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Fugas e protestos marcaram 2022, diz Anistia Internacional

28 de março de 2023

Relatório anual da organização de direitos humanos destaca guerra de agressão russa na Ucrânia e repressão a protestos no Irã. No Brasil, texto aponta perseguição política e fracasso histórico em combater racismo.

Ucranianos na fila do controle de passaportes após chegarem no trem noturno da Ucrânia para a estação ferroviária de Przemysl, na Polônia.
AI: ucranianos estão entre as principais vitimas de crimes de guerra e crimes contra a humanidade em 2022Foto: Artur Widak/NurPhoto/picture alliance

Fuga e protesto são expressões que resumem a atual situação dos direitos humanos no mundo. É o que diz o relatório anual da Anistia Internacional (AI) sobre o tema, publicado nesta terça-feira (28/03).

"Nunca tantas pessoas estiveram em fuga no mundo quanto no ano de 2022. No mesmo período, milhões saíram às ruas por seus direitos", afirma o secretário-geral da Al na Alemanha, Markus N. Beeko.

"Pessoas estão fugindo e protestando porque suas vidas estão ameaçadas, porque elas estão sendo oprimidas, perseguidas e privadas de direitos, e porque seus direitos humanos estão sendo violados."

Segundo a organização, foram registrados crimes de guerra e crimes contra a humanidade em 13% dos 156 países pesquisados, isso contando com a ação das forças armadas russas na Ucrânia.

O ano passado também viu governos de 62 países restringirem a liberdade de reunião, associação e expressão, além de registrar a prisão arbitrária de ativistas em 79 nações, em muitos casos envolvendo tortura e maus-tratos.

Protestos são sinal de esperança

Mas são os desdobramentos de justamente alguns desses casos que alimentam a esperança. "A coragem e a perseverança das pessoas que saem às ruas por liberdade e justiça no Irã, no Peru, na Geórgia e em outros lugares são impressionantes", aponta Beeko.

Outro fator positivo apontado pela AI foi o acolhimento sem burocracia de milhões de refugiados da Ucrânia. "Além disso, investigações da comunidade internacional sobre violações de direitos humanos na Síria, em Mianmar, na Ucrânia e no Irã também mostram que há uma vontade geral de se responsabilizar os responsáveis."

Agressão russa na Ucrânia

Se o presidente russo, Vladimir Putin, terá que de fato responder perante o Tribunal Penal Internacional, não se sabe. Mas de qualquer forma, a simples guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia já forneceria material suficiente para preencher o relatório anual da Anistia Internacional.

"A invasão da Ucrânia pela Rússia constitui uma violação flagrante da Carta das Nações Unidas; é um ato de agressão e um crime sob a lei internacional", afirma Janine Uhlmannsiek, responsável pelos assuntos relacionados à Europa e Ásia Central na AI na Alemanha.

"Os investigadores da Anistia Internacional documentaramdiversos crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos pelas forças russas," diz Uhlmannsiek, enumerando alguns deles: o ataque indiscriminado a áreas residenciais, hospitais e escolas pelos militares russos;  o uso indistinto de armas e bombas proibidas de fragmentação, resultando em milhares de vítimas civis; crimes como tortura, violência sexual e homicídios ilegais; a deportação de numerosos civis para áreas ocupadas pela Rússia ou para a Rússia.

"Num caso documentado pela Anistia Internacional, um menino de 11 anos foi separado de sua mãe. Também registramos casos em que crianças desacompanhadas foram sequestradas de Mariupol para Donetsk", conta a especialista da organização de direitos humanos, apontando para a existência de medidas políticas paralelas na Rússia. "Para crianças órfãs ou sem nenhum responsável legal, o processo para obter a cidadania russa foi facilitado, com o objetivo de desobstruir a adoção das crianças por famílias russas."

Impacto sobre ucranianas

Para Uhlmannsiek, isso tudo reflete uma política deliberada de caráter sistemático, sendo parte de um ataque abrangente contra a população civil ucraniana. O mesmo ocorre com o uso de violência contra mulheres através de estupros sistemáticos frequentemente cometidos em conflitos armados.

"Conseguimos conversar com uma mulher que havia sido estuprada várias vezes por soldados russos. A guerra de agressão teve um sério impacto sobre mulheres, meninas e grupos populacionais marginalizados na Ucrânia, e é uma ameaça enorme à sua saúde mental, física, sexual e reprodutiva", diz Uhlmannsiek. "Ao mesmo tempo, a guerra também aumenta o risco de violência de gênero e exacerba o risco de exploração."

Repressão a opositores na Rússia

A situação dos direitos humanos na Rússia já era dramática antes de 24 de fevereiro de 2022, mas continuou a se deteriorar desde então. O governo tem tomado medidas implacáveis ​​contra aqueles que se opõem à guerra ou cobrem o conflito de forma independente. A Anistia Internacional contabilizou mais de 100 processos criminais por alegações de descrédito e pelo menos 180 por disseminar informações supostamente falsas.

"[Tais casos] prevêem multas pesadas e até 15 anos de prisão. No ano passado, em março de 2022, foram aprovadas às pressas novas leis que criminalizam o descrédito das forças armadas russas e a divulgação de supostas informações falsas sobre as forças armadas", conta Janine Uhlmannsiek.

"Em seus esforços para esconder a verdadeira extensão da devastação causada pela invasão da Ucrânia, a liderança russa tem reprimindo as vozes críticas e a mídia independente com toda a força."

No Irã, mais protestos apesar da repressão

Além da guerra de agressão russa na Ucrânia, a situação dos direitos humanos no Irã também é um dos focos do relatório anual da Anistia Internacional. A morte violenta em setembro de 2022 da curda Jina Mahsa Amini, de 22 anos, acusada de não usar o véu corretamente sobre a cabeça, desencadeou uma onda de protestos em todo o país que se prolonga até hoje. O regime dos aiatolás respondeu com força brutal.

"Em 2022, vimos outra deterioração significativa em termos de número de execuções, tortura e prisões arbitrárias", disse à DW Katja Müller-Fahlbusch, especialista em Oriente Médio e Norte da África na AI na Alemanha. "Ao mesmo tempo, vimos um despertar único. A coragem com que os iranianos lutam por sua liberdade e direitos humanos, apesar de toda resistência e toda violência do Estado, mesmo depois de seis meses, é impressionante."

O relatório afirma ainda que as autoridades iranianas não hesitaram em prender, torturar e estuprar sequer crianças e jovens. Segundo Müller-Fahlbusch, isso tem sido feito de forma sistemática e programada com o objetivo de intimidar parentes e famílias inteiras e, assim, impedi-los de protestar nas ruas por liberdade e direitos humanos. Pena de morte e execuções públicas seriam parte dessa estratégia.

"Em um ritmo de tirar o fôlego, em quatro casos até agora foram necessárias apenas algumas semanas entre as prisões, os julgamentos encenados, o pronunciamento das sentenças de morte e as execuções. Não há nenhum padrão legal ou procedimento regulamentado; trata-se apenas de uma forma de incitar o medo", diz a especialista da Anistia.

Müller-Fahlbusch teme que as inúmeras violações de direitos humanos no Irã continuem sendo tema do relatório anual da Anistia Internacional em 2023. Para ela, as autoridades iranianas conhecem apenas um método há décadas: violência e violação sistemática dos direitos humanos. Mas segundo a especialista, os protestos de uma sociedade que já não pode mais ser dividida não vão parar por aqui. É por isso que ela agora apela à comunidade internacional.

"No caso do Irã, a proteção vem da população e da pressão pública. A diplomacia silenciosa, como no caso dos presos com dupla nacionalidade, não ajuda. O que ajuda é a pressão pública, porque a divulgação torna visíveis os crimes dos responsáveis politicamente. E, assim, eleva o preço pago pela República Islâmica do Irã neste jogo muito, mas muito cínico."

Racismo estrutural e perseguição política no Brasil

No Brasil, a AI chamou a atenção para a questão do racismo e da violência de gênero. "O racismo continuou a impulsionar a violência do Estado. Assassinatos em massa por funcionários da segurança pública foram frequentes, afetando de forma desproporcional os negros em bairros marginalizados."

Para a entidade, o "fracasso histórico do Estado em enfrentar o racismo estrutural continuou a resultar em povos indígenas e afrodescendentes sendo desproporcionalmente impactados por falhas em medidas e ações institucionais".

Segundo o relatório, mulheres cis e transexuais, sobretudo negras, foram alvo de "diversas formas de violência". Conforme dados do Fórum de Segurança Pública, 699 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2022, sendo 62% delas negras.

A perseguição política em ano eleitoral também foi um dos tópicos abordados: "A divulgação de fake news e declarações do presidente [Jair] Bolsonaro incitaram violência politicamente motivada, ameaçaram instituições estatais e prejudicaram o funcionamento do Judiciário."

"Em outubro, entre o primeiro e o segundo turnos das eleições presidenciais, houve pelo menos 59 casos de violência politicamente motivada. Vários envolveram ameaças com armas de fogo, incluindo quando a deputada Carla Zambelli apontou uma arma para um adversário político", relembra a AI.

Crimes de guerra em Mianmar

A organização de direitos humanos também deu destaque para a situação em Mianmar. Desde que os militares tomaram o poder, em 1º de fevereiro de 2022, a Anistia Internacional documentou graves violações generalizadas dos direitos humanos no país, incluindo crimes de guerra e possíveis crimes contra a humanidade. Segundo a organização, foram usados ataques terrestres e aéreos indiscriminados e direcionados contra civis, aldeias foram saqueadas e incendiadas.

O resultado são milhares de mortos, 1,5 milhão de deslocados e 13 mil pessoas ainda presas em condições desumanas. Também há relatos de quatro pessoas executadas e ao menos outras 100 condenadas à morte. De acordo com a organização, julgamentos injustos faziam parte do dia a dia, assim como o uso rotineiro de tortura nas prisões.

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