Em carta anônima, cerca de 900 funcionários públicos da UE, EUA e Reino Unido instam lideranças a repensarem medidas que favorecem Israel no conflito contra palestinos.
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A partir de um escritório em Haia, Angélique Eijpe era responsável por esboçar estratégias para o futuro da política externa da Holanda. Ao longo dos 21 anos de sua carreira de diplomata, ela foi vice-embaixadora do país em Omã e trabalhou na elaboração de políticas para o Oriente Médio.
Atualmente ela está desempregada, tendo se demitido do Ministério holandês do Exterior em janeiro, em protesto à reação do governo à guerra entre Israel e o Hamas. Antes, ela organizava manifestações semanais em edifícios governamentais de Haia, na forma de protestos sentados, em prol de um cessar-fogo imediato na Faixa de Gaza.
"Eu sou a ganha-pão da minha família. Mas eu disse ao meu parceiro: 'Realmente não posso mais participar disso, minha integridade pessoal e profissional está em jogo, aqui'", explica Eijpe.
A União Europeia e os Estados Unidos classificam Hamas como organização terrorista. Numa declaração conjunta, ambos descreveram os atentados dos radicais islâmicos palestinos de 7 de outubro de 2023 em território israelense como "o ataque mais letal contra o povo judeu desde o Holocausto".
A UE e os EUA têm se mostrado relutantes com um cessar-fogo imediato, temendo que este possa encorajar o Hamas – apesar de mais de uma dezena de Estados europeus já terem manifestado apoio à ideia. Por sua vez, outros países-membros continuam a exportar armas para Israel, inclusive a Alemanha e a Holanda, enquanto os americanos também seguem fornecendo apoio militar a Tel Aviv.
Independente disso, as duas potências apelam por maior acesso humanitário a Gaza, alertando para a gravidade da situação. Enquanto bloco, a UE vem advogando "corredores e pausas humanitárias" no enclave palestino.
"Cultura de silêncio" nos corredores da UE
Apesar de desempregada, Ejipe tem agenda cheia, pois colabora com ex-diplomatas holandeses e americanos para se conectarem com colegas descontentes do outro lado do Oceano Atlântico. Em 2 de janeiro, cerca de 800 funcionários públicos da UE, EUA e Reino Unido publicaram uma carta aberta anônima instando seus governos a uma mudança de curso, em relação aos combates na faixa controlada pelo movimento islamista.
Desde então, segundo Ejipe, subiu a quase 900 o número de signatários anônimos, originários da Alemanha, Bélgica, Finlândia, França, Reino Unido, Suécia e de instituições da União Europeia.
"Expressamos internamente nossas apreensões de que as políticas de nossos governos não servem aos nossos interesses [...] Nossas preocupações profissionais são anuladas por considerações políticas e ideológicas", acusa o documento. Já que os governos ocidentais respaldaram Israel "sem condições ou responsabilização reais", "há risco plausível de que as políticas de nossos governos estarem contribuindo para graves violações do direito humanitário internacional".
Falando à DW sob condição de anonimato, uma funcionária da UE em Bruxelas, que participou da elaboração da carta, afirmou que uma "cultura de silêncio" impera nas repartições governamentais, na qual quem se manifesta é considerado "ativista muito emocional".
Diante das centenas de milhares de funcionários públicos da UE e EUA, 900 nomes representam uma pequena minoria. Ainda assim, devido a seu âmbito transatlântico, a declaração é, até o momento, a mais ampla manifestação de protesto oficial contra a guerra em Gaza.
"Acho que é a ponta do iceberg", comenta Ejipe, ressalvando que os funcionários americanos estão especialmente nervosos em assinar, por disporem de garantias trabalhistas mais limitadas.
Em janeiro, o jornal online EUobserver noticiou sobre uma outra declaração, assinada por 1.500 funcionários europeus, apelando por um embargo armamentista a Tel Aviv. Em outubro, a emissora Al-Jazeera se referira a uma outra carta, em que 800 funcionários do bloco europeu afirmam que "a UE está arriscada a perder toda a credibilidade" por sua reação ao conflito.
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Reações à carta transatlântica, entre negação e liberalidade
As autoridades israelenses rechaçam veementemente a afirmativa da atual carta de que "Israel não mostrou ter qualquer limite em suas operações militares em Gaza".
Em seu website, as Forças de Defesa de Israel (IDF) asseguram estar fazendo "todo possível para limitar a morte de civis" no território ocupado, e citam mensagens de texto, chamadas telefônicas e panfletos que envia aos civis de Gaza. Contudo, "o Hamas se aproveitaria desses esforços, encorajando os civis palestinos a ignorarem as advertências das IDF", afirma o órgão.
Interpelado sobre a declaração anônima, um funcionário israelense em Bruxelas comentou: "Não é fácil, num momento como esse para o nosso país, ver alguns indivíduos optando por se oporem. Eles estão tentando explorar a situação, talvez tentando arruinar nossas boas relações de trabalho com os nossos países, e minar todas as coisas que alcançamos até aqui. É pena, mas não achamos que reflita esses países, como um todo."
As pastas europeias do Exterior parecem estar cientes do descontentamento que se manifesta numa parte de seus corredores do poder: "É simplesmente natural que o debate na sociedade sobre o conflito entre Israel e o Hamas também exista em nosso ministério. Achamos que deve haver margem para esses debates, e encorajamos o nosso pessoal a travar diálogos, internamente", declarou um porta-voz do Ministério do Exterior da Holanda.
"Ao mesmo tempo, a política do Ministério é determinada pelos nossos ministros (após se aconselharem com os funcionários), e os ministros são responsáveis perante o parlamento. Isso é um pressuposto para o trabalho de todo funcionário público."
Desunião na UE ameaça gerar mais um tigre de papel
A pasta do Exterior da Alemanha afirmou à DW que "toma nota" da carta transatlântica, enquanto a Comissão Europeia a estaria "examinando". Segundo porta-voz de Londres: "O Reino Unido quer ver o fim dos combates in Gaza tão logo possível" e continuará apelando pelo respeito às leis humanitárias internacionais e à proteção dos civis.
Na opinião de Mihail Chihaia, analista para o Oriente Médio do European Policy Centre (EPC), iniciativas como a carta anônima podem "aumentar a pressão sobre os tomadores de decisões europeus e americanos na direção de um cessar-fogo, mas também fazer avançar os esforços por uma solução de longo prazo.
No entanto, as diferenças de opinião não se manifestam apenas a portas fechadas: os rachas existentes na União Europeia tornariam improvável uma ação conjunta, e "o bloco europeu vai, infelizmente, continuar se batendo para falar com um só voz no conflito de Gaza",avalia Chihaia.
Nas últimas semanas, a UE fez esforços para parecer menos mera observadora e mais uma mediadora para Gaza, ao reunir ministros árabes, israelenses e palestinos com o fim de discutir uma solução de dois Estados. Chihaia ressalta que esse plano inicial necessita "forte respaldo dos Estados-membros da UE, ganhar cacife regional, e medidas práticas na direção da implementação": "Senão, arrisca se tornar mais um tigre de papel."
A longa história do processo de paz no Oriente Médio
Por mais de meio século, disputas entre israelenses e palestinos envolvendo terras, refugiados e locais sagrados permanecem sem solução. Veja um breve histórico sobre o conflito.
Foto: PATRICK BAZ/AFP/Getty Images
1967: Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU
A Resolução 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, aprovada em 22 de novembro de 1967, sugeria a troca de terras pela paz. Desde então, muitas das tentativas de estabelecer a paz na região referiram-se a ela. A determinação foi escrita de acordo com o Capítulo 6 da Carta da ONU, segundo o qual as resoluções são apenas recomendações e não ordens.
Foto: Getty Images/Keystone
1978: Acordos de Camp David
Em 1973, uma coalizão de Estados árabes liderada pelo Egito e pela Síria lutou contra Israel no Yom Kippur ou Guerra de Outubro. O conflito levou a negociações de paz secretas que renderam dois acordos 12 dias depois. Esta foto de 1979 mostra o então presidente egípcio Anwar Sadat, seu homólogo americano Jimmy Carter e o premiê israelense Menachem Begin após assinarem os acordos em Washington.
Foto: picture-alliance/AP Photo/B. Daugherty
1991: Conferência de Madri
Os EUA e a ex-União Soviética organizaram uma conferência na capital espanhola. As discussões envolveram Israel, Jordânia, Líbano, Síria e os palestinos – mas não da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) –, que se reuniam com negociadores israelenses pela primeira vez. Embora a conferência tenha alcançado pouco, ela criou a estrutura para negociações futuras mais produtivas.
Foto: picture-alliance/dpa/J. Hollander
1993: Primeiro Acordo de Oslo
Negociações na Noruega entre Israel e a OLP, o primeiro encontro direto entre as duas partes, resultaram no Acordo de Oslo. Assinado nos EUA em setembro de 1993, ele exigia que as tropas israelenses se retirassem da Cisjordânia e da Faixa de Gaza e que uma autoridade palestina autônoma e interina fosse estabelecida por um período de transição de cinco anos. Um segundo acordo foi firmado em 1995.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Sachs
2000: Cúpula de Camp David
Com o objetivo de discutir fronteiras, segurança, assentamentos, refugiados e Jerusalém, o então presidente dos EUA, Bill Clinton, convidou o premiê israelense Ehud Barak e o presidente da OLP Yasser Arafat para a base militar americana em julho de 2000. No entanto, o fracasso em chegar a um consenso em Camp David foi seguido por um novo levante palestino, a Segunda Intifada.
Foto: picture-alliance/AP Photo/R. Edmonds
2002: Iniciativa de Paz Árabe
Após Camp David, seguiram-se encontros em Washington e depois no Cairo e Taba, no Egito – todos sem resultados. Mais tarde, em março de 2002, a Liga Árabe propôs a Iniciativa de Paz Árabe, convocando Israel a se retirar para as fronteiras anteriores a 1967 para que um Estado palestino fosse estabelecido na Cisjordânia e em Gaza. Em troca, os países árabes concordariam em reconhecer Israel.
Foto: Getty Images/C. Kealy
2003: Mapa da Paz
Com o objetivo de desenvolver um roteiro para a paz, EUA, UE, Rússia e ONU trabalharam juntos como o Quarteto do Oriente Médio. O então primeiro-ministro palestino Mahmoud Abbas aceitou o texto, mas seu homólogo israelense Ariel Sharon teve mais reservas. O cronograma previa um acordo final sobre uma solução de dois estados a ser alcançada em 2005. Infelizmente, ele nunca foi implementado.
Foto: Getty Iamges/AFP/J. Aruri
2007: Conferência de Annapolis
Em 2007, o então presidente dos EUA George W. Bush organizou uma conferência em Annapolis, Maryland, para relançar o processo de paz. O premiê israelense Ehud Olmert e o presidente da ANP Mahmoud Abbas participaram de conversas com autoridades do Quarteto e de outros Estados árabes. Ficou acordado que novas negociações seriam realizadas para se chegar a um acordo de paz até o final de 2008.
Foto: picture-alliance/dpa/S. Thew
2010: Washington
Em 2010, o enviado dos EUA para o Oriente Médio, George Mitchell, convenceu o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, a implementar uma moratória de 10 meses para assentamentos em territórios disputados. Mais tarde, Netanyahu e Abbas concordaram em relançar as negociações diretas para resolver todas as questões. Iniciadas em setembro de 2010, as negociações chegaram a um impasse dentro de semanas.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Milner
Ciclo de violência e cessar-fogo
Uma nova rodada de violência estourou dentro e ao redor de Gaza no final de 2012. Um cessar-fogo foi alcançado entre Israel e os que dominavam a Faixa de Gaza, mas quebrado em junho de 2014, quando o sequestro e assassinato de três adolescentes em mais violência. O conflito terminou com um novo cessar-fogo em 26 de agosto de 2014.
Foto: picture-alliance/dpa
2017: Conferência de Paris
A fim de discutir o conflito entre israelenses e palestinos, enviados de mais de 70 países se reuniram em Paris. Netanyahu, porém, viu as negociações como uma armadilha contra seu país. Tampouco representantes israelenses ou palestinos compareceram à cúpula. "Uma solução de dois Estados é a única possível", disse o ministro francês das Relações Exteriores Jean-Marc Ayrault, na abertura do evento.
Foto: Reuters/T. Samson
2017: Deterioração das relações
Apesar de começar otimista, o ano de 2017 trouxe ainda mais estagnação no processo de paz. No verão do hemisfério norte, um ataque contra a polícia israelense no Monte do Templo, um local sagrado para judeus e muçulmanos, gerou confrontos mortais. Em seguida, o plano do então presidente dos EUA, Donald Trump, de transferir a embaixada americana para Jerusalém minou ainda mais os esforços de paz.
Foto: Reuters/A. Awad
2020: Tiro de Trump sai pela culatra
Trump apresentou um plano de paz que paralisava a construção de assentamentos israelenses, mas mantinha o controle de Israel sobre a maioria do que já havia construído ilegalmente. O plano dobrava o território controlado pelos palestinos, mas exigia a aceitação dos assentamentos construídos anteriormente na Cisjordânia como território israelense. Os palestinos rejeitaram a proposta.
Foto: Reuters/M. Salem
2021: Conflito eclode novamente
Planos de despejar quatro famílias palestinas e dar suas casas em Jerusalém Oriental a colonos judeus levaram a uma escalada da violência em maio de 2021. O Hamas disparou foguetes contra Israel, enquanto ataques aéreos militares israelenses destruíram prédios na Faixa de Gaza. A comunidade internacional pediu o fim da violência e que ambos os lados voltem à mesa de negociações.
Foto: Mahmud Hams/AFP
2023: Terrorismo do Hamas e retaliações de Israel
No início da manhã de 7 de outubro, terroristas do grupo radical islâmico Hamas romperam barreiras em alguns pontos da Faixa de Gaza, na fronteira com Israel, e, em território israelense, feriram e mataram centenas de pessoas, além de sequestrarem mais de uma centena. Devido a isso, Israel declarou "estado de guerra" e iniciou uma série de bombardeios, deixando partes da Cidade de Gaza em ruínas.