"Fomos lembrados de que somos mortais", diz Olga Tokarczuk
Wojciech Szymanski
30 de setembro de 2020
Para a escritora polonesa Olga Tokarczuk, a pandemia mudou a atitude das pessoas perante a vida. Em entrevista à DW, ela reflete sobre o impacto da covid-19 no mundo.
Anúncio
Quase um ano após receber o Prêmio Nobel de Literatura, a escritora polonesa Olga Tokarczuk vive num mundo dificilmente imaginado naquela época: pandemia, isolamento, incerteza – palavras que hoje fazem parte do cotidiano em mundo todo.
Para muitos, os últimos acontecimentos deram uma impressão de freada no tempo, mas Tokarczuk enxerga além disso. Formada em psicologia, a autora conversou com a DW sobre o atual momento que vivemos, sobre como o novo coronavírus mudou nossa atitude perante a vida e sobre sua missão como escritora.
DW: Olga Tokarczuk, sua vida ganhou impulso depois do Prêmio Nobel. Teria o coronavírus dado uma certa acalmada neste ritmo?
Olga Tokarczuk: Não tenho essa impressão. Criei uma fundação, que iniciou suas operações no início deste ano. Em fevereiro, estive em Ahlbeck o mês inteiro. Depois disso, eu realmente voltei para um mundo um pouco diferente, mas do meu ponto de vista, ainda era um mundo muito intenso. Escrevi, trabalhei na fundação, respondi solicitações, então não tenho a impressão de que meu mundo desacelerou.
Muitas pessoas tiveram uma percepção diferente do coronavírus: não apenas como uma desaceleração, mas como um verdadeiro freio. Provavelmente ainda precisaremos de tempo para avaliar corretamente o que realmente aconteceu. Você já tem alguma ideia do que a pandemia fez a nós, humanos, e às nossas sociedades?
Eu vejo muitos pontos positivos aqui. Sou formada em psicologia e não vejo o mundo da perspectiva da economia ou da sociologia, mas sim da perspectiva da psicologia. Logicamente, a pandemia produziu um claro aumento no nível de intranquilidade. O medo do futuro cresceu e, para as gerações mais novas, todo o processo de amadurecimento foi interrompido, pois as crianças não puderam mais se socializar nessa idade tão importante.
Mas, apesar de tudo, a situação também tem muitas vantagens. A principal é ter restaurado o ritmo natural de nossas vidas, permitindo que muitas pessoas passassem alguns meses com a família – isso eu ouço o tempo todo. E ela nos lembra que temos um corpo frágil. Não se trata do corpo no sentido de boa forma e dieta alimentar, mas sim desta dimensão universal, que evoca o lembrete barroco "memento mori" – o fato de sermos mortais e perecíveis e de não podermos manter tudo. Acho que é uma experiência muito profunda que muda a nossa atitude perante a vida, o mundo e as ações humanas no mundo.
Mas a pandemia também roubou nossos corpos. Refiro-me à maneira como nos comunicamos atualmente. Nos últimos meses, tem se conversado mais virtualmente...
Eu rejeito conversas online e tento evitar tais entrevistas, conferências e reuniões. Elas me parecem muito antinaturais e, paradoxalmente, também nos lembram o que é um corpo e quais sinais são enviados por um corpo vivo. Trata-se de vibrações, de "linguagem corporal". Desse modo, isso que aconteceu nos mostrou a diferença entre a vida corporal, a vida física em toda a sua riqueza, que nem sempre percebemos, e a comunicação pura, que também pode acontecer online.
Qual será o impacto dessa pandemia na arte e na literatura?
Tenho um profundo pressentimento de que vamos viver um flashback do surrealismo, de que, a partir de agora, vamos perceber a realidade de uma forma neossurrealista. O mundo pandêmico e pós-pandêmico de hoje não pode ser entendido sem o uso de um paradoxo, sem ironia. Mas tampouco sem olhar para o passado, quando as pessoas estavam mais familiarizadas com o inesperado e o mortal, tais como pandemias ou fantasmas.
Acredito que o destino retornará à arte; o destino que há muito esquecemos. Nos últimos anos, ele só esteve presente na sociobiologia como algum tipo de maldição genética ou como um gene, mas o significado grego de destino desapareceu completamente.
Este poderá se tornar um momento muito interessante e ainda é difícil avaliar como será. Acredito que a pandemia nos conecta com o passado. Ainda não entendo exatamente como isso funciona, mas pode ter algo a ver com as experiências de nossos ancestrais em tempos difíceis. Embora há alguns anos eu ainda tendesse a olhar para o futuro e reivindicasse utopia e heterotopia, agora sinto que estou mais interessada na conexão com o passado, no fluxo da experiência. E que não se pode distanciar do passado.
Você falou em olhar para o futuro. Em alguns dos seus livros, você já havia escrito sobre tópicos que surgiram este ano, sobre a vingança da natureza, sobre o movimento e a estagnação...
É verdade e isso é um pouco assustador. Não tenho capacidade de avaliar, mas acredito que muitos artistas têm uma espécie de savantismo e espiam a realidade através de uma pequena janela, sendo muitas vezes capazes de dar nome às coisas. Mais tarde, eles se surpreendem quando elas se concretizam.
Falamos sobre a ilha de Usedom como parte dos UsedomerLiteraturtage (Dias de Literatura de Usedom). A fronteira com a Polônia fica a apenas alguns quilômetros de distância. Daí uma pergunta sobre o tema "fronteiras e geografia": quando você recebeu o Prêmio Nobel, havia críticas de que os dois vencedores eram da mesma região geográfica – Áustria e Polônia. É possível classificar a literatura assim geograficamente?
Não, não é. Pessoalmente, fiquei feliz em receber o prêmio junto com Peter Handke. Eu o conheço e aprecio seu trabalho. Se alguém ganha um prêmio a dois, pelo menos que seja com quem se conhece e entende. Assim dá uma sensação de irmandade. Mas justamente quando se trata de romances, usamos nossas ferramentas locais para contar algo universal. Ao avaliar uma obra, considero muito importante que ela também seja compreensível em outras culturas.
Acredito que a literatura, embora use línguas diferentes, busca o que está além da língua, onde não há distinções simples e banais como entre Polônia e Alemanha, por exemplo. Geneticamente, na verdade, é a mesma coisa: as culturas são muito parecidas, a culinária é quase idêntica, talvez com temperos diferentes. O século 20, ou mesmo o 19, são séculos de construção de diferenças, de fronteiras entre as pessoas, de construção de hierarquias e julgamentos. Talvez devamos lembrar que as pessoas são muito mais parecidas do que diferentes.
O mundo não para. O campo de refugiados de Moria pegou fogo, protestos estão ocorrendo em Belarus e as ruas de cidades americanas estão sendo protegidas pela Guarda Nacional. Como você lida com isso? É algo com que você se preocupa bastante?
Sim, penso nisso, lido com isso, me preocupo, tenho medo. Sinto a necessidade de extrair o significado mais profundo disso tudo e avaliar o que vai acontecer. Tento refletir isso em minhas reflexões e na minha escrita. Em tudo que escrevi há um eco do que está acontecendo ao meu redor. Mas sempre tento fazer algo diferente da mídia. Acredito que o trabalho do artista, e principalmente do escritor, é deixar esta ágora consolidada de formação de opinião e propor algo diferente, talvez algo excêntrico ou bizarro, mas definitivamente algo desse outro ponto de vista muito especial. É assim que entendo minha missão como escritora.
Prêmios Nobel de Literatura desde 2000
Os laureados no século 21 não poderiam ser mais distintos. Entre eles, uma sarcástica dramaturga austríaca, o primeiro Nobel turco, um autor chinês controverso, um norueguês que escreve em dialeto minoritário.
Foto: picture-alliance/Effigie/Leemage
2023: Jon Fosse
Jon Fosse recebeu o Nobel por "suas peças e prosa inovadoras que dão voz ao indizível". Além de mais de 40 obras teatrais, o norueguês nascido em 1959 publicou romances, ensaios, coletâneas de poesia e livros infantis. Ele escreve em "novo norueguês", desenvolvido no século 19 a partir de dialetos rurais e falado por apenas 10% da população. Seus livros já foram traduzidos em mais de 40 idiomas.
Foto: Jessica Gow/TT/AFP
2022: Annie Ernaux
Autora de mais de 20 livros, Annie Ernaux é conhecida por seus romances autobiográficos e livros de memórias, em geral curtos e baseados em experiências de classe e gênero. Ao premiar a ffrancesa nascida em 1940, a Academia louvou a "coragem e acuidade clínica com que revela as raízes, estranhamentos e inibições coletivas da memória pessoal".
Foto: Ger Harley/EdinburghElitemedia/picture alliance
2021: Abdulrazak Gurnah
Abdulrazak Gurnah nasceu na Tanzânia em 1948 e desde os anos 60 mora na Inglaterra, onde lecionou Inglês e Literatura Pós-Colonial na Universidade de Kent. A Academia Sueca citou sua "dedicação à verdade e sua aversão à simplificação", em obras que "evitam descrições estereotipadas e abrem nosso olhar para uma África Oriental culturalmente diversa". "Paraíso" é um dos dez romances de sua autoria.
Foto: Ger Harley/StockPix/picture alliance
2020: Louise Glück
A poeta americana Louise Glück foi agraciada em 2020 por sua "voz poética inconfundível que, com beleza austera, torna universal a existência individual". Nascida em Nova York, a escritora fez sua estreia literária em 1968 e, segundo o comitê, ''logo se tornou uma das poetas mais proeminentes da literatura americana contemporânea''. Desde 2011 um poeta não levava o Nobel.
Foto: Robin Marchant/Getty Images/AFP/picture alliance
2018: Olga Tokarczuk, 2019: Peter Handke
Como anunciado, a academia concedeu dois prêmios em 2019. A escritora polonesa Olga Tokarczuk recebeu o de 2018 pela "imaginação narrativa que, com paixão enciclopédica, representa o cruzamento de fronteiras como uma forma de vida". O austríaco Peter Handke ficou com o de 2019 pelo "trabalho influente que, com ingenuidade linguística, explorou a periferia e a especificidade da experiência humana".
2018: escândalos impossibilitam premiação
Em maio de 2018, a Academia Sueca comunicou que o Prêmio Nobel de Literatura não seria concedido naquele ano, depois que alegações de abusos sexuais e escândalos de crimes financeiros mancharam a reputação da organização. Na ocasião, a entidade informou que, no ano seguinte, dois prêmios seriam entregues. Foi a primeira vez desde 1949 que o prêmio não foi concedido.
Foto: picture-alliance/AP Photo/F. Vergara
2017: Kazuo Ishiguro
O escritor britânico nascido no Japão Kazuo Ishiguro foi laureado com o Nobel de 2017. A Academia Sueca destacou a "grande força emocional" de sua obra. "Os escritos de Ishiguro são marcados por um modo de expressão cuidadosamente restrito, independentemente de qualquer evento que ocorra", disse a Academia. Entre seus romances mais famosos está "Os vestígios do dia", de 1989.
Foto: Getty Images/B. A. Pruchnie
2016: Bob Dylan
Em 2016, uma polêmica: o prêmio foi para um cantor e compositor, Bob Dylan. O astro da música folk e do rock foi escolhido por criar "novas expressões poéticas dentro da grande tradição musical americana". Após o anúncio, Dylan silenciou por algumas semanas, o que colocou em dúvida se ele aceitaria a homenagem. Por fim, ele disse que ficou sem palavras, mas optou por não ir à cerimônia.
Foto: picture alliance/dpa/J.Lo Scalzo
2015: Svetlana Alexievitch
Na figura de uma autora bielorussa, o Comitê do Prêmio Nobel reconheceu uma nova forma de autoria. Em suas reportagens e ensaios, Svetlana Alexievitch desenvolveu um estilo literário todo próprio, realizando entrevistas e adensando-as em emocionais colagens da vida quotidiana. Enquanto cronista do sofrimento humano, ninguém documentou a decadência da União Soviética como ela.
Foto: Imago/gezett
2014: Patrick Modiano
Guerra, amor, ocupação, morte são os temas que ocupam o ator francês Patrick Modiano, ao processar as lembranças de sua infância infeliz na Paris do pós-Guerra. O júri do Nobel o elegeu precisamente por essa "muito especial arte da memória". Há muito consagrado em seu país, até ser laureado ele era pouco conhecido em nível internacional.
Para a Academia Sueca, que concede o prêmio anualmente desde 1901, Alice Munro é uma "mestra da crônica contemporânea". Entre as características inovadoras dos contos da escritora canadense está o livre trajeto na linha do tempo. Uma colega americana a classificou como "o nosso Tchecov".
Foto: PETER MUHLY/AFP/Getty Images
2012: Mo Yan
O chinês Guan Moye é melhor conhecido por seu pseudônimo Mo Yan. O Comitê Nobel louvou nele um autor que, "com realismo alucinógeno, combina contos de fadas, história e presente". A decisão foi criticada pelo artista chinês Ai Weiwei, para quem seu compatriota era próximo demais do regime comunista.
Foto: picture-alliance/dpa
2011: Tomas Tranströmer
Em sua justificativa sobre Tomas Gösta Tranströmer, o júri louvou as "imagens comprimidas, esclarecedoras, que apontam novos caminhos para o real". Na década de 60, o poeta sueco trabalhou como psicólogo numa instituição para jovens delinquentes. Seus poemas foram traduzidos para mais de 60 idiomas.
Foto: Fredrik Sandberg/AFP/Getty Images
2010: Mario Vargas Llosa
O autor peruano Mario Vargas Llosa recebeu o Nobel por "sua cartografia das estruturas de poder e seus enérgicos retratos da resistência individual, da rebelião e da derrota". Na América Latina, ele ficou famoso pela frase, pronunciada na televisão: "México é a ditadura perfeita", assim como suas invectivas contra o ex-amigo Gabriel García Márquez, em 1976.
Foto: AP
2009: Herta Müller
Como mais recente laureada germanófona, a teuto-romena Herta Müller foi destacada por, "com a densidade da sua poesia e a franqueza da sua prosa, retratar o universo dos desapossados". Ela também critica em suas obras o autoritário regime Ceaușescu, que até 1989 geriu os destinos da Romênia. Entre seus romances editados em português estão "A terra das ameixas verdes" e "O compromisso".
Foto: Getty Images
2008: Le Clézio
Segundo a Academia Sueca, Jean-Marie Gustave Le Clézio é "o autor da ruptura, da aventura poética e do êxtase sensorial", além de "estudioso de uma humanidade abaixo e acima da civilização dominante". Filho de uma francesa e de um nativo de Maurício, ele considera esse Estado insular no Oceano Índico sua "pequena pátria".
Foto: AP
2007: Doris Lessing
A britânica Doris Lessing publicou tanto romances e contos quanto peças teatrais. A Academia Sueca a saudou como "épica da experiência feminina, que, com ceticismo, paixão e força visionária, colocou à prova uma civilização fragmentada". A hoje nonagenária já se engajou contra a energia atômica e foi opositora eloquente do regime do apartheid na África do Sul.
Foto: AP
2006: Orhan Pamuk
Ao homenagear Istambul, o primeiro ganhador do Nobel da Literatura de nacionalidade turca "encontrou novas imagens simbólicas para o conflito e o entrelaçamento das culturas, em busca da melancólica alma de sua cidade natal". Ferit Orhan Pamuk é o escritor turco mais lido do mundo, com 11 milhões de livros vendidos e traduções em 35 idiomas.
Foto: picture-alliance/dpa
2005: Harold Pinter
O dramaturgo inglês Harold Pinter morreu de câncer pulmonar três anos após receber o Nobel. Com seus dramas, apontou o júri, ele "revelou o precipício sob a conversa fiada do dia a dia", penetrando "no espaço fechado da repressão". Tendo escrito também para a TV e o cinema, ele também foi ator e diretor de várias de suas peças.
Foto: Getty Images
2004: Elfriede Jelinek
A autora austríaca Elfriede Jelinek recebeu o Prêmio Nobel pelo "fluxo musical de vozes e contravozes em seus romances e dramas", em que desmascara os clichês sociais. Um de seus temas centrais é a sexualidade feminina. O romance "A pianista" (1983) foi base para o filme homônimo de 2011, dirigido por Michael Haneke e com Isabelle Huppert no papel principal.
Foto: AP
2003: John M. Coetzee
Segundo o júri, John Maxwell Coetzee retrata "a participação do ser humano na diversidade da existência, de maneira muitas vezes atordoante". Além do Nobel, o autor da África do Sul já recebeu duas vezes o prestigioso Man Booker Prize. Seu romance mais conhecido, "Desgraça" (1999), que trata da era pós-apartheid, foi transformado nove anos mais tarde no filme "Desonra".
Foto: Getty Images
2002: Imre Kertész
O sobrevivente de Auschwitz Imre Kertész foi laureado por uma obra que "contrapõe a frágil experiência do indivíduo à bárbara arbitrariedade da história". O judeu húngaro descreveu em seus romances os horrores dos campos de concentração. Em "Sem destino", uma das mais impressionantes narrativas sobre o Holocausto, ele trabalhou mais de 13 anos.
Foto: picture-alliance/dpa/P. Lundahl
2001: Vidiadhar Naipaul
Uma arte narrativa "em que ele conjuga uma percepção particularmente sensível com meticulosidade irreprimível, para nos obrigar a reconhecer a contemporaneidade das histórias reprimidas": assim o Comitê justificou a escolha de Vidiadhar Surajprasad Naipaul. O indo-britânico tomou como tema a liberdade do indivíduo numa sociedade em ocaso, em diversas regiões do mundo.
Foto: picture-alliance/dpa/D. Giagnori
2000: Gao Xingjian
O primeiro Prêmio Nobel da Literatura do século 21 coube ao chinês Gao Xingjian, escolhido por "uma obra de validade universal", marcada por "amargos insights e riqueza linguística", abrindo novos caminhos para a prosa e o teatro na China. Desde 1987 ele vive e atua em Paris como autor, dramaturgo e pintor.