Ferruccio Busoni: um músico toscano em Berlim
1 de abril de 2006Ferruccio Dante Michelangiolo Benvenuto Busoni nasceu em 1º de abril de 1866 em Empoli, na região italiana de Toscana. Filho de um clarinetista e de uma pianista de origem alemã, ele foi desde cedo incentivado a estudar ambos os instrumentos.
Logo revelou-se menino-prodígio, nada ficando a dever a um Mozart. Já aos dez anos de idade conquistara reputação como pianista, compositor e improvisador, e em 1878 regia seu próprio Stabat mater. Aos 15 anos, após uma estada de Ferruccio na Real Academia Filarmônica de Bolonha, sua família mudou-se para Viena, onde ele travou contato com o compositor Johannes Brahms.
Fugindo da severa tutela artística paterna, e seguindo o conselho do colega alemão, Busoni partiu para Leipzig em 1886. Na então meca musical, conviveu com a nata dos compositores, de Gustav Mahler a Piotr Tchaikovsky, Edvard Grieg e o inglês Frederick Delius. Foi nessa época que se intensificou seu interesse pela música de Johann Sebastian Bach.
Redescobrindo o eterno Bach
De nosso ponto de vista atual, a história da música ocidental parece impensável sem a figura do genial compositor natural da Turíngia. E quase esquecemos que, após a morte em 1750, Bach esteve relegado ao ostracismo. Durante mais de 70 anos, boa parte de seus manuscritos ficou enterrada em porões úmidos ou foi mesmo vendida a peso pelos herdeiros, como papel de embrulhar peixe!
A partir da redescoberta da Paixão segundo São Mateus em 1829, por Felix Mendelssohn, o renascimento bachiano se deu em diversas "camadas". E Ferruccio Busoni contribuiu decisivamente para esse processo, no final do século 19. Não apenas como pianista de sucesso, mas através da atividade de professor, revisor musical e arranjador, tornou o repertório de Bach acessível a um número maior de músicos e, sobretudo, vivo.
Suas transcrições da obra organística do mestre barroco são verdadeiras recriações. Longe de simplesmente transpor as notas de um instrumento para o outro, Busoni emprega todos os recursos do piano – infinitas nuances de toque, combinações dos três pedais – para reproduzir as riquezas tímbricas do órgão.
Uma prova eloqüente de qualidade dessas "transmutações" da obra de J.S. Bach: em pleno século 21, sua adaptação pianística da Chacone em ré menor (último movimento da Partita BWV 1004, para violino solo) reconquista lugar de honra no repertório dos maiores concertistas.
Continue lendo sobre as conexões com Berlim e com Schoenberg, sobre um tratado musical revolucionário e o lugar de Busoni na história da música.
Berlim, pátria criativa
Em 1894 Ferruccio Busoni estabeleceu-se definitivamente em Berlim. Excetuados os anos de refúgio em Zurique, durante a Primeira Guerra Mundial, ele residirá, até sua morte, em 27 de julho de 1924, no número 11 da Praça Viktoria Luise.
As atividades de pianista virtuose e pedagogo o levaram aos quatro cantos do mundo – de Viena a Moscou, de Boston a Helsinque –, garantindo-lhe fama e dinheiro. Porém a capital alemã permaneceu sua pátria criativa. Ainda que, segundo o musicólogo Edward Dent, deplorando a limitação e o convencionalismo da cena musical local, e apesar do assédio perpétuo dos críticos alemães, Berlim era o único lugar onde Busoni conseguia realizar seus experimentos.
Por volta do início do século 20, o músico italiano gozava de "uma certa posição de notoriedade, embora não de respeito pleno. Seus seguidores eram poucos, mas apaixonadamente fiéis, e seu número aumentava [...] Em tudo o que empreendia em Berlim, ele podia estar certo de atrair atenção, ainda que hostil. A própria solidez da vida musical alemã lhe oferecia uma oposição digna de ser desafiada", comenta Dent.
É portanto na Alemanha que a maioria das composições busonianas são estreadas. De suas quatro óperas, Die Brautwahl (A noiva sorteada) foi apresentada pela primeira vez em Hamburgo, e Doktor Faust, que deixou inacabada, teve estréia póstuma em Dresden, em 21 de maio 1925. Esta última tem despertado atenção crescente, como prova o sucesso da montagem de 2005, em Stuttgart.
Apoiando os novos compositores
Entre suas inúmeras iniciativas artísticas, Busoni organizou uma série de concertos sinfônicos alternativos, dedicados inteiramente a obras contemporâneas ou raramente executadas. Entre 1902 e 1909 realizaram-se 12 programas, incluindo tanto os novos Claude Debussy, Eugène Ysaye, Hans Pfitzner e Béla Bartók, como Franz Liszt ou Hector Berlioz, veteranos porém (ainda) incômodos.
Diversas vezes o compositor toscano considerou incluir no programa o então enfant terrible Arnold Schoenberg, recuando, contudo, diante do conservadorismo dos berlinenses. Ainda assim, essa amizade musical é mais um testemunho da postura progressista de Busoni.
Ele se ocupou intensamente das Klavierstücke op. 11 do revolucionário vienense, estudando-as, discutindo-as e até reelaborando a peça nº 2, numa "versão de concerto". Após a morte de Busoni, Schoenberg o sucedeu à frente da master-class de Composição da Academia Prussiana das Artes de Berlim.
Esboço polêmico
A publicação do Entwurf einer neuen Ästhetik der Tonkunst (Esboço de uma nova estética da arte sonora), em 1907, representa um marco para a arte de vanguarda. E um problema insolúvel para a recepção da figura de Ferruccio Busoni.
Em seu escrito visionário, ele faz desfilar um universo hipotético de melodias, harmonias, ritmos, escalas, formas e instrumentos musicais jamais ouvidos ou sequer imaginados. Como um teclado onde a oitava é dividida em 18 ou 36 intervalos (em vez dos usuais 12 semitons!).
Parte dessas visões só se cumpriria várias décadas mais tarde, com o advento da música eletroacústica. Outras possivelmente permanecerão para sempre no fértil campo da utopia.
Entretanto, em suas composições reais, o toscano não se afastou tão radicalmente quanto se esperaria dos preceitos da forma clássica e da emoção romântica. Pelo contrário: seus modelos continuaram sendo Mozart e Bach (um exemplo óbvio é a Fantasia contrappuntistica para dois pianos, de 1910).
Seus avanços parecem negligenciáveis, diante da ousadia da contemporânea Segunda Escola de Viena (Schoenberg, Alban Berg e Anton Webern) ou de Igor Stravinsky. O veredicto das histórias da música sobre Busoni costuma ser condescendente: "um compositor neoclássico".
Neoclássico cacofônico ou vanguardista retrógrado?
Tal discrepância foi ensejo para o compositor Hans Pfitzner, por exemplo, maldosamente comparar o Esboço de uma nova estética a um romance de Jules Verne, com suas "promessas transcendentais e sextos de tom".
A contradição busoniana entre teoria e prática confunde e frustra até hoje certos críticos: é impossível reduzir o músico a uma ideologia ou sistema, e isto basta para transformá-lo numa figura problemática.
Mas, quem sabe, sua inovação esteja justo nessa ambivalência e nas entrelinhas? Pois, se fosse tão reacionária assim, sua música dificilmente provocaria escândalos como o que marcou a estréia do Concerto para piano e orquestra com coro masculino op. 39, em 10 de novembro de 1904, em Berlim, tendo o próprio Busoni como solista.
O musicólogo Klaus Kropfinger relata que a apresentação terminou em "tumulto selvagem". E o comentário do crítico musical do Tägliche Rundschau soa como a glória de um vanguardista: "Ao longo de cinco movimentos fomos inundados por um dilúvio de cacofonia. [...] Foi horrível!".