1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

"Falta de punição possibilita novas tentativas de golpe"

28 de novembro de 2024

Para Francisco Carlos Teixeira da Silva, impunidade alimenta tramas golpistas no Brasil. Segundo o historiador, divisão interna das Forças Armadas impediu que plano de Bolsonaro fosse bem-sucedido.

Braga Netto ao lado de Bolsonaro
Braga Netto foi uma das principais figuras da trama golpista para manter Bolsonaro no poder, segundo a PFFoto: EVARISTO SA/AFP

As investigações da Polícia Federal sobre a tentativa de golpe de Estado no país apontaram o envolvimento de militares de alta patente no esquema, como os generais Walter Souza Braga Netto e Augusto Heleno. O inquérito mostrou ainda que alguns integrantes da caserna se opuseram à trama, como os comandantes da Aeronáutica e do Exército, Carlos de Almeida Baptista Junior e Marco Antonio Freire Gomes.

Segundo o professor aposentado de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Francisco Carlos Teixeira da Silva, esse grupo de militares legalistas teve um papel relevante para evitar que o plano golpista prosperasse. "Esses oficiais consideravam Braga Netto perigoso, e que poderia tentar, inclusive, numa situação extrema, afastar Bolsonaro para ele próprio assumir o poder."

Em entrevista à DW, o historiador afirma que os sucessivos episódios de atentados à democracia no Brasil que ocorreram nos últimos anos mantêm uma "relação umbilical" com a ditadura militar, não só pelo caráter antidemocrático do movimento, mas também pelo fato de que nos dois períodos houve militares contrários à ruptura institucional.

DW: Por que parte dos militares que foi consultada não aderiu a esse planejamento de golpe?

Francisco Carlos Teixeira da Silva: Há um elemento bem típico dessa situação, no qual grande parte desses comandantes importantes temiam enormemente a influência dominante do general Walter Braga Netto, considerado por muitos deles não só um oficial sem prestígio, carreirista, mas perigoso, e que poderia tentar, inclusive, numa situação extrema, afastar Jair Bolsonaro para ele próprio assumir o poder. A desconfiança com Walter Braga Netto era enorme. A expressão que esses oficiais utilizaram conversando comigo foi que Braga Netto liderava a ralé do Exército.

Alguns desses oficiais com quem eu conversei ontem me falaram que estavam preparados inclusive para pegar em armas, para enfrentar armados o Braga Netto se a tal junta que seria montada com o Augusto Heleno e o general Mário Fernandes para dar posse ao Bolsonaro ordenasse a prisão dos oficiais ditos legalistas ou a tomada de quartéis centrais em Brasília. Estivemos assim à borda da guerra civil naqueles dias de dezembro.

Mas se esses oficiais ditos legalistas souberam do planejamento do golpe, por que não denunciaram ou levaram o caso a público?

Nas Forças Armadas, não há nada parecido com um ombudsman, um ouvidor-geral de queixas e erros quando cometidos são pelas hierarquias superiores. O caminho ideal seria que o comandante se dirigisse ao ministro da Defesa e denunciasse. Ocorre que o ministro da Defesa era um dos conspiradores. Ele então teria que se dirigir ao presidente da República, que era o beneficiário do golpe. Então, a situação era meio patética nesse sentido.

A quem esse general iria recorrer? Ele ia dar uma entrevista na imprensa sem ter provas materiais? Essas provas todas que estão aparecendo foram conseguidas com mandados judiciais e com amparo da lei. Como esse general ia conseguir essas provas? Ou ele ia se dirigir ao Supremo Tribunal Federal para dizer que tinha um golpe? Isso não teria nenhum efeito e pareceria uma aventura da parte dele. Eles estavam sofrendo uma pressão naquele momento e tiveram um papel realmente importante em evitar o golpe.

Como situar o papel das Forças Armadas diante da possível participação de militares de alta patente no plano de golpe?

Há algumas organizações militares dentro das Forças Armadas, como a Brigada de Forças Especiais, o Centro de Operações Terrestres, o Centro de Inteligência do Exército, que são absolutamente golpistas, e onde há a dominância de um pensamento que defende a ideia de uma tutela militar sobre a República. É preciso que essas instituições sejam avaliadas e algumas delas, por exemplo, a Brigada de Forças Especiais, deveriam ser dissolvidas. Sem isso não vai haver uma democracia forte e inclusiva no Brasil.

Por que essas instituições estão contaminadas com essas ideias?

Porque depois do fim da ditadura, quando se restabeleceu a democracia em 1988, não foram mudados a doutrina e os currículos dos cursos das academias e escolas militares, que continuaram sendo um Estado dentro do Estado, com essa política importada de Guerra Fria, de anticomunismo, de entender democracia e direitos humanos como socialismo.

E quais as ligações entre o golpe de 1964 e o atual?

Essa filiação entre o golpismo atual e o de 1964 é umbilical. Temos dois exemplos além do próprio Bolsonaro que são muito ilustrativos. A dominância no governo Bolsonaro do ministro do Gabinete de Segurança Institucional, o general Augusto Heleno.

Ele foi ordenança do general Silvio Frota, que em 1977 se rebelou contra o projeto de abertura política, e tentou dar um golpe dentro do golpe, contra o próprio general Geisel. Não funcionou, e ele foi só transferido de posto. Esse é o cara que estaria na junta militar agora. E um grande bisbilhoteiro do golpe, que foi Paulo Figueiredo, neto do último general presidente do Brasil, João Figueiredo. Então vemos uma união que podia ser só de ideias, mas também é de atores que trazem 1964 para 2024.

Além disso, assim como em 1964, hoje há militares legalistas e que se dispuseram com bravura e com risco de vida a enfrentar militarmente o golpe e os desmandos dessa pretensa junta militar que seria criada. É uma divisão importante que existe e que não favorece a ascensão desses militares legalistas. Ao contrário, temos mantido as Forças intocadas e com seus feudos e seus nichos golpistas.

O senhor considera que a democracia no Brasil saiu fortalecida após as tentativas de substituir o governo eleito por uma junta militar?

Eu tenho sérias dúvidas de que as instituições brasileiras sejam sólidas. Em uma democracia, não se conspira para matar os vitoriosos das eleições. Não se invadem os palácios do governo, que são depredados e destruídos por turbas organizadas por tropas militares clandestinas.

A própria bomba nos portões do STF mostra que há alguma coisa muito errada na democracia brasileira. Acho que esse muito errado é a impunidade, porque nunca se puniu golpes no Brasil e isso torna possível a multiplicação dessas tentativas de golpes sucessivos dentro da República brasileira. As forças antidemocráticas são muito fortes, não temos travado um debate pedagógico com a população para explicar que direitos humanos e civis não são socialismo.

Infelizmente, até mesmo o governo Lula se recusa a discutir abertamente esses tópicos fantásticos do conservadorismo, como a proibição do aborto, união civil de homossexuais, ou políticas progressistas como metas antirracistas, proteção dos povos indígenas, do meio ambiente. Temos muita dificuldade em conseguir mobilizar a opinião pública em torno de um consenso dessa pauta democrática mínima em uma democracia moderna e funcional.

Jéssica Moura Escreve sobre direitos humanos, política, ciência e saúde.