estourou dentro e ao redor de Gaza no final de 2012. Um cessar-fogo foi alcançado entre Israel e os que dominavam a Faixa de Gaza, mas quebrado em junho de 2014, quando o sequestro e assassinato de três adolescentes em mais violência. O conflito terminou com um novo cessar-fogo em 26 de agosto de 2014.
Foto: picture-alliance/dpa
2017: Conferência de Paris
A fim de discutir o conflito entre israelenses e palestinos, enviados de mais de 70 países se reuniram em Paris. Netanyahu, porém, viu as negociações como uma armadilha contra seu país. Tampouco representantes israelenses ou palestinos compareceram à cúpula. "Uma solução de dois Estados é a única possível", disse o ministro francês das Relações Exteriores Jean-Marc Ayrault, na abertura do evento.
Foto: Reuters/T. Samson
2017: Deterioração das relações
Apesar de começar otimista, o ano de 2017 trouxe ainda mais estagnação no processo de paz. No verão do hemisfério norte, um ataque contra a polícia israelense no Monte do Templo, um local sagrado para judeus e muçulmanos, gerou confrontos mortais. Em seguida, o plano do então presidente dos EUA, Donald Trump, de transferir a embaixada americana para Jerusalém minou ainda mais os esforços de paz.
Foto: Reuters/A. Awad
2020: Tiro de Trump sai pela culatra
Trump apresentou um plano de paz que paralisava a construção de assentamentos israelenses, mas mantinha o controle de Israel sobre a maioria do que já havia construído ilegalmente. O plano dobrava o território controlado pelos palestinos, mas exigia a aceitação dos assentamentos construídos anteriormente na Cisjordânia como território israelense. Os palestinos rejeitaram a proposta.
Foto: Reuters/M. Salem
2021: Conflito eclode novamente
Planos de despejar quatro famílias palestinas e dar suas casas em Jerusalém Oriental a colonos judeus levaram a uma escalada da violência em maio de 2021. O Hamas disparou foguetes contra Israel, enquanto ataques aéreos militares israelenses destruíram prédios na Faixa de Gaza. A comunidade internacional pediu o fim da violência e que ambos os lados voltem à mesa de negociações.
Foto: Mahmud Hams/AFP
2023: Terrorismo do Hamas e retaliações de Israel
No início da manhã de 7 de outubro, terroristas do grupo radical islâmico Hamas romperam barreiras em alguns pontos da Faixa de Gaza, na fronteira com Israel, e, em território israelense, feriram e mataram centenas de pessoas, além de sequestrarem mais de uma centena. Devido a isso, Israel declarou "estado de guerra" e iniciou uma série de bombardeios, deixando partes da Cidade de Gaza em ruínas.