Em entrevista à DW Brasil, advogado que deixou a presidência do Conselho de Política Penitenciária diz que visão belicista de ministro de Temer é errada e que lógica do Estado policial não resolverá a crise nas prisões.
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Um dos capítulos recentes da crise do sistema prisional no Brasil foi a renúncia de oito conselheiros do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que alegaram discordância com as diretrizes do Ministério da Justiça para tratar a questão. Nesta semana, o governo federal começa a implementar o novo Plano Nacional de Segurança Pública em Natal (RN) e Aracaju (SE).
Em entrevista à DW Brasil, o advogado e professor de direito penal da Universidade de São Paulo Alamiro Velludo, ex-presidente do Conselho, expõe sua visão sobre a crise e faz críticas ao que considera medidas autoritárias do ministro da Justiça, Alexandre de Moraes. A principal delas, e a gota d´água segundo o jurista, foi a decisão de Moraes de alterar por decreto, sem diálogo com o órgão, a composição do conselho.
DW Brasil: Por que o sr. deixou a direção do Conselho Penitenciário?
Alamiro Velludo: Existe uma dupla motivação. A primeira diz respeito, mais especificamente, a uma divergência na forma como o Ministério da Justiça tem respondido a essa crise prisional. As soluções propostas, de cunho punitivista, não são as mais adequadas para o Brasil. Vimos um Plano Nacional de Segurança Pública sendo exibido agora em janeiro cuja meta principal é belicista, com uso das Forças Armadas, criação de uma Força Nacional, combate às drogas, portanto, incentivando a dinâmica da guerra às drogas, que é uma política fracassada em todo o mundo.
Há uma divergência política, de visão de mundo e, consequentemente, de compreensão do problema. Outra coisa foi a tendência do Ministério da Justiça de excluir o CNPCP das discussões, dos debates, da possibilidade mínima de ter algum tipo de voz e de participação contributiva na formulação dessas políticas.
O ministro alegou após a renúncia coletiva que ocorreu por questões políticas, pois todos eram ligados ao PT. O sr. tem filiação partidária ou ligações com o PT?
Nunca fui vinculado ou filiado ao PT. Nunca ocupei nenhum cargo remunerado ou comissionado em qualquer governo, seja municipal, estadual, ou federal, em gestões do PT ou de qualquer outro partido. Acredito que eu tenha sido convidado para compor o conselho, e depois para presidi-lo, pelo ministro José Eduardo Cardozo, em razão do papel que eu desempenho na universidade pública brasileira, no departamento de direito penal, medicina forense e criminologia da USP.
Especialistas afirmam que o Plano Nacional de Segurança lançado pelo governo Temer é semelhante ao de governos anteriores, do PT e do PSDB. O sr. acha que são visões muito distintas?
Sempre fomos extremamente críticos a gestões passadas. Eu nunca teria coragem de acusar este governo, ou qualquer outro, como culpado pela crise prisional. Isso seria uma leviandade total. O problema da crise prisional brasileira é secular. Para os que saíram do Conselho, a criminalidade é um problema multifatorial, mas que tem num de seus fatores fundamentais a própria desigualdade brasileira. É preciso, dentro do cárcere, ter uma política de inclusão.
O sectarismo só vai aumentar as tensões. A lógica bélica, de confusão entre segurança pública e execução penal, nunca levou a lugar nenhum, e ela vem sendo implementada no Brasil há muitos anos. Basta ver o exemplo do governo de São Paulo. Se essa política desse certo, o PCC não teria aflorado como aflorou.
O sr. não tinha remuneração, e nem os demais conselheiros?
Nenhuma. Não é cargo comissionado. O que há é um reembolso pelas diárias em Brasília, feito pelo Poder Executivo. Isso, nada mais. Fui nomeado conselheiro em 2012 e assumi, como presidente, em janeiro de 2016. Em tese ficaria até janeiro de 2018, dois anos de mandato.
O decreto assinado pelo ministro altera a composição do Conselho.
O Conselho é de 1980. Em 1984 a Lei de Execução Penal incorpora o conselho e o normatiza, dizendo que terá 13 membros. O regimento interno que estabelece 13 titulares e cinco suplentes. Porém, na prática, como todos são especialistas na área, estabeleceu-se que os conselheiros participam com voz e voto de forma indistinta, independentemente de serem titulares ou suplentes. Foi feita uma modificação unilateral do regimento [pelo ministro Moraes] e eu só soube pelo Diário Oficial, elevando o número de 18 para 26.
Essa medida, que entendo ser ilegal do ponto de vista de obediência ao regimento, muda a composição desbalanceando a questão política momentânea.Alguns dias antes nós tínhamos tido a informação que foi criado um grupo de trabalho no âmbito da própria Presidência da República para a execução penal e que teriam dois indicados do CNPCP que, curiosamente, não seriam indicados pelo conselho, mas pelo ministro.
Como especialista na área e acompanhando essas rebeliões recentes, que parecem continuar a ocorrer, quais as perspectivas?
Acho difícil a gente tentar fazer uma previsão sem antes tentar compreender o fenômeno. Essas ocorrências já vem de algum tempo, há pelo menos há três anos, como no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, e em Porto Alegre. Do norte ao sul do Brasil. Ao contrário das chamadas rebeliões tradicionais, agora são conflitos entre facções e presos. Em 1992, no Carandiru, houve uma insurgência: existia, ali, de um lado o Estado, representado pelo aparato policial, e do outro lado os custodiados. Agora é um conflito entre facções.
O Estado perdeu completamente o controle de suas unidades. Os presos resolvem as suas diferenças de maneira medieval. Tinha uma fotografia do pátio de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, que parecem dois exércitos medievais. Quem é o preso brasileiro? O negro, jovem, de baixa escolaridade e de uma classe econômica totalmente desfavorecida. Esse é o preso brasileiro, condenado por tráfico de drogas ou crime contra o patrimônio. Com essa definição encaixamos 95% da população prisional do país. O Estado policial não vai resolver.
As perspectivas então não são animadoras.
Não, porque o Brasil parece que não está disposto, em primeiro lugar, a enfrentar as razões profundas da criminalidade. Enquanto as pessoas não tiverem acesso a políticas públicas mínimas do Estado e a serviços públicos nós não vamos resolver esse problema. O Estado brasileiro não parece disposto a mexer, pelo menos a curto prazo, com sua própria formulação político-criminal. Estamos insistindo numa guerra às drogas absolutamente sem sentido. Essa visão só vai levar a um acúmulo de pessoas nas unidades prisionais.
Cronologia da crise nos presídios
Ano de 2017 começa com crise inesperada para o governo Temer: na primeira quinzena de janeiro, 120 presos são barbaramente assassinados dentro de presídios do norte do país, com ação de facções criminosas.
Foto: Reuters/J. Goncalves
Eles se matam, e a polícia não age
1º de janeiro: presos iniciam uma rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus. A polícia decide não entrar para conter o massacre. Autoridades locais alegam que tomaram tal decisão para evitar uma tragédia semelhante à do Carandiru, quando 111 presos morreram num motim com a ação policial, em São Paulo, em 1992.
Foto: picture-alliance/Zumapress/A Critica
56 mortos, corpos decapitados e esquartejados
2 de janeiro: a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas divulga o número de mortos: 56 presos assassinados, boa parte deles decapitada e esquartejada. Foram mais de 17 horas de massacre. As autoridades de Manaus atribuem a tragédia à disputa entre as facções criminosas Primeiro Comando da Capital (PCC) e Família do Norte (FDN). Em desespero, famílias aguardam identificação de corpos.
Foto: Reuters/M. Dantas
"Tudo sob controle"
3 de janeiro: o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, visita o Complexo Anísio Jobim, onde aconteceu a rebelião de Manaus, e diz que situação está "sob controle". Moraes afirma que governo não corrobora a tese de confronto entre facções. Uma rebelião como a de Manaus, diz, é provocada por um somatório de fatos que ainda precisariam ser analisados pelo governo.
Foto: Isaac Amorim/Ministerio da Justica e Cidadania
"Ninguém ali era santo"
4 de janeiro: o governador do Amazonas, José Melo de Oliveira (Pros), faz uma declaração chocante sobre a matança no presídio: "Não tinha nenhum santo. Eram estupradores, matadores (...) e pessoas ligadas a outra facção, que é minoria aqui no Estado do Amazonas". O governo estadual decide, só depois da tragédia, retirar os presos ameaçados de morte e transferi-los para outro local.
Foto: Divulgacao/SECOM/H. Pereira
Protagonismo do Supremo
5 de janeiro: a presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, assume um papel de protagonismo na crise. Um dia após a tragédia, ela decide viajar a Manaus e afirma que a situação é explosiva. No Amazonas, faz reuniões com juízes e desembargadores. Por orientação dela, o Conselho Nacional de Justiça monta uma força-tarefa para supervisionar as medidas do estado do Amazonas sobre a crise.
Foto: Divulgacao/SCO/STF
"Mais do mesmo"
5 de fevereiro: o governo anuncia o Plano Nacional de Segurança em resposta à crise. O ministro da Justiça apresenta, entre as medidas, a construção de cinco presídios de segurança máxima, sem detalhar custos e prazos. Especialistas ouvidos pela DW dizem que programa reedita propostas dos governos Lula e Dilma, é genérico e não dá nova perspectiva para o fim do aprisionamento em massa.
Foto: Isaac Amorim/Ministerio da Justiça e Cidadania
O silêncio e o acidente
5 de janeiro: o presidente Michel Temer faz o primeiro comentário sobre as mortes, referindo-se aos massacres como "acidente pavoroso". "Eu quero me solidarizar com as famílias que tiveram seus presos vitimados naquele acidente pavoroso que ocorreu no presídio de Manaus." O presidente, que já tinha sido criticado por seu silêncio e omissão, foi reprovado pelo uso da palavra acidente.
Foto: Marcelo Camargo/Agencia Brasil
Em Roraima, outra barbárie
6 de janeiro: na madrugada, outro massacre é iniciado, desta vez na penitenciária Agrícola Monte Cristo, em Roraima. Mais 33 presos são mortos. O governo classifica as mortes de barbárie e diz não ter indícios claros se o massacre tem relações com vingança de facção criminosa.
Foto: Getty Images/AFP/V. Almeida
Baixa no governo
6 de janeiro: a crise penitenciária produz a primeira baixa no governo. O secretário nacional de Juventude, Bruno Júlio, é demitido após declarações polêmicas publicadas no "Globo". "Tinha que fazer uma chacina por semana", teria dito. Ele negou ter feito a afirmação. À "Folha de S. Paulo", disse: "Fico triste porque não estão dando tanta importância para as pessoas de bem que morrem todo dia".
Foto: Divulgacao/JPMDB
A matança continua
8 de janeiro: mais quatro presos são mortos em novo motim no Amazonas. A rebelião, desta vez, é na Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa, no centro de Manaus. Três detentos são decapitados, e um foi morto por asfixia.
Foto: Agência Brasil/Marcelo Camargo
Reforço tardio
9 de janeiro: o governo federal autoriza envio de cem homens da Força Nacional de Segurança a Manaus e outros cem para Roraima. Ministro da Justiça se compromete a atender pedidos de sete estados das regiões Norte e Centro-oeste para auxiliar no policiamento e segurança, autorizando transferência de presos para penitenciárias federais e liberando recursos.
Foto: Marcelo Camargo/Agencia Brasil
Após a tragédia, a tentativa de controle
10 de janeiro: a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária e a PM do Amazonas fazem revistas nas unidades prisionais da capital. A ação dos policiais foi iniciada no dia 5. Na ala dos presos que cumprem regime semiaberto do Complexo Penitenciário Anísio Jobim são encontrados pen-drives, walkie-talkies, cabos telefônicos, celulares, alicates, facas, martelos e outras ferramentas.
Foto: Bruno Zanardo/Secom
Mais um capítulo da crise: 26 mortos no RN
15 de janeiro: um novo motim ocorre no presídio de Alcaçuz, na cidade de Nísia Floresta, região metropolitana de Natal. O governo do estado confirmou a morte de 26 detentos. Assim como em outras rebeliões do Norte, os corpos estavam desfigurados. A perícia levará 30 dias para fazer as identificações. Após a rebelião, presos foram revistados nus. Houve auxílio da Força Nacional de Segurança.
Foto: picture-alliance/dpa/F. Marcone
Confusão sem fim em Alcaçuz
16 de janeiro: Um dia após o motim que terminou com ao menos 26 mortos, a penitenciária de Alcaçuz (RN) volta a ser palco de tumultos. Em dia de "clima tenso”, um grupo de detentos voltou a ocupar os telhados dos pavilhões e proferir ameaças contra facções rivais de dentro do presídio. Agentes da PM, do Bope e do GOE não conseguiram controlar a situação. A Força Nacional teve de ser acionada.
Foto: Reuters
Onda de rebeliões chega a Minas Gerais
17 de janeiro: Cerca de 1.200 detentos do presídio Antônio Dutra Ladeira, em Ribeirão das Neves (MG), anunciam um motim para reivindicar a saída do diretor da prisão e a melhora no tratamento de familiares e presos. Em vídeos que circulam pela internet, eles ameaçam uma carnificina caso não sejam ouvidos. "Vai morrer muita gente, o massacre vai começar", diz um dos presos encapuzado de vermelho.
Foto: Quelle: Youtube/Portal O TEMPO
Forças Armadas entram nos presídios
17 de janeiro: Governo autoriza que as Forças Armadas passem a inspecionar materiais proibidos, como armas e drogas, dentro dos presídios estaduais. A segurança interna continua, porém, sob responsabilidade de agentes penitenciários e policiais. Segundo a presidência, a "operação visa restaurar a normalidade e os padrões básicos de segurança nos estabelecimentos carcerários brasileiros."
Foto: picture-alliance/AP Photo/E. Peres
Agentes penitenciários protestam por trabalho
17 de janeiro: Em Brasília, agentes penitenciários reivindicam a contratação de profissionais aprovados em concursos públicos e melhores condições de trabalho. Segundo a Federação Brasileira dos Servidores Penitenciários, o Brasil teria de aumentar em 30 vezes o número de agentes penitenciários para atender à recomendação nacional de um agente para cada cinco presos.
Foto: Agência Brasil/M. Casal Jr.
Caos chega às ruas de Natal
18 de janeiro: Na capital Natal, ao menos 14 ônibus, dois micro-ônibus, um carro do governo, cinco viaturas da polícia, duas delegacias e um prédio de uma secretaria de Saúde foram alvos de atos criminosos. O vandalismo ocorreu depois de 220 detentos terem sido transferidos do presídio de Alcaçuz (RN). A polícia também registrou quebradeiras nas cidades de Macau, Parnamirim e Caicó.
Foto: Reuters/J. Goncalves
Proteção às fronteiras
19 de janeiro: O ministro da Defesa, Raul Jungmann, visita o Sistema Integrado de Sensoriamento em Dourados (MS), próximo à fronteira com o Paraguai. O governo investirá 450 milhões de reais no Sisfron, que usará radares e câmeras para monitorar os mais de 16 mil km de fronteiras contra o narcotráfico. O Brasil é hoje o principal ponto de saída de cocaína produzida na América do Sul para a Europa.
Foto: Agência Brasil/V. Campanato
Campo de guerra em Alcaçuz
19 de janeiro: A confusão no presídio de Alcaçuz, em Nísia Floresta (RN), pulou os muros da penitenciária e chegou às ruas de Natal e cidades próximas, que foram palco de ao menos 26 veículos incendiados e diversos prédios apedrejados. Militares foram acionados para tomar o controle da segurança nas cidades.