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Filme de Ozon expõe abuso sexual na Igreja da França

9 de fevereiro de 2019

Estreando na Berlinale, "Graças a Deus" enfoca escândalo de acobertamento de pedofilia por parte do clero católico de Lyon. Padre acusado de abusar de 80 meninos tenta sustar lançamento do filme na França.

Cena de "Grâce à Dieu", de François Ozon
Igreja Católica como cúmplice: cena da produção dirigida por François OzonFoto: Jean-Claude Moireau

Tantos filmes já abordaram o tema do abuso sexual por membros do clero que se questiona o que ainda é possível acrescentar. No entanto, o cineasta veterano François Ozon sentiu a necessidade de abordar o mais importante caso de abuso infantil na Igreja Católica na França, até hoje, criando uma obra autêntica que também reflete sua sofisticação como diretor.

Grâce à Dieu  (Graças a Deus) estreou na quinta-feira (07/02) no Festival Internacional de Cinema de Berlim (Berlinale), apenas algumas semanas antes da divulgação de uma importante decisão jurídica relacionada ao caso. O filme, com elementos de ficção, está inevitavelmente associado ao escândalo de abuso.

As acusações envolvem membros da Igreja que acobertaram os delitos de um padre acusado de molestar sexualmente pelo menos 80 garotos. O arcebispo de Lyon, cardeal Philippe Barbarin, um colaborador voluntário da diocese e cinco outros membros da hierarquia católica foram indiciados por ocultação de abuso sexual de menores e omissão de assistência.

Haverá um julgamento separado do padre acusado, Bernard Preynat, que está sob supervisão judicial por agressão sexual desde seu indiciamento, em 2016, mas a data ainda não foi fixada.

Cineasta francês François Ozon em coletiva de imprensa na Berlinale 2019Foto: picture-alliance/dpa/E. Chesnokova

Ozon ficou famoso com obras centradas em figuras femininas fortes, como Sob a areia (2000) e 8 mulheres  (2002). Desta vez, antes mesmo de escolher o tema do filme, ele se decidira perseguir um projeto sobre personagens masculinas.

Então ele descobriu o website da associação La Parole Libérée (A palavra libertada), que coleta testemunhos de vítimas de abuso e e-mails enviados a membros da hierarquia católica de Lyon a respeito da inação da Igreja, apesar de, durante anos, as ações do padre terem sido um segredo público.

Após entrevistar pessoalmente muitas das vítimas e suas famílias, Ozon inicialmente pensou em transformar sua história num documentário. No entanto, percebendo que tal seria redundante, já que muitas dessas histórias já haviam sido narradas diante de câmeras, ele decidiu dar um tratamento ficcional que retrataria melhor a dor das vítimas, ao mesmo tempo protegendo sua privacidade. Mas, embora tenha mudado os nomes de família das vítimas, todas se baseiam em pessoas reais.

Bernard Preynat abriu ação para tentar impedir o lançamento do filme na França, marcado para fevereiro. A psicóloga da Igreja Regine Maire, que organiza a assistência às vítimas, também está processando a produção para ter seu nome removido.

Numa coletiva de imprensa em Berlim, antes da estreia mundial de Grâce à Dieu, o diretor afirmou que sua narrativa se mantém fiel aos fatos e não poderia ter impacto sobre o julgamento. "Tudo de que falo no filme já apareceu na imprensa francesa", frisou.

A estrutura em três partes enfoca personagens com histórias e funções bem diferentes, "que passam o bastão um a outro, como numa corrida de revezamento", explicou Ozon.

Alexandre, interpretado por Melvil Poupaud, respeita profundamente a Igreja, enquanto instituição. Ele tem 40 anos, uma bem-sucedida carreira num banco e, juntamente com a zelosa esposa, cria os cinco filhos dentro da fé católica. Depois de descobrir que o padre que abusou dele na infância ainda está trabalhando com crianças, ele pressiona membros da hierarquia eclesiástica para que o expulsem. Quando isso não ocorre, ele apresenta queixa contra o cardeal de Lyon.

Durante a investigação subsequente, é envolvida outra vítima, François (Denis Ménochet). Ateu, ele não poupa a reputação da Igreja, divulgando o caso amplamente e fundando uma associação para localizar tantas vítimas quanto possível. Como na maioria dos casos o prazo de prescrição de 20 anos já expirou, é essencial para o processo obter testemunhos recentes.

François (Denis Ménochet) permaneceu fiel ao catolicismo, apesar do abuso na infânciaFoto: Jean-Claude Moireau

O atual inquérito judicial acarretou, aliás, que, em agosto de 2018, o período em que é possível adotar ação legal fosse estendido de 20 para 30 anos após a vítima ter alcançado a maioridade.

Enquanto os dois primeiros homens em Grâce à Dieu  são bem de vida, a terceira personagem central, Emmanuel (Swann Arlaud), vem de um histórico familiar pobre, e a dor causada pelo abuso sexual teve impacto maior sobre o resto de sua vida.

O nuançado retrato traçado por Ozon desses três homens e respectivas famílias demonstra como a educada, conservadora burguesia de Lyon também evitou cautelosamente confrontar a poderosa instituição católica, cujas estruturas estão entrelaçadas com seus próprios privilégios e riqueza.

A cena de abertura mostra o cardeal no terraço da basílica de Lyon, revelando uma espetacular vista, uma metáfora visual do poder que a Igreja ainda detém sobre a cidade no centro-leste da França, um berço da cristandade desde o século 2º.

Fora as tomadas externas, Ozon e seus produtores nem tentaram obter permissão para filmar nas igrejas da cidade, trabalhando, em vez disso, na Bélgica e Luxemburgo, pois queriam manter-se livres da influência do clero. Está planejada para a segunda semana de fevereiro uma pré-estreia de Grâce à Dieu  em Lyon. O cineasta diz-se curioso de ver se o cardeal Barbarin comparecerá.

Outros membros da Igreja Católica já agradeceram a Ozon por agitar os ânimos. Ele acredita que grande parte do clero está torcendo por uma mudança real: "Muitos católicos comuns estão fartos de sua religião ser associada a pedofilia, e querem que a hierarquia dê conta do problema, de uma vez por todas."

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