França encara passado e abre caminho para reparações
Andreas Noll
8 de junho de 2025
França aprova três novas iniciativas que tentam reconhecer e sanar injustiças históricas cometidas na Indochina, no Haiti e na condenação do militar judeu Alfred Dreyfus.
Descendentes de Alfred Dreyfus acompanham o debate no qual a Assembleia Nacional promoveu postumamente o oficial injustamente condenado a general de brigadaFoto: Antonin Louis/SIPA/picture alliance
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Dois anos após aprovar um polêmico aumento da idade mínima para aposentadoria, a Assembleia Nacional da França aprovou uma resolução não vinculante pedindo o fim da reforma da previdência. A notícia teve grande repercussão política, já que o partido de ultradireita Reunião Nacional ajudou a oposição de esquerda a conquistar maioria na votação, ainda que a decisão não tenha efeitos legais.
A situação reflete a dificuldade contínua do país em avançar com reformas estruturais desde as eleições parlamentares passadas, que deixaram o governo sem maioria absoluta.
No entanto, em apenas uma semana, os parlamentares entraram em um novo consenso e adotaram três textos que reclassificam eventos históricos ou abrem caminho para reparações.
Alfred Dreyfus promovido postumamente
Em 2 de junho, o Parlamento francês votou por unanimidade para conceder postumamente a Alfred Dreyfus o posto de general de brigada. O oficial judeu foi acusado injustamente de traição em 1894, com base em provas falsificadas que sugeriam que ele havia revelado segredos militares à embaixada alemã em Paris. Dreyfus passou quatro anos preso na colônia penal da Ilha do Diabo, na costa da Guiana Francesa.
Alfred Dreyfus, mostrado aqui na década de 1930, é considerado um herói nacionalFoto: epa/AFP/dpa/picture alliance
A dimensão franco-alemã do caso teve implicações explosivas na política externa já naquela época. A origem judaica de Dreyfus, sua ligação familiar com a região da Alsácia e Lorena, então sob domínio alemão após a Guerra Franco-Prussiana, e as tensas relações com a Alemanha fizeram dele um alvo da desconfiança nacionalista que muitos franceses nutriam.
O escritor Émile Zola ficou famoso ao defender Dreyfus em seu ensaio "J'accuse…!" ("Eu acuso"), que teve papel crucial na reabilitação militar e exoneração de Dreyfus em 1906. Ainda assim, após servir na Primeira Guerra Mundial como tenente-coronel, ele foi reintegrado apenas com uma patente inferior.
A promoção póstuma ainda precisa ser aprovada pelo Senado. O deputado francês Charles Sitzenstuhl, do partido do presidente Emmanuel Macron, que apresentou a proposta, defendeu que "O antissemitismo que atingiu Alfred Dreyfus não é algo do passado distante".
Reconhecimento aos repatriados da Indochina
Um dia após a votação sobre Dreyfus, a Assembleia Nacional repatriados da Península da Indochina, após o fim do domínio colonial francês nos atuais Vietnã, Laos e Camboja, em 1954. Na ocasião, cerca de 44 mil pessoas foram levadas à França, entre elas, funcionários coloniais, soldados e suas famílias, tropas aliadas e descendentes de colonizadores franceses com a população local.
Em junho de 1954, recrutas indochineses erguem novas fortificações para as forças coloniais francesas no Vietnã. Repatriados poderão pedir indenizaçõesFoto: AP/picture alliance
Entre 4 mil e 6 mil desses repatriados foram colocados em instalações temporárias, muitas vezes compostas apenas por barracões de madeira sem aquecimento ou saneamento. Eles também foram submetidos a políticas degradantes, como a proibição de sair ou possuir carros e bens de luxo, e sofriam discriminação racial e institucional.
A nova lei prevê apoio financeiro proporcional ao tempo de permanência nestes campos temporários. Estima-se que até 1,1 mil pessoas ainda possam solicitar a compensação.
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Reparações ao Haiti?
Em 5 de junho, a Assembleia adotou uma resolução tratando de uma "dívida dupla" com o Haiti, que remonta a 1825. Naquele ano, a França forçou o país, que havia declarado sua independência em 1804, a pagar uma compensação de 150 milhões de francos ouro.
O valor pagaria o reconhecimento da independência haitiana e visava ressarcir a França pela perda de suas posses coloniais, incluindo os lucros com a escravidão. O Haiti teve que quitar essa "dívida da independência" ao longo de décadas – um fardo econômico considerável que contribuiu para a pobreza e instabilidade na ilha.
A resolução exige reconhecimento, reembolso e reparações ao Haiti. No entanto, o texto não prevê medidas políticas ou financeiras concretas.
França reconhece que cobrança de dívida pressionou finanças do HaitiFoto: Java
Uma tradição de revisitar a história
A França possui tradição em adotar políticas que confrontam o passado. Em 2001, a chamada Lei Taubira, nomeada em homenagem à parlamentar que a propôs, reconheceu o tráfico e a escravidão como crimes contra a humanidade. O tema passou a integrar os currículos escolares no país.
Em outubro de 2006, a Assembleia aprovou um projeto que criminalizava a negação do genocídio armênio de 1915, no Império Otomano, com pena de até um ano de prisão ou multa de 45 mil euros (R$ 285 mil). A proposta não entrou em vigor após ser rejeitada no Senado. Outra iniciativa similar durante o governo do ex-presidente francês Nicolas Sarkozy, embora aprovada nas duas casas, foi declarada inconstitucional pelo Conselho Constitucional em 2012, por violar a liberdade de expressão e de pesquisa.
Os "fuzileiros senegaleses", ou "tirailleurs sénégalais", eram uma infantaria colonial recrutada pelo exército francês durante a Primeira Guerra MundialFoto: The Print Collector/Heritage-Images/picture alliance
Outro exemplo envolve os chamados "tirailleurs senegalais" – soldados africanos que lutaram pela França nas duas guerras mundiais. Durante décadas, muitos receberam pensões significativamente menores do que os colegas franceses, especialmente se moravam fora da França após a descolonização. Só em 2009, o então presidente Sarkozy determinou a equiparação dos benefícios.
Maturidade política ou gestos vazios?
O recente aumento dessas iniciativas gerou interpretações variadas entre cientistas políticos. Alguns veem a disposição de assumir responsabilidades históricas como sinal de maturidade política. Outros destacam que, diante de um Legislativo paralisado politicamente, é mais fácil aprovar iniciativas simbólicas do que reformas estruturais em áreas como aposentadoria, educação ou orçamento.
O mês de junho em imagens
Reveja alguns dos principais acontecimentos do mês
Foto: Leo Correa/AP/picture alliance
EUA entram na guerra no Irã e atacam instalações nucleares
Nove dias após início da campanha militar israelense, o presidente Donald Trump anuncia que aviões dos EUA "obliteraram" três instalações nucleares iranianas e ameaça Teerã com mais ataques se regime não aceitar imposição de um acordo. Um dos alvos foi o complexo subterrâneo de Fordo (foto). Ataques foram confirmados pelo Irã, mas a extensão dos danos ainda é desconhecida. (22/06)
EUA enviam bombardeiros, e tensão no Oriente Médio escala
Apontados como os únicos capazes de bombardear alvos subterrâneos de difícil acesso no Irã, aviões americanos B-2 foram enviados a Guam, uma ilha no Pacífico. Embora motivo do deslocamento não estivesse claro, ele ocorreu num momento em que o presidente americano Donald Trump avaliava a possibilidade de interferir diretamente na guerra entre Israel e Irã. (21/06)
Foto: Matrixpictures/picture alliance
Parlamento britânico aprova legalização do suicídio assistido
A câmara baixa do Parlamento do Reino Unido aprovou um projeto de lei que permite a adultos com doenças terminais encerrarem voluntariamente suas vidas. A votação representa um passo rumo à legalização do suicídio assistido, sendo considerada uma das mudanças mais significativas na política social britânica em décadas. O procedimento já é legal em países como Espanha e Áustria. (20/06)
A escalada militar entre Israel e Irã se agravou no sétimo dia do conflito, quando um míssel iraniano provocou danos ao principal hospital do sul de Israel e ataques aéreos israelenses atingiram uma importante instalação nuclear iraniana. O centro médico Soroka, na cidade de Bersebá, foi atingido por um míssil balístico, deixando vários feridos. (19/06)
Foto: Tsafrir Abayov/Anadolu /picture alliance
Milhares protestam na Argentina contra prisão de Cristina Kirchner
Apoiadores da ex-presidente da Argentina saíram às ruas em defesa da líder peronista, que começou a cumprir seis anos de prisão domiciliar por corrupção. Os manifestantes se concentraram em frente à casa do governo argentino e se espalharam pelas ruas vizinhas. Em discurso, Kirchner prometeu "voltar com sabedoria", apesar de não poder mais se candidatar a cargos públicos. (18/06).
Foto: Gustavo Garello/AP Photo/picture alliance
PF indicia Carlos Bolsonaro e Ramagem por "Abin paralela"
A PF concluiu a investigação sobre esquema de espionagem ilegal de celulares na Abin e indiciou mais de 30 pessoas, incluindo o ex-diretor da agência Alexandre Ramagem e o vereador Carlos Bolsonaro. A investigação mira servidores e políticos que teriam monitorado telefones e computadores de desafetos de Jair Bolsonaro durante seu governo. Ele é acusado de se beneficiar do esquema (17/06)
Foto: Fellipe Sampaio/STF
Agência para refugiados da ONU demitirá 3,5 mil funcionários
O Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (Acnur) anunciou que cortará 3,5 mil empregos – quase um terço de seus custos com a força de trabalho – devido à escassez de recursos, e reduzirá a escala de sua ajuda em todo o mundo após uma queda no financiamento à ajuda humanitária, principalmente dos recursos vindos dos EUA sob Donald Trump. (16/06)
Foto: Florian Gaertner/IMAGO
Milhares protestam nos EUA contra Trump
Uma multidão tomou as ruas de 2 mil cidades americanas em oposição à gestão de Donald Trump, acusado de autoritário pelos manifestantes. O envio de forças federais para reprimir protestos em Los Angeles na última semana e a convocação de um desfile militar que acontece neste sábado em Washington também pautaram as críticas nos atos apelidados de "No Kings" (Sem Reis). (14/04)
Foto: Yuki Iwamura/AP/dpa/picture alliance
Israel e Irã trocam agressões em escalada militar
Israel lançou um ataque contra instalações nucleares do Irã, matando 78 pessoas, incluindo três dos chefes militares do país e dezenas de civis. A ofensiva desencadeou uma troca de agressões sem precendentes entre os países. Em retaliação, a República Islâmica disparou dezenas de mísseis contra Tel Aviv e Jerusalém, furando o Domo de Ferro israelense e ferindo 34 pessoas. (13/06)
Foto: Leo Correa/AP/picture alliance
Queda de avião na Índia deixa mais de 200 mortos
Um avião da Air India com 242 pessoas a bordo caiu em uma área residencial logo após decolar perto do aeroporto de Ahmedabad, no oeste da Índia. Apenas um dos passageiros a bordo sobreviveu. A polícia indiana contabiliza ainda outras 24 vítimas que estavam no solo e morreram no momento do acidente. A causa do acidente está sendo investigada (12/06)
Foto: Ajit Solanki/AP Photo/picture alliance
Ajuda humanitária em Gaza na mira de militares israelenses
Pelo menos 21 palestinos morreram enquanto se dirigiam a locais de distribuição de ajuda humanitária em Gaza. Entidades denunciam, além da violência, quantidade insuficiente de alimentos, após meses de bloqueio à entrada de itens básicos por Israel. O exército israelense alegou que disparou "tiros de advertência". O número de palestinos mortos em 20 meses de guerra já supera 55 mil. (11/06)
Foto: Saeed Jaras/Middle East Images/AFP/Getty Images
Réu no STF, Bolsonaro é interrogado em processo da trama golpista
Ao longo de dois dias, ex-presidente e outros sete ex-auxiliares acusados de integrar "núcleo crucial" da trama golpista depuseram na Primeira Turma. Político negou ter discutido planos de golpe após perder a eleição e disse que só debateu medidas constitucionais com militares, mas que não editou "minuta do golpe". (10/06)
Foto: Fellipe Sampaio/STF
Israel detém barco que levava Greta Thunberg e o brasileiro Thiago Ávila
A Marinha de Israel interceptou um barco que tentava levar ajuda humanitária a Gaza. O veleiro Madleen, da iniciativa internacional Flotilha da Liberdade, levava 12 ativistas a bordo. Eles foram escoltados até um porto e, segundo o governo israelense, serão deportados. (09/06)
Trump chama militares para reprimir protestos na Califórnia contra prisão de imigrantes
O presidente americano Donald Trump enviou militares da Guarda Nacional a Los Angeles para conter protestos que eclodiram na esteira de uma série de operações de detenção de supostos migrantes irregulares. A medida não tem apoio do governo do estado da Califórnia, que acusou Trump de tentar provocar uma crise. (08/06)
Foto: Frederic J. Brown/AFP
Rússia amplia ataques contra 2ª maior cidade da Ucrânia
A Rússia executou diversos ataques no centro de Kharkiv, segunda maior cidade da Ucrânia, deixando cinco civis mortos e mais de 61 feridos, incluindo um bebê e uma adolescente de 14 anos. Bombas planadoras, um míssil e 53 drones atingiram prédios residenciais. O prefeito do município classificou a ação como o ataque mais severo desde o início da guerra. (07/06)
Foto: Sofiia Gatilova/REUTERS
Marcelo livre
Um juiz americano determinou a libertação do estudante brasileiro Marcelo Gomes da Silva, de 18 anos, que chegou aos Estados Unidos com cinco anos de idade e foi detido pelo Serviço de Imigração (ICE) a caminho de um treino de vôlei. Ele ficou preso por cinco dias, durante os quais dormiu em chão de concreto, sem acesso a chuveiro, acompanhado de homens com o dobro da sua idade. (06/06)
Foto: Rodrique Ngowi/AP
Musk e Trump trocam insultos e rompem relações
Bilionário que atuou como conselheiro da Casa Branca criticou projeto de lei de Orçamento de Trump que prevê cortes de impostos e aumento de gastos batizado pelo presidente como "Big Beautiful Bill". Musk chegou a endossar impeachment de Trump e associou presidente ao pedófilo Jeffrey Epstein. Trump reagiu dizendo que Musk "enlouqueceu" e ameaçou cortar contratos da SpaceX com governo. (05/06)
Foto: Nathan Howard/REUTERS
Moraes ordena prisão de Carla Zambelli após deputada deixar o país
O ministro do STF acatou pedido da PGR de prisão preventiva contra a deputada federal e determinou a inclusão dela na lista de procurados da Interpol. Moraes determinou bloqueio de salários, bens, contas bancárias e perfis em redes sociais. Parlamentar deixou o país após ser condenada a 10 anos de prisão e à perda de mandato por envolvimento na invasão do CNJ. (04/06)
Foto: Adriano Machado/REUTERS
Governo da Holanda desmorona após saída de ultradireitista
Alegando insatisfação com a política migratória, Gert Wilders – também conhecido como "Trump holandês" – e seu partido deixaram coalizão de governo, levando primeiro-ministro Dick Schoof (foto) à renúncia após menos de um ano de mandato. Sem maioria no parlamento, Schoof permanecerá interinamente no cargo até a realização de novas eleições e formação de um novo gabinete. (03/06)
Foto: Peter Dejong/AP/picture alliance
Conservador Karol Nawrocki vence eleição presidencial na Polônia
Resultado é derrota para o governo do primeiro-ministro Donald Tusk e deve dificultar andamento de políticas pró-União Europeia. Apoiado pelo partido ultraconservador Lei e Justiça (PiS), Nawrocki poderá vetar leis e desgastar o governo com bloqueios no Parlamento. Aliança frágil de Tusk pode não resistir até 2027. (02/06)
Foto: Czarek Sokolowski/AP/dpa/picture alliance
Ucrânia destrói aviões de guerra da Rússia em ataque massivo de drones
Na véspera de uma nova rodada de negociações de paz, Ucrânia e Rússia intensificaram sua ofensiva militar e protagonizaram ataques sem precedentes. Enquanto, Kiev destruiu 41 aviões militares na Sibéria, ofensiva de maior alcance no território russo em três anos de guerra, Moscou lançou número recorde de drones contra território ucraniano. (1º/06)