De inimigo a aliado: antes da visita do papa Francisco, Vaticano é celebrado como mediador na reaproximação entre Havana e Washington. Mas a Santa Sé também deve se atentar às mudanças, não apenas o governo cubano.
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Mesmo antes de o papa Francisco pisar em solo cubano neste sábado (18/09), o saldo de sua viagem é impressionante: devido a sua visita, o governo de Cuba pretende liberar 3.522 prisioneiros. Isso é mais do que somando as duas visitas de pontífices anteriores – Bento 16, em 2012, e João Paulo 2º, em 1998.
Mas não é o suficiente. Após a retomada das relações diplomáticas entre os antigos arqui-inimigos Cuba e Estados Unidos, há agora sinais concretos de uma espécie de "reconhecimento à mediação papal". De acordo com a agência de notícias do Vaticano (Fides), autoridades cubanas concederam pela primeira vez desde 1959 a aprovação para a construção de uma igreja em Havana.
A aproximação católica, no entanto, não impede a perseguição de dissidentes. Em 10 de setembro, cerca de cem ativistas foram presos em Santiago de Cuba, no extremo leste do país. Eles queriam depositar uma carta ao papa Francisco no santuário de peregrinação de El Cobre. Três dias depois, foi decretada a prisão de aproximadamente 40 membros do grupo de defesa dos direitos humanos Damas de Branco.
Perdão em massa e repressão política – as contradições pertencem ao dia a dia da ilha comunista. A Igreja Católica e seus membros foram perseguidos por décadas. O medo segue tão enraizado, que muitos fiéis ainda evitam discussões públicas.
Êxodo de fiéis
"Em 1961, o governo declarou a Igreja Católica inimiga número um de Estado", relembra Cecília Silva*, uma trabalhadora comunitária de Havana. "Somente através da mistura de santos católicos com divindades afro-cubanas, os locais eclesiásticos de peregrinação se mantiveram vivos."
Depois da Revolução de 1959, aproximadamente 300 mil católicos e 30 mil protestantes deixaram a ilha. Dois anos depois, restavam apenas 250 sacerdotes e membros de ordens religiosas. Todas as escolas e hospitais católicos foram estatizados. Cristãos eram tidos como contrarrevolucionários.
Mas os cubanos não abdicaram de sua fé. Eles batizavam seus filhos secretamente, rezavam para os santos religiosamente compatíveis. A figura do Santo Lázaro, por exemplo, corresponde à divindade africana da medicina, Obaluaiyê. E a Nossa Senhora da Caridade do Cobre, padroeira de Cuba, é adorada também como a Afrodite do panteão afro-cubano.
Após a queda do Muro de Berlim, Fidel Castro mudou a Constituição cubana, em 1992, e iniciou a transformação de Cuba de um Estado ateu para um Estado laico. Desde então, católicos podem se tornar membros do Partido Comunista, e comunistas podem se declarar católicos.
Em 2012, durante a visita do papa Bento 16, o irmão de Fidel e novo líder cubano, Raúl Castro, reinstituiu a Sexta-feira Santa como feriado nacional. A aproximação gradual entre antiquados revolucionários comunistas e líderes da Igreja Católica culminou na jogada diplomática do papa Francisco, que, enfim, quebrou o gelo entre Washington e Havana.
Concorrência para os católicos
A aproximação com os Estados Unidos, porém, também resultará num apoio mais intensificado da comunidade eclesiástica americana aos correligionários na ilha. Protestantes e pentecostais são, atualmente, uma minoria. No "mercado religioso" de Cuba, isso significa uma concorrência à dominante Igreja Católica.
"A calma acabou. Em Cuba pode ocorrer um latino-americanização religiosa", prevê o diretor da Missão Evangélica na Alemanha e chefe do departamento latino-americano da organização, Christoph Anders. Assim como no resto da região, afirma, Cuba também pode sofrer uma expansão evangélica com igrejas pentecostais.
Será que João Paulo 2º previu essas consequências quando pronunciou as célebres palavras em sua chegada a Cuba, em 21 de janeiro de 1998, que se tornaram a frase símbolo da mudança? "Que Cuba se abra para mundo, e o mundo se abra para Cuba."
Com o aumento da liberdade religiosa, muitos cubanos carregam agora também a esperança de mais abertura política e liberdade de expressão. A revista digital Convivencia, fundada em 2008 pelo intelectual católico Dagoberto Valdés Hernández, vê a Igreja como pioneira nas mudanças na ilha.
"A real liberdade religiosa não se limita a realizar cultos religiosos", escreve a Convivencia em editorial. "A Igreja precisa ter acesso aos meios de comunicação e poder se envolver política e socialmente, para, assim, implementar o ensino social católico. Ela [a Igreja] é mediadora e sinal de esperança no caminho [de Cuba] para um Estado de Direito."
EUA e Cuba: crônica da rivalidade
Desde a Revolução Cubana, em 1959, Cuba e os Estados Unidos estão em disputa, que já envolveu mercenários, bloqueios navais, sanções econômicas, criminosos e carros de boi.
Foto: picture-alliance/dpa
Bordel dos EUA
Antes da revolução, Cuba era, para muitos americanos, sinônimo de jogos de azar, casas noturnas e outros tipos de entretenimento – como um jantar no Havana Yacht Club (foto). "Cuba era o bordel dos EUA", definiu mais tarde o cientista político americano Karl E. Meyer. Para a população, a ditadura de Fulgencio Batista, no entanto, significava principalmente estagnação, desemprego e pobreza.
Para derrubar o regime já falido, Fidel Castro precisa de apenas um exército de guerrilha de algumas centenas de homens. Em 1° de janeiro de 1959, Batista foge de Cuba, e os rebeldes tomam Havana. Os EUA impõem sanções imediatamente, que vão sendo intensificadas nos anos seguintes. A liderança cubana, então, recorre à União Soviética.
Foto: picture-alliance/dpa
Fiasco na Baía dos Porcos
Uma tropa mercenária de cubanos exilados tentou derrubar o regime em 1961, com ajuda da CIA. A operação foi um fiasco. O Exército Revolucionário Cubano acaba com a invasão na Baía dos Porcos dentro de três dias, afirmando ter feito mais de mil prisioneiros.
Foto: AFP/Getty Images/M. Vinas
À beira de uma guerra nuclear
Devido ao relacionamento abalado entre EUA e Cuba, a União Soviética, passa, de repente, a dispor de uma base localizada a apenas cerca de 150 quilômetros dos Estados Unidos. O Kremlin quer estacionar mísseis na ilha. E, em 1962, a crise cubana deixa o mundo à beira de uma guerra nuclear. Com um bloqueio naval, os Estados Unidos impedem o transporte dos mísseis.
Foto: picture-alliance/dpa
Saúde e educação exemplares
A União Soviética não poupa esforços. Por décadas, Cuba é fortemente subsidiada, recebendo, entre outras coisas, petróleo bruto, que é reexportado pela ilha para obtenção de divisas. Cuba consegue, assim, construir sistemas de saúde e de educação exemplares.
Foto: picture-alliance/dpa
O êxodo dos marielitos
Em 1980, Fidel Castro permite que emigrantes deixem o país a partir do Porto de Mariel, com destino aos Estados Unidos. Cerca de 125 mil cubanos chegam à Flórida. Entre eles, estão alguns que haviam sido libertados pela administração cubana de prisões e hospitais psiquiátricos. A taxa de criminalidade em Miami aumenta drasticamente.
Foto: picture-alliance/Zuma Press/T. Chapman
Dependência açucarada
Por décadas, o embargo dos EUA limita a economia cubana de forma maciça. Além disso, não ocorre diversificação alguma. A cana-de-açúcar permanece sendo, mesmo após a revolução, o principal produto de exportação da ilha. Cuba continua totalmente dependente da assistência da União Soviética, algo que fica bastante claro a partir de 1990.
Foto: AFP/Getty Images/N. Barroso
"Período especial em tempo de paz"
Com o colapso da União Soviética, vem a quebra da economia cubana. Tudo passa a faltar. Fidel Castro declara a época de choque da economia cubana, a partir de 1990, como o "Período Especial em Tempos de Paz". Na ausência de combustível e peças de reposição, bois passam a ser usados como meio de transporte. Desde o final da década de 1990, a Venezuela fornece petróleo a preço baixo ao país.
Foto: AFP/Getty Images/A. Roque
O vai e vem das sanções
Desde 1993, a Assembleia Geral das Nações Unidas apela todos os anos para que os EUA acabem com sua política de embargo. Os EUA apertam e desapertam os parafusos das retaliações de tempos em tempos. Assim, as regulamentações do bloqueio ficam mais rigorosas em 1996 e mais relaxadas em 1999. Em 2004, o presidente George W. Bush endurece as sanções.
Foto: Getty Images/J. Raedle
Um novo capítulo se inicia
Após a libertação do prisioneiro americano Alan Gross e de três agentes cubanos presos nos EUA desde 1998, Raúl Castro e Barack Obama surpreendem o mundo ao anunciar, no dia 17 de dezembro de 2014, que normalizarão as relações diplomáticas entre os dois países e reabrirão suas embaixadas. Obama amplia as exceções ao embargo econômico e comercial sobre a ilha.
Pouco mais de seis meses após o anúncio da retomada das relações diplomáticas, Obama anuncia em 1º de julho de 2015 a reabertura das embaixadas dos EUA e de Cuba em Havana e Washington dentro de alguns dias. Desde dezembro de 2014, passos tomados para a reaproximação incluem a retirada de Cuba da lista de países que financiam o terrorismo e a libertação de presos políticos pelo governo cubano.