Guerra na Ucrânia acirra tensão entre igreja ortodoxa e Kiev
30 de março de 2023Após um ultimato do governo da Ucrânia, cerca de 200 monges e 400 seminaristas da Igreja Ortodoxa Ucraniana (IOU) se recusaram nesta quinta-feira (30/03) a deixar o Mosteiro das Cavernas, em Kiev, e receberam ainda o apoio de numerosos fiéis. A ordem governamental para desocupar o local veio após acusações de que o clero local teria colaborado com a Rússia.
Fundado no século 11, o mosteiro é palco de um conflito religioso mais amplo que se desenrola em paralelo com a guerra.
Os monges que usam a propriedade são da IOU, que faz parte canonicamente do Igreja Ortodoxa Russa, acusada de ligações com o governo de Moscou e de apoiar da invasão da Ucrânia. O mosteiro, porém, pertence ao governo ucraniano, que notificou a IOU no início deste mês sobre rescisão do contrato para o uso do local.
No entanto, o metropolita Pavlo e outros monges e padres ortodoxos que vivem no mosteiro disseram que não deixarão o local, enquanto aguardam o resultado de uma nova ação judicial que visa impedir o despejo.
Repressão de Kiev à IOU
O governo ucraniano tem reprimido a IOU por causa de seus laços históricos com a Igreja Ortodoxa Russa, cujo líder, o patriarca Cirilo, é um fiel apoiador do presidente russo, Vladimir Putin. Os serviços de inteligência ucranianos alegam que, em incursões no mosteiro no final do ano passado, encontraram materiais de propaganda russa.
Putin costuma aparecer em público acompanhado de padres ortodoxos russos, inclusive ao visitar as partes da Ucrânia ocupadas pela Rússia. Desde o início da invasão, as autoridades ucranianas detiveram vários prelados da IOU sob a acusação de benzer o exército russo que está invadindo o país e de passar informações aos militares inimigos para ajudá-los em suas operações.
Rompimento com o Patriarcado Russo
Em maio de 2022, a IOU rompeu com o patriarca russo Cirilo e a Igreja Ortodoxa Russa, em protesto contra o fervoroso apoio do líder religioso à guerra.
A IOU reafirmou sua independência de Moscou, removendo a adição "Patriarcado de Moscou" de seu nome – até então, ela era referida como Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscou (IOU-PM). Em maio do ano passado, em um novo estatuto, a IOU descreveu-se como independente, mas não como autocéfala.
Mais recentemente, seminaristas do Mosteiro das Cavernas divulgaram um vídeo reafirmando sua lealdade ao Estado ucraniano e citando seus irmãos e outros familiares que lutam no front contra os ocupantes russos, arriscando suas vidas. O chefe da IOU, o primaz Onúfrio, tentou várias vezes esclarecer o assunto com o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski - até agora em vão.
No entanto, alguns especialistas advertem que essa ruptura unilateral por parte da IOU com o Igreja Ortodoxa Russa não tem efeito canônico, e muitos observadores na Ucrânia duvidam da autenticidade do passo dado por uma hierarquia que mostrou consistentemente em público suas simpatias pela Rússia até muito recentemente.
O governo ucraniano tem insistido na presença de agentes do serviço secreto russo entre a elite eclesiástica filiada até recentemente a Moscou.
Uma nova Igreja Ortodoxa
Cumprindo um antigo desejo do movimento de independência da Ucrânia, Kiev criou em 2018 sua própria igreja ortodoxa autocéfala independente de Moscou, chamada de Igreja Ortodoxa da Ucrânia (IOdaU), que foi reconhecida em seguida, em Istambul, por Bartolomeu 1º, uma espécie de "pontífice honorário" dos 260 milhões de cristãos ortodoxos de todo o mundo.
A IOdaU aumentou seus seguidores desde que a Rússia lançou sua guerra de agressão em fevereiro do ano passado, mas muitos ucranianos permanecem fiéis à sua tradição e aspiram a continuar fazendo parte da IOU, que ainda não se separou canonicamente da Rússia.
Quebra de contrato ou espionagem
O Mosteiro das Caverna é, na verdade, uma espécie de complexo de mosteiros com cerca de 140 edifícios. Como nos tempos soviéticos, é de propriedade do Estado – e o governo ucraniano determina quem pode usá-lo. O ministro da Cultura da Ucrânia, Olexander Tkachenko, rescindiu o contrato de arrendamento com a IOU alegando que o clero teria erguido novos edifícios no local e reformado os já existentes, violando as regras estabelecidas.
No entanto, o motivo real seriam as suspeitas de que membros da IOU estariam trabalhando secretamente para a Rússia. Muitos especialistas acreditam que nada prejudica tanto a reputação da IOU como o apoio estrepitoso do patriarca Cirilo ou de autoridades russas.
Entretanto, o chefe da Igreja Ortodoxa Georgiana, Elias 2º, e o patriarca ortodoxo sérvio, Porfírio, criticaram as ameaças do governo de Kiev de expulsar os monges.
O governo ucraniano disse que, após a saída do clero da IOU, o mosteiro passaria a ser administrado pelos religiosos da IOdaU. Representantes de Kiev garantiram que não deve ocorrer a desocupação forçado do local. Essa não é a primeira vez representantes da IOdaU assumiria uma igreja ou um edifício do IOU na Ucrânia. Há vários outros casos semelhantes, que contaram muitas vezes com o apoio de autoridades estatais.
Apoio de fiéis
Os monges da IOU têm o apoio de números fiéis para permanecer no local. "Viemos aqui todos os domingos desde que nascemos; é muito importante para nós e para as nossas famílias", disse Anastasia Batenko à agência de notícias Efe. Ela e os irmãos foram até o Mosteiro das Cavernas prestar solidariedade aos religiosos.
Os Batenkos pedem ao governo que corrija a situação para que possam continuar praticando sua religião como sempre fizeram e seguir rezando "em nossa igreja".
"Claro que há colaboradores [com a Rússia], mas isso não significa que toda a igreja o seja; olhe para nós, que somos ucranianos comuns", argumentou Anastacia.
O ex-oficial militar, ex-agente da inteligência ucraniana e ex-conselheiro da Presidência, Oleksiy Arestovych, é uma das vozes ortodoxas mais populares da Ucrânia.
Em uma das suas últimas intervenções públicas, Arestovych recordou que a colaboração com a Rússia é uma realidade comprovada entre parte da elite da IOU, enquanto as famílias de muitos ucranianos que morrem lutando contra os russos na guerra querem enterrar os seus filhos e maridos em suas igrejas.
"Acho que nem todos são da KGB, mas certamente há muitos que simpatizam com o Kremlin", disse Arestovych sobre a hierarquia da congregação. "É uma tarefa difícil para o nosso Estado e para a nossa sociedade", completou o ex-assessor presidencial.