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Guerra de Putin deixa "Ostpolitik" alemã em frangalhos

23 de março de 2022

"Mudança por meio da reaproximação" foi o princípio que norteou por décadas o Partido Social-Democrata alemão em relação à URSS e depois à Rússia. Invasão da Ucrânia, no entanto, colocou política em xeque.

Egon Bahr, Willy, Brandt e Walter Scheel
Egon Bahr, o chanceler Willy Brandt e o então ministro das Relações Exteriores Walter Scheel durante uma visita a Moscou em 1970Foto: Sven Simon/IMAGO

Admitir que você estava errado nunca é fácil. Fazer isso publicamente é menos ainda. Dessa forma, um discurso que o líder do Partido Social-Democrata alemão (SPD), Lars Klingbeil, proferiu recentemente em memória de Egon Bahr (1922-2015) em seu 100º aniversário foi notável.

Bahr, um proeminente político social-democrata, foi o arquiteto da chamada Ostpolitik, a "política para o leste" do chanceler federal Willy Brandt, que provocou um degelo nas relações da Alemanha Ocidental com a União Soviética e a Polônia e, posteriormente, também com a Alemanha Oriental.

Já em 1963, Bahr, que viria a ocupar dois diferentes ministérios sob o governo Brandt (1969-1974), defendia uma "mudança por meio da reaproximação". A ideia ousada provocou indignação entre muitos alemães ocidentais. O país estava em plena Guerra Fria e o Muro de Berlim, construído pela Alemanha Oriental para impedir a saída de seus cidadãos, havia sido erguido há apenas dois anos. O estrategista do SPD, no entanto, defendia que as relações estremecidas entre a Alemanha Ocidental e o bloco comunista não mudariam apenas com mais hostilidade ou pressão.

É sobre interesses, não sobre direitos humanos

A política de "détente" baseava-se no reconhecimento do status quo e no pressuposto de que o estreitamento de laços econômicos levaria a uma abertura política e social. Para Egon Bahr, diplomacia bem-sucedida era sinônimo de um equilíbrio sóbrio de interesses. Certa vez, ele disse na frente de um grupo de crianças em idade escolar: "A política internacional nunca é sobre democracia ou direitos humanos. É sobre os interesses dos Estados. Lembrem-se disso, não importa o que lhe digam na aula de história".

Bahr não mudou de ideia nem mesmo após a queda da URSS em 1991 ou diante da deterioração democrática da Rússia sob Putin nos anos 2000, defendendo até sua morte, em 2015, a inclusão do governo de Moscou em uma ordem de segurança europeia. Ele não estava sozinho. Tinha muitos adeptos entre políticos social-democratas.

No entanto, o atual líder do SPD, Lars Klingbeil, enxerga que isso foi um erro. "'Mudança através do comércio' era a ordem do dia. Este conceito falhou", disse ele no evento em memória de Bahr, na sede da Fundação Friedrich Ebert em Berlim.

Willy Brandt e Egon Bahr nos anos 1970. Dupla foi responsável por reaproximar Alemanha Ocidental e a antiga URSSFoto: Sven Simon/IMAGO

Compreender a Rússia

O SPD foi ingênuo? "Olhando para trás, é claro, temos que nos perguntar se deveríamos ter avaliado a invasão russa da Geórgia em 2008, a anexação da Crimeia em 2014 ou os assassinatos de dissidentes russos em Londres e Berlim de forma diferente", afirmou Klingbeil, em tom de autocrítica. O político também se pergunta se os social-democratas "julgaram mal os sinais dos tempos".

Nos últimos anos, muitos políticos alemães que tentaram racionalizar ou minimizar as ações violentas de Vladimir Putin ou que desconversavam sobre a crescente dependência da Alemanha em relação ao gás russo foram pejorativamente chamados de "Putin-Versteher" ou "Russland-Versteher" (literalmente "entendedores de Putin" e "entendedores da Rússia"). Havia muitos deles, especialmente nos estados alemães que faziam parte do território da antiga Alemanha Oriental.

Schröder e Putin em 2004. Ex-chanceler aumentou dependência alemã do gás russoFoto: H. Hollemann/dpa/picture alliance

Alertas sobre o Nord Stream

O maior "entendedor da Rússia" foi e continua sendo o ex-chanceler social-democrata Gerhard Schröder, que governou a Alemanha entre 1998 e 2005. Juntamente com Putin, o político do SPD desempenhou um papel fundamental na construção dos dois gasodutos submersos Nord Stream. Eles conectam a Alemanha e a Rússia diretamente pelo Mar Báltico. Os gasodutos, portanto, permitem que a Rússia venda energia para a Alemanha contornando nações rivais, como a Ucrânia e a Polônia – o que, na visão de alguns estrategistas, aumenta o poder de pressão do Kremlin sobre esses países.

"Sempre alertamos sobre o Nord Stream", diz a ucraniana Lyudmyla Melnyk, pesquisadora do Instituto de Política Europeia em Berlim. "Dissemos que assim que o gasoduto for construído, as tropas russas entrarão na Ucrânia."

O sentimento de remorso é grande no SPD. No entanto, os sucessos anteriores da Ostpolitik não devem ser ignorados. Bahr e Brandt viveram em uma época diferente e eram estrategistas e conciliadores perspicazes. Além disso, eles entenderam que também é necessário contar com alguma força paralelamente à reaproximação e cooperação. "Na época de Willy Brandt, o orçamento de defesa era superior a 3% do PIB", avaliou o líder do SPD, Klingbeil.  Em 2020, tal porcentagem mal superou 1,4%.

Egon Bahr em 2008Foto: AP

Ponto de virada

Nas últimas décadas, a Alemanha nunca atingiu a meta da Otan de gastar pelo menos 2% do seu PIB em defesa. Isso deve mudar agora. O chanceler federal Olaf Scholz falou recentemente de um "ponto de virada" na política externa e de segurança da Alemanha e anunciou 100 bilhões de euros para a modernização das Forças Armadas da Alemanha. Além disso, a dependência da Rússia no setor da energia deve ser reduzida, com a procura de novos fornecedores de gás e petróleo e a expansão das energias renováveis.

Scholz, que também participou do evento em memória a Bahr, lançou a pergunta sobre o que Willy Brandt e Egon Bahr aconselhariam na atual situação. Mesmo depois da invasão da Ucrânia, o chanceler federal ainda considera correta a afirmação de Bahr de que a paz na Europa só é possível com a Rússia, e não contra a Rússia.

"Mas, ao mesmo tempo, temos que reconhecer que a atual política da liderança russa é uma ameaça real à segurança na Europa. Esse é o infeliz ponto de partida de uma nova política [alemã] para a Rússia que, no espírito de Egon Bahr, deve começar com um olhar sóbrio sobre a realidade, mas sem parar por aí."

Quem quer paz deve estar preparado para negociar, avaliou Scholz. "Também mantemos os canais de comunicação abertos e aproveitaremos todas as oportunidades para mediar."

Distinguir Putin dos russos

Também é muito importante para Olaf Scholz não fazer uma equivalência entre Putin a Rússia. "Não foi o povo russo que tomou a decisão derradeira de atacar a Ucrânia. Esta guerra é a guerra de Putin", disse. Essa diferenciação também é importante "para não comprometer a reconciliação entre alemães e russos após a Segunda Guerra Mundial", avaliou o chanceler federal. Também é importante para aqueles que estão se manifestando na Rússia contra a guerra e Putin.

Lars Klingbeil, atual líder do SPD, que hoje vê a "Ostpolitik" de forma mais críticaFoto: Hannibal Hanschke/AFP/Getty Images

Durante sua visita a Moscou em meados de fevereiro, o chanceler federal também conversou com representantes da sociedade civil russa. Alguém lhe disse: "Sabe, a democracia nasce de nós humanos", citou Scholz. Aliás, essa foi uma constatação com a qual Egon Bahr e os principais social-democratas da Alemanha Ocidental defenderam quando o Muro de Berlim caiu.

Em 1989, quando dezenas de milhares se manifestavam nas ruas da Alemanha Oriental, a liderança do SPD ainda se agarrava ao decadente partido comunista como parceiro de diálogo predileto. Egon Bahr constatou mais tarde que isso foi um erro. Pouca atenção foi dada à crescente oposição no país, ou seja, os ativistas dos direitos civis que surgiam sob a ditadura da Alemanha Oriental.