Em Berlim, Uranium Film Festival premia curta sobre maior acidente radiológico do mundo, registrado em Goiânia, há 30 anos. Após festival, exposição de fotos históricas vai rodar o país.
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Há dois anos, o diretor de arte Benedito Ferreira saiu em busca de um fantasma que assombrava a sua vizinhança: a história da contaminação e mortes provocadas pelo elemento radioativo césio-137, classificado como o maior acidente radiológico do mundo, há 30 anos.
Morador da região central de Goiânia, o diretor de arte transformou o tabu no curta Algo que fica, premiado neste domingo (15/11) no encerramento da sexta edição do Uranium Film Festival, em Berlim.
"As pessoas em Goiânia não falam sobre isso", diz Ferreira. "O filme é de ficção, feito para ser como uma provocação, para que as pessoas, depois de assistir, saiam em busca de mais informação".
A história mostra jovens preparando a inauguração de um museu em memória das vítimas no local onde a cápsula com o elemento radioativo foi aberta, na rua 57. Em paralelo, a rotina de um idoso doente é apresentada ao espectador.
Iniciado no Brasil há sete anos, o festival de cinema chama a atenção para os riscos da cadeia nuclear – um assunto que tem ocupado as manchetes recentemente impulsionado pela troca de ameaças entre Estados Unidos e Coreia do Norte.
"A intenção do festival é educar, informar, dar voz para assuntos e pessoas esquecidos e que, de alguma maneira, foram afetadas pela questão nuclear", afirma Norbert G. Suchanek, fundador e diretor. "Nós vivemos numa era atômica. E acreditamos que a arte é uma forma eficiente de abordar essa discussão", complementa Márcia Gomes, cofundadora.
O francês Larbi Benchiha também foi premiado, por seu documentário Bons Baisers de Moruroa, que relata o impacto dos testes com bombas nucleares conduzidos pelo governo da França no Atol Moruroa – antiga colônia francesa – no Pacífico.
Cinema e exposição itinerante
Odesson Alves Ferreira, sobrevivente e membro da diretoria da Associação de Vítimas do Césio-137, participou do festival em Berlim. A história dele é contada em fotos na exposição que acompanhou as sessões, muitas vezes seguidas por debates com o público.
"As pessoas me fazem perguntas curiosas, querem saber por que toquei no césio, por exemplo", conta sobre a interação com os alemães. "É importante estar aqui para contar uma história triste que não pode ser esquecida", comentou sobre a ida a Berlim, seu primeiro voo internacional.
A exposição menciona a visita a Goiânia de Winfried Koelzer, físico alemão do Centro de Pesquisa Karlsruhe. Segundo reportagem do New York Times publicada em 1987, Koelzer sugeriu que o governo usasse robôs no trabalho de descontaminação devido ao nível de radiação. Odesson Alves Ferreira, que encontrou o pesquisador em diversas ocasiões naquela época, diz que as sugestões de Koelzer nunca foram postas em práticas e que ele foi convidado a se retirar do Brasil pelas autoridades.
As fotos organizadas pelos curadores do festival irão viajar pela Alemanha numa exposição itinerante e devem passar por escolas, universidades e institutos.
Dentre os 28 filmes apresentados, o documentário Cesium I blodet, do sueco Lars Westman, foi exibido pela primeira vez na Alemanha. O jornalista, que chegou a Goiânia logo após o reconhecimento oficial do acidente radiativo, reuniu imagens impressionantes dos trabalhos de descontaminação e das vítimas.
Westman refez as entrevistas três e 15 anos após a catástrofe, colheu depoimentos de Devair Alves Ferreira e Ivo Alves Ferreira, irmãos de Odesson. Ivo era pai da menina Leide das Neves, a primeira a morrer. Dias depois da última gravação, ele faleceu.
O filme, de 70 minutos, ficou pronto em 2009. Segundo o diretor do festival, nenhum canal de televisão – no Brasil ou na Suécia – quis exibir o material.
Problema global
Na plateia, Sebastian Pflugbeil, presidente da Sociedade Alemã para Proteção contra Radiação, veio em busca de mais detalhes da tragédia brasileira. "Acredito que esse caso do césio 137 não é conhecido na Alemanha", opina.
Segundo o físico, a sociedade foi fundada após o acidente nuclear de Chernobyl, em 1986, e atuou para que os riscos nunca sejam ignorados por empresas que atuam no setor e pelo governo. "Tantos anos se passaram, mas algo não muda: não se pode parar uma fonte de radiação", comenta.
Criado na antiga Alemanha Oriental, onde estudou física e se tornou um dos raros especialistas no assunto naquela parte do país, Pflugbeil acredita que descaso e demora de governos em reconhecer vítimas da radiação – como relatado por Odesson Alves Ferreira – não é algo exclusivo do Brasil.
"Os trabalhadores das usinas de urânio da antiga Alemanha Oriental continuam brigando até hoje para que sejam reconhecidos como vítimas. Eles têm muitas doenças e tipos de câncer que, até hoje, não foram reconhecidos pelas autoridades como associados ao trabalho na mina de urânio", comenta Pflugbeil sobre casos registrados na Saxônia e na Turíngia.
Cronologia do acidente com Césio-137 em Goiânia
Pior acidente radiológico da história deixou 249 pessoas com contaminação significativa e seis mil toneladas de lixo radioativo. Veja a cronologia do caso, cujos resíduos ainda emitirão radiação pelos próximos 300 anos.
Foto: DW/N. Pontes
O começo nas ruínas
As versões sobre o acidente têm algumas variações. Segundo relatos e um relatório da Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA), dois catadores encontraram em setembro de 1987 um aparelho usado em radioterapia abandonado desde 1985 no antigo prédio do Instituto Goiano de Radioterapia. Sem saber do perigo, Wagner Pereira e Roberto Alves levam o objeto na esperança de ganhar algum dinheiro.
Foto: CRCN-CO/CNEN
Transporte até o ferro-velho
Entre 10 e 13 de setembro de 1987, Wagner e Roberto transportam o equipamento, que pesava mais de 200 quilos, num carrinho de mão. A peça com a fonte radioativa, contendo 19 gramas de césio-137, é levada até o ferro-velho de Roberto, na rua 57. Ele e os funcionários passam alguns dias tentando desmantelar o equipamento.
Foto: CRCN-CO/CNEN
O rompimento na rua 57
Em 13 de setembro de 1987, o cabeçote é rompido. No seu interior, os funcionários do ferro-velho encontram um recipiente de metal. Dentro da "marmita", como chamaram o recipiente, estava armazenado césio-137, que já começava a espalhar contaminação. No mesmo dia, Roberto e Wagner têm náusea e vômitos, mas o diagnóstico é de intoxicação alimentar.
Foto: CRCN-CO/CNEN
Fascínio pelo brilho azul
Em 18 de setembro, a cápsula é vendida para o ferro-velho de Devair Alves Ferreira. Ele se encanta pelo brilho azul do pó misterioso, só revelado no escuro. Na sequência, ele e a esposa, Maria Gabriela, adoecem. Recebem visitas, que são apresentadas ao césio-137 e levam fragmentos do material para casa. No recorte de jornal (foto), Devair aparece na janela de um hospital em Goiânia.
Foto: CRCN-CO/CNEN
Salvo pela falta de brilho
Odesson Alves Ferreira visitou o irmão Devair, já doente. Apresentado ao material misterioso, ele colocou uma pequena fração na palma da mão esquerda, esfregou com o indicador direito, mas não se interessou. "Tive sorte porque ainda era dia, não vi o tal brilho encantador", conta. Ele ficou meses internado, perdeu parte do dedo e fez uma cirurgia experimental para curar a ferida na mão.
Foto: DW/N. Pontes
O primeiro alerta
Desconfiada, Maria Gabriela associa a doença à cápsula. Com a ajuda de um funcionário do ferro-velho, ela transporta o objeto num saco de estopa até a Vigilância Sanitária – de ônibus. Aos funcionários, diz que aquilo "estava matando" sua família. Era 28 de setembro: o césio-137 já contaminava e emitia radiação há 16 dias.
Foto: CRCN-CO/CNEN
A descoberta do acidente radioativo
Em posse de um cintilômetro (similar ao da foto) o físico Walter Mendes vai até o prédio da Vigilância Sanitária verificar a peça suspeita. Ele visitava a cidade e soube dos pacientes doentes que, a essa altura, já começavam a apresentar lesões na pele. Quando se aproxima do saco de estopa, o apontador do cintilômetro dispara. Era 29 de setembro, o acidente radioativo era oficialmente reconhecido.
Foto: DW/N. Pontes
Caçada nuclear
O físico se dirige ao ferro-velho de Devair e constata a contaminação. Com dificuldade, convence a família e vizinhos a deixarem o local. Começa então o isolamento das áreas e a caça aos focos de contaminação, já sob a liderança da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). Na noite de 30 de setembro, é confirmado o césio-137 como fonte radioativa.
Foto: CRCN-CO/CNEN
Tratamento às vítimas
Enquanto isso, 22 pacientes contaminados foram levados para o estádio da cidade. Os casos mais graves eram direcionados para o Hospital de Doenças Tropicais. Em 2 de outubro, seis pacientes foram transferidos em aviões da Força Aérea para o Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. Dentre eles, o catador Wagner Mota (foto). No dia seguinte, outros quatro seguiram o mesmo destino.
Foto: CRCN-CO/CNEN
Estádio como QG
A base da operação da CNEN era o estádio (foto). Mais de 112 mil pessoas foram examinadas no local, 249 apresentaram uma taxa significativa de contaminação. Eles tomavam seguidos banhos e, em alguns casos, recebiam doses de azul da Prússia, testado em 1986 depois do acidente nuclear de Chernobyl. O medicamento eliminava o césio pelas fezes e urina.
Foto: CRCN-CO/CNEN
Destruição e descontaminação
Paralelamente, o trabalho de descontaminação dos focos era conduzido. Casas inteiras foram destruídas, memórias pessoais guardadas em fotos,
documentos e objetos também viraram lixo radioativo. Animais de estimação e plantas foram eliminados. Tudo era colocado em latões de metal provisoriamente, aguardando um destino adequado.
Foto: CRCN-CO/CNEN
A primeira morte
Leide das Neves, 6 anos, foi a primeira vítima a morrer, em 23 de outubro. Ela ganhou o pó brilhante do pai, Ivo Alves Ferreira, brincou com o césio e depois comeu ovo com as mãos sujas. Leide foi atingida com maior grau de contaminação. A mãe dela, dona Lourdes, quase não conseguiu enterrar a filha: a multidão que atirava pedras contra o caixão, revestido de chumbo, precisou ser contida.
Foto: DW/N. Pontes
Mais vítimas do césio
Maria Gabriela, esposa de Devair, foi a segunda vítima do césio. Em 27 de outubro, morria Israel Batista dos Santos, 22 anos. Admilson Alves, 18 anos, faleceu no dia seguinte - ambos trabalhavam no ferro-velho de Devair. Na foto, Israel aparece num jornal da época antes de ser transferido para o hospital Marcílio Dias, no Rio de Janeiro.
Foto: CRCN-CO/CNEN
Lixo radioativo
As seis mil toneladas de lixo radioativo foram armazenados em 4.200 tambores de latão e 1.400 caixas metálicas. Todo o trabalho de descontaminação durou de outubro de 1987 a janeiro do ano seguinte. A escolha do local do depósito também foi polêmica: a pequena Abadia de Goiás, que se emancipou após o episódio, recebeu todo o conteúdo.
Foto: CNEN
Visão do depósito
O trabalho de construção do depósito, erguido no terreno de uma mineradora, levou 10 anos. Até que a obra fosse finalizada, os resíduos ficavam sobre um piso de concreto, cobertos por lona. Da torre de observação, é possível avistar dois montes cobertos por grama. É onde ficam os resíduos, que vão emitir radiação pelos próximos 300 anos.
Foto: DW/N. Pontes
Visitas e monitoramento
O depósito, onde fica a sede da CNEN, se transformou numa espécie de museu do césio-137. Cerca de 6 mil estudantes visitam o local anualmente. Um aparelho instalado recentemente pela IAEA mede a radiação em tempo real e envia os dados para a agência, na Áustria. Os níveis estão dentro da normalidade, diz a CNEN.
Foto: DW/N. Pontes
Depois da descontaminação
O terreno onde funcionava o ferro-velho de Ivo, pai de Leide, foi descontaminado e não sofreu interdição. Atualmente, há moradores no local (foto). No antigo ferro-velho de Devair nada foi construído. Já o terreno da rua 57, onde a cápsula foi rompida, foi desapropriado. A cada 3 meses, técnicos fazem medições e coletas nos locais, que estão livres de contaminação, afirma a CNEN.
Foto: DW/N. Pontes
Brigas na Justiça
Funcionários do Consórcio Rodoviário Intermunicipal (Crisa) atuaram na descontaminação. Dos chefes, receberam a informação de que se tratava de um "vazamento de gás". Foram reconhecidos como radioacidentados apenas em 2002, pela ação do Ministério Publico Estadual. João de Barros, presidente da Associação dos Contaminados e Irradiados do Césio 137, mostra fotos de colegas que adoeceram.
Foto: DW/N. Pontes
Lista de compra
Muitos funcionários do antigo Crisa ainda brigam na Justiça pela pensão federal e acesso gratuito aos remédios. Eles atuaram como motoristas, ajudantes de serviços gerais, mecânicos de máquinas pesadas. Antônio de Abreu Caldera (primeiro à direita), 71 anos, era comprador e se lembra dos produtos que entregava nos canteiros: lonas, motosserras, enxadas, foices.
Foto: DW/N. Pontes
Vítimas invisíveis
Ilza Santos ainda é invisível para o Estado. Os dois filhos dela, Leomar, morto em 1999, e Gilmar, morto em 2005, eram catadores e trabalhavam no ferro-velho de Ivo. Nunca foram reconhecidos como vítimas. À época do acidente, técnicos da CNEN levaram sofá, geladeira, roupas e outros objetos – Ilza jamais foi indenizada. Na foto, ela mostra as panelas que os filhos catadores traziam da rua.