Filme do diretor Robert Wiene é um dos ápices do expressionismo alemão e mudou a história do cinema. Críticos ainda divergem sobre interpretação dessa obra-prima inovadora.
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Fortes contrastes em preto e branco, um mundo de sombras e escuridão, cenários geometricamente angulosos e símbolos monstruosos na parede, perspectivas e pontos de vistas oblíquos: o mundo escapou do controle e, no meio de tudo isso, atores se contorcem pelos espaços, fugindo em pânico, impulsionados por horrores tanto visíveis quanto imaginários.
Essa poderia ser uma descrição do filme O gabinete do Dr. Caligari, que estreou exatamente há cem anos, em 27 de fevereiro de 1929, no cinema berlinense Marmorhaus.
Para o público presente, a estreia do filme do diretor alemão Robert Wiene deve ter sido perturbadora. Pois, até então, nunca havia se visto um filme mudo como aquele: aterrorizante e surreal, sombrio e distópico.
Foi uma apresentação memorável. Também porque, em retrospecto, esse filme do cinema mudo alemão mudou a Sétima Arte: O gabinete do Dr. Caligari se transformou numa das obras mais influentes de todos os tempos.
Hoje, o filme de Wiene é considerado um primeiro ápice do expressionismo, uma corrente artística que já havia se firmado nas artes plásticas alguns anos antes, tendo sido marcada por muitos pintores e artistas gráficos alemães, como Ernst-Ludwig Kirchner ou Max Pechstein.
A arte expressionista pode ser vista como um movimento de contracultura artística: contra o naturalismo, contra o impressionismo, contra as linhas suaves. Naqueles anos, e expressionismos também se manifestou na literatura, na música, no teatro e na dança.
E, especialmente quando se trata de cinema, a influência do expressionismo alemão alcançou nível mundial. A década de 1920 foi o auge desse estilo nos cinemas: além de O gabinete do Dr. Caligari, obras como Nosferatu, O Golem ou Dr. Mabuse, o jogador se tornaram ícones do gênero.
Fritz Lang, Friedrich Wilhelm Murnau e o diretor de comédias Ernst Lubitsch foram os cineastas alemães mais conhecidos da época. Eles ajudaram o cinema de seu país a obter fama mundial. Seus filmes influenciaram o cinema europeu e especialmente o de Hollywood. Assim como muitos outros artistas alemães, os três diretores acabaram em Hollywood.
Wiene pode não ter se tornado tão conhecido quanto seus conterrâneos, mas dificilmente outra obra cinematográfica foi superada em fama: O gabinete do Dr. Caligari moldou o cinema fantástico, o cinema de terror, o filme noir – até hoje. Na década de 1960, o material foi refilmado nos EUA e influenciou diretores americanos de gerações posteriores, como David Lynch e Tim Burton.
Como explicar a influência que essa corrente cinematográfica exerceu em Hollywood?
A estética irregular, os contrastes agudos, as linhas e estruturas em ziguezague que continuavam até nas legendas são um ponto importante: a forma refletia a alma dos protagonistas. Cenários dramáticos tornavam-se psicogramas dos personagens. Forma e conteúdo se fundiam. Na época, nenhum meio de comunicação poderia expressar isso melhorno do que o cinema. Fala e som não eram necessários – bastavam imagens e música.
Mas e o conteúdo? A história contada por O gabinete do Dr. Caligari é o outro ponto importante – e complexa. Basicamente, a parte principal do filme (que é um exemplo de narrativa enquadrada) gira em torno do Dr. Caligari, um cientista que apresenta um sonâmbulo em feiras, o qual "controla" por meios misteriosos, fazendo com que pratique assassinatos.
Dois rapazes e uma mulher veem o que está acontecendo. Um deles é morto pelo sonâmbulo. Os protagonistas, além da polícia e os médicos, tentam capturar Caligari. Mas, no final, descobre-se que ele é o diretor de um hospício. Então os outros são loucos? Ou é Caligari quem, de forma particularmente pérfida, se coloca acima da razão e manipula o mundo para seus propósitos?
Tais questões permanecem em aberto: não importa quantas vezes se assista a O gabinete do Dr. Caligari, não é possível desvendar totalmente o seu mistério. E isso torna o filme ainda mais atraente. Especialistas não conseguiram decifrar o trabalho de Wiene. Os analistas e historiadores de cinema mais famosos da época propuseram inúmeras leituras e interpretações.
De Caligari a Hitler foi provavelmente o livro de cinema alemão mais famoso e, por certo período, mais influente da primeira metade do século 20. Ele foi escrito por Sigfried Kracauer e publicado inicialmente em inglês, em 1947.
A tese de Kracauer: Wiene e seus roteiristas haviam previsto a ascensão dos nazistas já no início dos anos 1920, apresentando em filmes como O gabinete do Dr. Caligari, tipos e metodologia nazistas. Outros diretores e roteiristas também teriam inconscientemente concebido personagens cinematográficos, que, a partir de 1933, passaram a existir de fato. A tese de Kracauer foi posteriormente contradita, ao menos em parte.
Mas não se pode ignorar como justamente o cinema alemão daquela época encheu as telas com personagens aterrorizantes, concebendo assassinos e tiranos que incitavam pessoas à violência e ao extermínio.
A esse respeito, ainda hoje se pode discutir se traços do Dr. Caligari podem ser reconhecidos em Adolf Hitler, e se o sonâmbulo posto em cena simboliza o povo alemão, que se deixou conduzir ao grande assassinato em massa anos depois.
Exposição "Cinema do Modernismo – O filme na República de Weimar" na Bundeskunsthalle de Bonn mostra obras de período em que Alemanha se tornou centro da Sétima Arte, e que influencia até hoje diretores em todo o mundo.
Foto: Deutsche Kinemathek/Horst von Harbou
Raras cores
Os filmes em preto e branco dominaram a época. E assim também é a maioria dos itens da exposição "Kino der Moderne – Film in der Weimarer Republik" ("Cinema do Modernismo – O filme na República de Weimar"), até 24 de março de 2019 no espaço de exposições Bundeskunsthalle, em Bonn. O cartaz de "Nosferatu" mostra que os designers de pôsteres tiveram mais sorte, já podendo trabalhar com cores.
Foto: Kantonsbibliothek Appenzell Ausserrhoden
Todos em Berlim
O cinema da República de Weimar fez da Alemanha o centro da Sétima Arte, tendo apenas Hollywood como concorrente. Estrelas do cinema europeu vieram principalmente para Berlim. Da Dinamarca, por exemplo, Asta Nielsen. Em 1927, ela interpretou uma prostituta envelhecida no filme "A tragédia da rua", abordando um tema que chamava atenção para grupos marginais.
Foto: Deutsche Kinemathek
Tempo de ousadia
A República de Weimar foi a época do cinema de vanguardas. A vida moderna urbana inspirou inúmeros artistas e cineastas a experimentações. Hans Richter, também conhecido como artista plástico e fotógrafo, rodou um curta-metragem experimental que simplesmente chamou de "Estudo de cinema". Richter transformou fotografias, cenas reais e animação numa colagem arrojada.
Foto: Deutsche Kinemathek
Mutantes papéis de gênero
Na República de Weimar também romperam-se noções tradicionais do papel de gênero – pelo menos nos círculos boêmio e artístico. Estrelas de cinema e teatro como Marlene Dietrich e Elisabeth Bergner (foto) brincavam abertamente com clichês de masculino/feminino. A esse respeito, a década de 1920 antecipou muitas coisas – que depois se tornaram novamente um tabu por muito tempo, a partir de 1933.
Foto: Deutsche Kinemathek/Angelo
Participação infantil
Os diretores e roteiristas da época voltaram os olhares para diferentes meios e estratos sociais. E não apenas no mundo dos adultos: as crianças também foram para a frente das câmeras. Ainda hoje, vale a pena ver a primeira filmagem do livro de Erich Kästner "Terrível armada", de Gerhard Lamprecht, que ensaia aqui em 1931 com os atores infantis.
Foto: Deutsche Kinemathek/Emanuel Loewenthal
Cada vez mais rápido
Na época, o tema da mobilidade abrangia toda a Europa. Além das artes plásticas, o cinema foi o meio ideal para mostrar as novas possibilidades da locomoção rápida. Automóveis apareciam de repente nas telas – e passavam a fazer parte do elenco. O filme "Atenção! Amor! Perigo de vida!" (1929, foto) foi um dos primeiros a abordar o tema do automobilismo.
Foto: Deutsche Kinemathek/Hans G. Casparius
Forças da natureza
Durante a República de Weimar, foram feitos muitos filmes em que urbanidade, velocidade e progresso foram capturados na tela. Mas ao mesmo tempo surgiu algo como um contramovimento. A natureza foi retratada em todas as suas facetas. Particularmente impressionantes eram as paisagens montanhosas que o diretor Arnold Fanck apresentou ao público em seus dramas alpinos.
Foto: Deutsche Kinemathek/Hans G. Casparius
Pessoas no domingo
O equilíbrio entre a vida na cidade e o idílio da natureza resultou num dos filmes mais famosos da República de Weimar: "Gente no domingo". A obra semidocumental, que marcou mais tarde o trabalho de diretores famosos como Billy Wilder, Robert Siodmak e Fred Zinnemann, mostrava um grupo de jovens em suas horas de lazer, no lago Wannsee em Berlim.
Foto: Deutsche Kinemathek
Interesse político
Cedo, a política reconheceu o poder que emanava do cinema. Esta foto de 1920 mostra o primeiro presidente da República de Weimar, Friedrich Ebert, nas filmagens de "Ana Bolena", de Ernst Lubitsch, junto às estrelas Henny Porten e Emil Jannings. Com a ascensão do nazismo, mais de uma década depois, o cinema tornou-se um poderoso instrumento de propaganda.
Foto: Deutsche Kinemathek
Culto do esporte e do corpo
O filme cult "Caminhos da força e da beleza", de Wilhelm Prager, foi posteriormente interpretado como pioneiro da estética nazista, tendo influenciado Leni Riefenstahl. Na estreia em 1926, no entanto, ele provocou reações positivas. O filme explorava a relação das pessoas com o corpo e quis dar impulsos a uma vida saudável, com referências da Antiguidade.
Foto: Deutsche Kinemathek
Prazer e vício
Hoje, a década de 1920 também é considerada um símbolo de uma sociedade ávida por diversão. Especialmente a Berlim daqueles anos é vista como uma "dança no vulcão". Uma visão que procede, mas também ignora muitos aspectos da vida das pessoas normais. Filmes como "Diário de uma garota perdida", com as estrelas Louise Brooks e Speedy Schlichter (foto), contribuíram para essa imagem.
Foto: Deutsche Kinemathek
Delírio de imagens
É indiscutível que o cinema alemão fez grandes conquistas durante a República de Weimar. Surgiram numerosas obras-primas com influência significativa em diretores de todo o mundo, até hoje. Entre outros, o trabalho dos figurinistas dos grandes estúdios de Berlim também marcou época: aqui se veem três senhoras do "Eterno Jardim de Delícias" do clássico de Fritz Lang "Metrópolis".
Foto: Deutsche Kinemathek/Horst von Harbou
Preto, branco, sombra e luz
Além de épicos monumentais como "Metrópolis" e "Os Nibelungos", sobretudo os filmes expressionistas ainda estão entre os marcos da história do cinema atual. Obras-primas como "M, o vampiro de Düsseldorf", de Fritz Lang, desenvolveram suas histórias com uma impressionante linguagem visual que se concentrava em sombras e fortes contrastes.