"Figuras políticas como Marielle incomodam"
16 de março de 2018O assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, do PSOL, gerou comoção em todo o país e teve forte repercussão internacional. Conhecida por lutar pelos direitos das mulheres, pela inclusão social e contra a violência, a parlamentar foi morta a tiros no Rio de Janeiro na noite desta quarta-feira (14/03), ao sair de um evento para ativistas negras.
Para a cientista social Flávia Rios, da Universidade Federal Fluminense, figuras políticas como a de Marielle incomodam "porque fazem algo de concreto na política", denunciando casos de abuso.
"Por vários fatores associados, na minha leitura, a morte de Marielle foi um assassinato político", afirma Rios, uma das principais pesquisadoras atuais dos movimentos de mulheres negras nas periferias.
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Na entrevista, a cientista social analisa também a importância da presença de mulheres na política, sobretudo negras. "Ao assassinarem Marielle, assassinaram simbolicamente todas as mulheres que representam politicamente pautas coletivas."
DW Brasil: A morte de Marielle joga luz sobre uma questão inconveniente: menos de 10% do Congresso Nacional é composto por mulheres, sendo que somente 2% delas são negras. Mesmo baixa, a pouca representação das mulheres na política institucional parece estar gerando incômodo.
Flávia Rios: Sim. A entrada das mulheres na política parlamentar tem representado um novo comportamento, que, apesar de não ser quantitativo, começa a ser qualitativo. Em 2014, houve um padrão nas candidaturas que chamou atenção: houve um boom de candidatas negras como "vice", sobretudo nos governos estaduais; já no nível municipal, em 2016, algumas candidaturas de mulheres feministas e jovens se fizeram notar. Dentre as negras podemos destacar Aurea Carolina, a mais votada em Belo Horizonte, e Marielle Franco, no Rio de Janeiro. As duas se destacam por terem tido votações muito expressivas em dois grandes colégios eleitorais. Contudo, no conjunto das vereadoras eleitas, em termos quantitativos, as mulheres negras são menos que 5% da representação que assumiu as cadeiras legislativas das cidades brasileiras.
Esses dois fatores podem estar associados às cotas femininas nos partidos políticos, em que 30% das candidaturas devem ser de mulheres: enquanto partidos maiores recrutam mulheres para serem apenas "candidatas laranjas", pois precisam driblar a lei de cotas, os partidos menores atraem mulheres de lideranças e movimentos feministas.
As que se elegeram em 2016 estavam do lado qualitativo e formaram um tipo de atuação que elas chamam de "mandatos coletivos": independentemente do seu partido, elas representam coletivamente pautas das periferias, da negritude, das mulheres, da juventude, da população que tem pouco acesso ao ensino de terceiro grau e do movimento LGBT. Por terem essas pautas, são parlamentares que atuam com denúncias.
DW Brasil: Logo, Marielle incomodava enquanto parlamentar.
Flávia Rios: Sim. Figuras políticas como a Marielle incomodam porque fazem algo de concreto na política: denunciam casos pontuais de abuso e violência justamente num espaço em que se pode ter alguma mudança ou efeito, o parlamento.
Há de se considerar, ainda, que Marielle estava denunciando os abusos das ações policiais no Rio de Janeiro em territórios periféricos e negros, denunciando inclusive casos ligados à intervenção militar nas favelas. Por vários fatores associados, na minha leitura, a morte de Marielle foi um assassinato político.
DW Brasil: Você pode falar mais sobre o surgimento desses "mandatos coletivos" aos quais você se referiu?
Flávia Rios: É um comportamento que emergiu em 2016, mas que é resultado de uma construção em curso, iniciada em anos anteriores: com a maior mobilização dos movimentos feministas e da grande participação civil das brasileiras nas ruas, nos bairros, na periferia, etc. Está ocorrendo uma transição de mulheres da política não institucional para a institucional.
São mulheres que vieram de uma mesma origem, geralmente das periferias e que tiveram acesso ao estudo por causa dos cursinhos populares. Por terem vindo desses espaços, essas parlamentares orientam sua atuação política junto aos movimentos sociais e às populações de pouca participação política. Marielle desempenhava um "mandato coletivo".
Por isso, ao assassinarem Marielle, assassinaram simbolicamente todas as mulheres que representam politicamente essas pautas coletivas. Fica uma sensação que talvez seja um dos objetivos do crime: a de que cada uma de nós, mulheres negras, fomos assassinadas junto com Marielle.
DW Brasil: Quais mulheres negras desempenham esses "mandatos coletivos"?
Flávia Rios: Podemos destacar em âmbito federal a Benedita da Silva [atual deputada federal]. Nos cargos executivos, tivemos a Matilde Ribeiro [foi ministra-chefe da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no governo Lula], a Edna Roland no nível municipal [esteve à frente da Coordenadoria da Igualdade Racial em Guarulhos] e a Djamila Ribeiro [atuou na Comissão da Verdade em São Paulo].
Apesar da presença qualitativa, elas ainda são poucas na política parlamentar. A maioria das lideranças negras está na política não institucional, como é o caso da intelectual Sueli Carneiro, criadora do Geledés [Instituto da Mulher Negra]. Parece-me que esse período de retrocesso violento na política nacional ajuda a barrar a transição das lideranças para a política institucional, como ocorreu com candidatas como a Marielle em 2016, empurrando-as de volta para fora do parlamento. Isso é preocupante porque é na política parlamentar que se projeta a organização da vida social, onde os projetos são elaborados para a sociedade.
DW Brasil: Qual a importância de se ter mais mulheres negras na política parlamentar?
Flávia Rios: Se há baixa representação de mulheres em geral na política, dificilmente pautas como aborto serão elaboradas a ponto de mudar a vida das pessoas. No caso da mulher negra, parcela da população que mais sofre com as desigualdades e com a violência, se não há representação de uma negra na política, as denúncias de abuso contra essa parcela nunca chegarão a integrar projetos de lei.
Como reflexo da baixa representação de negras no parlamento é que, apesar de as pautas dessa população serem concretas no Brasil – como a descriminação racial, a segregação, o genocídio, a pobreza, a violência de gênero e de raça –, elas ainda são as questões mais invisíveis na política parlamentar.
DW Brasil: O que significa o assassinato de Marielle levando em conta tanto questões de gênero e raça quanto o momento político?
Flávia Rios: Primeiro, é interessante notarmos que [antes de ser morta] a vereadora saía do evento de uma organização de mulheres negras, onde havia discutido as possibilidades das mulheres romperem o silêncio e as estruturas sociais, conquistarem voz e assumirem posições de poder. Em razão disso, podemos dizer que Marielle morreu em luta, na saída de um trabalho político, em pleno centro do Rio de Janeiro.
Outro fator simbólico é a data da morte: ela foi assassinada uma semana após as pautas das mulheres estarem em alta por causa do dia 8 de março.
Por último, temos o momento conturbado político iniciado com a destituição da primeira presidente do país [Dilma Rousseff]. A crise política trouxe consigo um aumento dos homicídios contra mulheres e negros no Brasil que não podemos ignorar, além de uma onda de assassinatos de lideranças de movimentos sociais, principalmente no campo. O assassinato de Marielle é mais um numa onda de violência contra lideranças políticas sociais.
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