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Berlinale

Soraia Vilela11 de fevereiro de 2009

O espectador da Berlinale não passa ileso a discussões sobre a crise econômica mundial e a herança da Guerra Fria neste ano de comemorações dos 20 anos da queda do Muro – dois assuntos que permeiam o Festival de Cinema.

'Em Comparação', de Harum FarockiFoto: Harun Farocki, 2009

Não importa se na mostra especial Winter Adé, que traz filmes feitos no Leste Europeu durante os anos da Cortina de Ferro, ou mesmo numa exibição do ciclo Forum Expanded, que pretende servir de interseção entre o cinema e as artes plásticas dentro do festival: em praticamente todas as mostras em Berlim, há filmes que refletem a crise econômica ou que tratam da história da segunda metade do último século desde o pós-guerra.

Ao lado de temáticas relacionadas ao Oriente Médio, tradicionalmente recorrentes no festival, discernir as feridas do neoliberalismo parece uma das predileções dos cinema hoje. O ápice da discussão se dá em The Shock Doctrine (Doutrina do Choque), baseado no livro de mesmo nome de Naomi Klein e exibido na mostra Panorama.

Chicago Boys: ramificações também no Brasil

O documentário traça as origens das doutrinas desenvolvidas pela chamada Escola de Chicago, encabeçadas por Milton Friedman. Teorias que só puderam ser implementadas mundo afora à custa do uso de tortura e coesão. No longa dirigido por Michael Winterbottom (vencedor do Urso de Prata em 2006 com Caminho para Guantánamo), Friedman aparece como arquiteto de todo um neoliberalismo que se afirmou com o auxílio de uma "terapia de choque", isto é, de violência e repressão através de governos ditatorais, inclusive no Brasil.

Um bom capítulo é dedicado à história do Chile e às intensas ligações entre Augusto Pinochet e líderes europeus, como a ex-premiê britânica Margarete Thatcher. Além disso, The Shock Doctrine cria associações entre a situação da América Latina nos anos 1970 (com toda a gama de ditaduras militares), os países do Leste Europeu depois da derrocada da Cortina de Ferro e o Afeganistão e o Iraque pós-invasões norte-americanas: todos coordenados pela doutrina dos Chicago boys.

Work in progress com fim incerto

'The Shock Doctrine', de Michael Winterbottom, na mostra PanoramaFoto: berlinale

The Shock Doctrine é considerado pelo diretor como um work in progress, tendo sido exibido em Berlim até mesmo sem os créditos finais. Mesmo sendo mais um manifesto político que uma obra cinematográfica, o filme, que termina em aberto sintomaticamente após a posse de Barack Obama, não deixa de ser uma janela de reflexão no momento atual. Apesar do incômodo uso de um off didático, todo o tempo permeado por uma trilha melodramática, The Shock Doctrine não deixa de confrontar o espectador com os bastidores da história recente e atiçar sua curiosidade a respeito das cenas dos próximos capítulos desta obra aberta.

Tijolos em comparação

Para o cineasta Harun Farocki, um dos artistas contemporâneos mais respeitados na Alemanha hoje, os tijolos vão além da mera construção de espaços. Em Zum Vergleich (Em Comparação), exibido no Fórum do Festival de Berlim, os tijolos escolhidos pelo diretor organizam relações e arquivam saber.

E a forma de lidar com eles é distinta em diversas partes do mundo: enquanto a construção de uma escola em Burkina Faso se dá com a participação de toda a comunidade de uma localidade, sem gasto de qualquer combustível ou material importado, nos universos high tech alemão ou suíço a produção se dá quase sem a presença humana.

Mas o que mais salta aos olhos na delicada "comparação cultural" de Farocki é a distinção da mímica, do ruído e do "espírito" daqueles que se dedicam à produção desses tijolos, aspectos que se refletem na geometria do objeto: exato ou irregular, rebuscado ou tosco, feito com prazer ou mecanicamente. E o que o cineasta proporciona em 60 minutos de filme é uma pequena, sutil e prazeirosa "aula de antropologia".

Aldeia de um homem só

Entre os diversos filmes que tocam os conflitos no Oriente Médio exibidos em Berlim, o destaque fica esse ano para The One Man Village (A aldeia de um homem só), do diretor libanês Simon El Habre. O filme, a princípio, não passa de um portrait do tio do diretor, um homem de meia-idade que resiste em seu povoado destruído pela guerra civil que assolou o país. Sem tratar diretamente do conflito armado, o documentário é acima de tudo um registro da memória coletiva, que revela com cuidado as cicatrizes deixadas pela guerra na população.

'The one man village', de Simon El Habre, na mostra FórumFoto: berlinale

As magras contribuições brasileiras de 2009 ficaram até agora por conta da participação dos jovens videoartistas Melissa Dullius e Gustavo Jahn, com Triangulum, que faz parte da mostra Forum Expanded, e do decepcionante Vingança, dirigido por Paulo Pons.

O longa é situado num Rio de Janeiro contemporâneo, em que os protagonistas – todos brancos e de feições européias – fazem férias na Austrália e na Finlândia, deixam o carro aberto na rua e não trancam a porta de casa. Um desvio do real que, se fosse colocado no roteiro como tal, talvez até tivesse alguma pertinência. No entanto, gratuito como é, só traz constrangimento ao espectador que conhece a cara do Brasil. Mesmo sabendo que o que ele vê na tela não passa de mera ficção.

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