Há 110 anos, Einstein ensinava como lidar com trolls
29 de julho de 2022Para júbilo dos entusiastas do célebre físico, em dezembro de 2014 um conjunto de documentos pessoais de Albert Einstein (1879-1955) – cartas, diários, cartões postais – foi colocado online através do projeto The Digital Einstein Papers.
Para além da alta ciência e da genialidade proverbialmente einsteiniana, entre os pontos altos de dignidade e sabedoria contidos nos cerca de 5 mil documentos, destaca-se uma carta de novembro de 1911, dirigida à colega Marie Curie (1867-1934), pioneira da pesquisa da radioatividade.
Ela estava prestes a receber seu segundo Prêmio Nobel, de química – oito anos depois de compartilhar com o marido, Pierre Curie, o Nobel da Física. No momento, contudo, se vira subitamente envolvida num escândalo midiático – o que hoje se chamaria uma shitstorm –, quando um periódico de grande tiragem alardeou a surpreendente notícia de que a polonesa naturalizada francesa tinha um amante.
Viúva há cinco anos, ela mantinha uma relação amorosa com o também físico Paul Langevin, ex-aluno de doutorado de Pierre Curie e também amigo de Einstein. Apesar de separado, tecnicamente ele seguia sendo casado, e a tempestade doméstica se tornou pública quando a mulher do físico entregou aos meios de comunicação as cartas de amor entre Langevin e a renomada colega, cinco anos mais velha do que ele.
"Deixe o lixo para os répteis"
Quando o assunto veio à luz, Curie, Langevin e outros 20 pesquisadores importantes se encontravam numa conferência de elite em Bruxelas. Contudo, ao retornar a Paris, ela foi recebida por uma multidão que cercou e apedrejou sua casa, aterrorizando-a e a suas duas filhas, então com sete e 14 anos de idade. As três tiveram que se proteger, alojando-se temporariamente na casa de uma amiga.
Embora o espetacular trabalho de Marie Curie como cientista devesse ser o único foco de atenções naquele momento – além de primeira mulher a receber o prestigioso prêmio, até hoje ela é a única pessoa laureada em dois campos científicos distintos –, a curiosidade mórbida, alimentada por uma boa dose de xenofobia, foi maior do que tudo.
Em meio a essa turbulência pessoal, chegou a Marie Curie uma carta de Albert Einstein, datada de 23 de novembro de 1911. Ambos haviam se conhecido na recente conferência belga, e a simpatia mútua fora imediata. Indignado com o comportamento da imprensa, ele tomou a iniciativa de oferecer palavras de apoio à colega.
"Altamente estimada Mme. Curie!
Não ria de mim por escrever-lhe sem ter nada sensato para dizer. Mas estou tão enfurecido pela maneira infame como o público atualmente ousa se ocupar de si, que preciso absolutamente expressar esse sentimento. Mas estou convencido de que a senhora despreza essa plebe da mesma forma, quer ela finja respeito hipócrita, quer tente saciar através de si sua avidez por sensacionalismo!
Sinto-me impelido a lhe dizer quanto aprendi a admirar seu intelecto, sua tenacidade, sua honestidade, e que me considero afortunado por tê-la conhecido pessoalmente em Bruxelas. Quem não conta entre os répteis, seguirá feliz por ter entre nós personalidades como a senhora e também Langevin, seres humanos de verdade, cujo contato deixa a gente feliz. Se a plebe ainda continuar se ocupando da senhora, simplesmente não leia esse lixo, mas sim deixe-o para o réptil para quem ele é fabricado.
As mais amistosas saudações à senhora, Langevin e Perrin, de seu dedicado
A. Einstein"
Difícil imaginar uma receita mais sábia e eficaz para lidar com os trolls, haters, shitstorms e outros males que afligem as redes sociais contemporâneas. A mensagem se encerra com um pós-escrito cujo sentido talvez só seja transparente para os mais versados em física:
"P.S.: Determinei a lei estatística do movimento da molécula diatômica no campo de radiação de Planck através de uma divertida piada, naturalmente partindo do princípio de que o movimento da estrutura transcorra segundo as leis da mecânica convencional. Minha esperança de que essa lei seja a que é válida na realidade, entretanto, é muito reduzida."
Admiração mútua
Como costuma acontecer, o falso ultraje popular logo acabou esquecido. Langevin acertou extrajudicialmente a situação com a esposa; Curie confirmou à Academia Sueca que assistiria à entrega do Nobel, a qual transcorreu sem incidentes.
Agradecida pelo apoio tão sincero quanto espontâneo, a cientista estabeleceu uma amizade estreita com Einstein. Ambos passaram férias juntos com os filhos no verão de 1913. Mais tarde, ela se oporia aos sentimentos antigermânicos ainda presentes após a Primeira Guerra Mundial, pressionando para que ele desse uma conferência em Paris em 1922.
Durante uma homenagem póstuma a Marie Salomea Skłodowska–Curie no Museu Roerich de Nova York, em 1935 – ela morrera em julho do ano anterior – Einstein declarou: "Cheguei a admirar sua grandeza humana num grau cada vez mais alto. Sua força, sua pureza de vontade, sua austeridade consigo mesma, sua objetividade, seu julgamento incorruptível: tudo isso era de uma classe que raramente se encontra reunida num só indivíduo."
E concluiu: "Se uma pequena parte da força de caráter e da devoção de Madame Curie estivesse viva nos intelectuais europeus, a Europa teria um futuro mais brilhante."