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Filme sobre Amazônia convida a "Pisar suavemente na Terra"

11 de novembro de 2023

Documentário conduzido pelo escritor indígena Ailton Krenak mostra a luta diária de pessoas que defendem a floresta em diferentes regiões da Amazônia

Área desmatada na Amazônia
Área desmatada na AmazôniaFoto: Eraldo Peres/AP Photo/picture alliance

Em contextos distintos, povos da Amazônia partilham histórias de destruição. A chegada de grandes empreendimentos e projetos extrativistas representa o fim da vida como se conhecia para comunidades e espécies locais. O documentário Pisar Suavemente na Terra, que será exibido na Alemanha neste sábado (11/11), joga luz sobre os impactos do "progresso” na região.

A narrativa oferece um mergulho nas histórias de três pessoas que lutam para defender a vida na floresta, na Amazônia brasileira e peruana. Entre as vozes que emergem no filme, a força de Tônkyre Akrãtikatêjê (Kátia) impressiona.

Ela é herdeira de uma luta iniciada há quatro décadas por seu pai, Payaré Akrãtikatêjê, liderança histórica de seu povo. Falecido em 2014, ele liderou a resistência à construção da usina hidrelétrica de Tucuruí (PA) pela ditadura militar, iniciada nos anos 1980.

Gerações de luta

A oposição ao projeto quase custou a vida a Payaré, alvo de uma emboscada em que foi atacado a facas. Ameaças e perseguições foram uma constante em sua vida, desde que se colocou no caminho do governo. Apesar da intensa luta, a comunidade se viu obrigada a deixar o território, inundado pela barragem.

Sem escolha, os indígenas foram realocados na Terra Indígena Mãe Maria, em Marabá (PA). Kátia e sua família ainda residem no local, que hoje é atravessado por uma estrada, dois linhões de energia e uma ferrovia da Vale. Desde cedo, ela entendeu que o modo de vida de seu povo não era bem visto fora da aldeia.

No filme, ela se recorda da vez em que o pai foi ao cartório para registrar os filhos, em 1979. Payaré ouviu que nomes indígenas não eram "cristãos” e, portanto, seria preciso escolher outros. Foi assim que Tônkyre virou Kátia no registro civil, nome pelo qual se apresenta aos cupen (brancos).

Ailton Krenak, autor de Ideias para adiar o fim do mundo.Foto: Neto Gonçalves

O território reduzido a fragmentos em nada lembra a vida comunitária que ela viveu desde a infância. Desde cedo, Payaré a encarregava de cuidar dos irmãos e ensinou a filha todas as tarefas consideradas "de homem”. Kátia é a primeira mulher a ocupar o posto de cacique no povo Gavião Akrãtikatêjê.

"Meu pai dizia para mim: tu vai ser uma liderança. Ele me preparou para passar fome, sede, me treinava para correr na praia e trabalhar igual a um homem”, recorda. "Ele dizia para mim: tu não pode morrer. Tu tem que escapar. Se quiserem matar, deixa matar os teus irmãos, e tu foge para contar a história”.

O documentário acompanha a sua luta para manter a comunidade conectada com a vida na terra e as tradições culturais em meio à sedução do "dinheiro fácil”, oferecido pelas indenizações de grandes empresas e atividades ilegais.

"Eu busco a autonomia de caminhar com a minha própria perna e dizer para a Vale: eu não preciso disso que tu me dá, porque eu tenho condição de trabalhar”, diz. "Eu falo que esse povo nosso precisa acordar. É não se vender. Precisa ser inteligente, trabalhar com a terra”.

Apesar do chamado feito pela cacica, o desafio se mostra crescente na região. As atividades ilícitas são fortalecidas pela presença cada vez maior do narcotráfico, ao passo que megaprojetos continuam na pauta do governo federal. É o caso da Ferrogrão, projeto de ferrovia que conecta o Mato Grosso com o porto de Miritituba, no Pará.

Um convite: dançar a vida

Ao longo do filme, o cenário de desolação social e ambiental contrasta com a força e alegria dos povos que buscam um pisar mais suave sobre a Terra. Em meio às narrativas sobre presente e passado, surge a reflexão sobre futuros possíveis, conduzida pelo pensamento ancestral de Ailton Krenak, autor de Ideias para adiar o fim do mundo.

Na cena de abertura, sua voz acompanha a viagem por um igarapé na Amazônia. "Os humanos estão aqui numa festa para comer o mundo. Por mais que essa festa demore, tem uma hora que vai acabar o bolo”, alerta. "A gente não veio ao mundo para comer o mundo. A gente veio ao mundo para dançar a vida, a experiência da vida com outros seres”.

Em entrevista à DW Brasil, o escritor recém-eleito para a Academia Brasileira de Letras demonstra ceticismo quanto a uma mudança de curso, no Brasil e no mundo. Embora o governo Lula tenha retomado uma agenda de preservação ambiental, Krenak rechaça ideias conciliatórias, como o desenvolvimento sustentável e a bioeconomia.

"É como se eles quisessem fazer uma conversa fora do domínio da economia capitalista, que é predatório. O governo pode cometer um erro de esquizofrenia ao tentar lidar com a complexidade climática e o faturamento da economia ao mesmo tempo. Não dá para chutar a bola e defender ela no gol”, critica.

A usina hidrelétrica de Tucuruí (PA), cuja construção foi alvo de luta de indígenasFoto: Wikimedia/Agência Brasil

Pisar Suavemente na Terra é dirigido por Marcos Colón, realizador de Beyond Fordlândia e professor na Universidade da Flórida. O cineasta brasileiro está na Alemanha para a exibição do longa na mostra competitiva do Greenmotions Film Festival, neste sábado (11/11).

"O filme busca fazer um convite a esse pisar suave sobre a Terra, que implica uma mudança de postura e de relacionamento com o mundo. A ideia é nos fazer refletir sobre nossas escolhas, pois são as decisões de hoje que irão determinar nosso futuro”, explica Colón, em entrevista à DW Brasil.

Seu plano original era gravar um documentário sobre a pesca ilegal na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, próximo ao local onde o jornalista Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira foram assassinados em junho de 2022. Um "convite” para que ficasse longe dali o fez mudar de foco e apostar na força de narrativas pessoais.

"Contar histórias é a forma mais poderosa de nos tirar da insensibilidade, ao abrir espaço para outros saberes, conectar com o outro e nos tirar dessa racionalidade hermética. Ao ouvir histórias, somos capazes de ‘sentipensar'”, afirma o cineasta.

Corresponsabilidade pela Amazônia

No documentário, Ailton Krenak passeia de canoa pelo que sobrou do Watu, como o rio Doce, em Minas Gerais, é conhecido entre os Krenak. As águas que transportavam vida em abundância lembram hoje a morte da bacia hidrográfica, consequência do rompimento da barragem da Vale em Mariana, em 2015.

"Seria interessante juntar todos os engenheiros das melhores universidades do planeta e perguntar o que eles têm para oferecer, além de mais do mesmo: mais ferrovias, portos, aeroportos, usinas”, provoca o escritor, ao lembrar que executivos da empresa receberam bonificações após a tragédia.

A influência do poder econômico nas dinâmicas de exploração da Amazônia levanta um debate sobre responsabilização: a quem serve um modelo de progresso que causa destruição no presente e impacta a possibilidade de futuro?

Para Ailton Krenak, o envolvimento com o problema e a criação de soluções ultrapassa em muito o envio de repasses financeiros e outras iniciativas de apoio dos países ricos.

"A Europa acha que faz caridade, tirando um pouco de sua fortuna para ajudar os outros que estão afundando. Mas é ela que afunda o mundo. A gente deveria questionar essa ideia de ajuda e começar a pensar em corresponsabilidade de quem faz a governança global”, afirma à DW.

Após a exibição no circuito de festivais, Pisar Suavemente na Terra chegará a plataformas de streaming no Brasil no primeiro trimestre de 2024.

 

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