Ancara ataca pela primeira vez posições do "Estado Islâmico" na Síria. Para a especialista Gülay Kizilocak, troca de golpes com jihadistas tem a ver com fato de o governo estar enfraquecido e a sociedade, dividida.
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Após milicianos do "Estado Islâmico" (EI) dispararem contra um posto militar turco, a Turquia bombardeou pela primeira vez posições do grupo extremista em território sírio, informou o governo turco nesta sexta-feira (24/07).
Gülay Kizilocak, especialista do Centro de Estudos Turcos em Essen, na Alemanha, atribui em parte a escalada da situação na região ao fato de o governo turco estar enfraquecido no momento. Desde as eleições parlamentares em junho, o primeiro-ministro Ahmet Davutoğlu tenta formar uma coalizão.
Além disso, há a ameaça do EI, que controla áreas do território sírio na fronteira com a Turquia, assim como a divisão da sociedade em setores pró e anticurdos, numa "espécie de guerra civil".
DW:A Força Aérea da Turquia está atacando posições do "Estado Islâmico" (EI) na Síria. A situação na região está se agravando?
Gülay Kizilocak: Trata-se de uma situação altamente explosiva, logo após as eleições parlamentares de junho. O governo ainda está ocupado com a formação de uma possível coalizão, e a sociedade está dividida em dois campos de batalha: um pró-curdo e outro anticurdo. A isso se soma a constante ameaça dos terroristas do EI. Assim, é possível dizer que uma espécie de guerra civil está em curso no sudeste da Turquia.
Quanto às eleições parlamentares, como avalia a influência delas sobre os atuais acontecimentos?
Para mim está claro que nesta situação de insegurança há muitos que tentam se aproveitar da situação, porque no momento o governo atua apenas como negociador. O AKP [partido conservador islâmico do presidente Recep Tayyip Erdogan] deve que aceitar claras derrotas, e até hoje, mais de dois meses depois [das eleições], não foram tomados passos razoáveis no sentido de formar um governo. Todos os partidos que poderiam agora entrar em questão bloqueiam uma possível coalizão de governo, e muitos tentam se aproveitar dessa insegurança.
A senhora atribui os acontecimentos atuais ao fato de o governo estar enfraquecido?
Sem dúvida. Além disso, o governo turco tolerou as ações do EI até agora. Isso também se viu no ano passado, quando houve ataques em Kobane, diretamente na fronteira [da Síria] com a Turquia. E agora, como o governo está enfraquecido, a situação se agrava ainda mais.
O vencedor das eleições foi o partido curdo HDP. Qual o papel da legenda na situação atual?
O HDP tem o papel mais difícil no momento, acho, porque ele nasceu em consequência dos acontecimentos políticos dos últimos anos. O HDP não é mais apenas um porta-voz dos curdos no sudeste [da Turquia], mas também um ponto de convergência da esquerda intelectual contra o partido conservador islâmico do governo, o AKP. Muitos [eleitores de outros partidos] votaram no HDP por questões estratégicas e querem ver agora se o HDP realmente vai fazer diferença, sobretudo diante do contexto dos atuais ataques no sudeste do país.
Em termos de política externa, a senhora vê no comportamento do governo turco e agora também na interação com os americanos uma nova etapa das relações Turquia-Estados Unidos?
Acho que as relações turco-americanas sempre estiveram num nível razoável. É verdade que nos últimos tempos ocorreram algumas discordâncias, mas nunca houve uma distância grave entre a Turquia e os EUA. Por isso, não se trata de uma "nova" aliança. Mas é importante ter os EUA como aliado forte, que dá suporte na luta contra o EI.
"Estado Islâmico": de militância sunita a califado
Origens do grupo jihadista remontam à invasão do Iraque, em 2003. Nascido como oposição ao domínio xiita e inicialmente um braço da Al Qaeda, EI passou por mudanças e virou uma ameaça internacional.
Foto: picture-alliance/AP Photo
A origem do "Estado Islâmico"
A trajetória do "Estado Islâmico" (EI) começou em 2003, com a derrubada do ditador iraquiano Saddam Hussein pelos EUA. O grupo sunita surgiu a partir da união de diversas organizações extremistas, leais ao antigo regime, que lutavam contra a ocupação americana e contra a ascensão dos xiitas ao governo iraquiano.
Foto: picture-alliance/AP Photo
Braço da Al Qaeda
A insurreição se tornou cada vez mais radical, à medida que fundamentalistas islâmicos liderados pelo jordaniano Abu Musab al Zarqawi, fundador da Al Qaeda no Iraque (AQI), infiltraram suas alas. Os militantes liderados por Zarqawi eram tão cruéis que tribos sunitas no Iraque ocidental se voltaram contra eles e se aliaram às forças americanas, no que ficou conhecido como "Despertar Sunita".
Foto: AP
Aparente contenção
Em junho de 2006, as Forças Armadas dos EUA mataram Zarqawi numa ofensiva aérea e ele foi sucedido por Abu Ayyub al-Masri e Abu Omar al-Bagdadi. A AQI mudou de nome para Estado Islâmico do Iraque (EII). No ano seguinte, Washington intensificou sua presença militar no país. Masri e Bagdadi foram mortos em 2010.
Foto: AP
Volta dos jihadistas
Após a retirada das tropas dos EUA do Iraque, efetuada entre junho de 2009 e dezembro de 2011, os jihadistas começaram a se reagrupar, tendo como novo líder Abu Bakr al-Bagdadi, que teria convivido e atuado com Zarqawi no Afeganistão. Ele rebatizou o grupo militante sunita como Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL).
Foto: picture alliance/dpa
Ruptura com Al Qaeda
Em 2011, quando a Síria mergulhou na guerra civil, o EIIL atravessou a fronteira para participar da luta contra o presidente Bashar al-Assad. Os jihadistas tentaram se fundir com a Frente Al Nusrah, outro grupo da Síria associado à Al Qaeda. Isso provocou uma ruptura entre o EIIL e a central da Al Qaeda no Paquistão, pois o líder desta, Ayman al-Zawahiri, rejeitou a manobra.
Foto: dapd
Ascensão do "Estado Islâmico"
Apesar do racha com a Al Qaeda, o EIIL fez conquistas significativas na Síria, combatendo tanto as forças de Assad quanto rebeldes moderados. Após estabelecer uma base militar no nordeste do país, lançou uma ofensiva contra o Iraque, tomando sua segunda maior cidade, Mossul, em 10 de junho de 2014. Nesse momento o grupo já havia sido novamente rebatizado, desta vez como "Estado Islâmico".
Foto: picture alliance / AP Photo
Importância de Mossul
A tomada da metrópole iraquiana Mossul foi significativa, tanto do ponto de vista econômico quanto estratégico. Ela é uma importante rota de exportação de petróleo e ponto de convergência dos caminhos para a Síria. Mas a conquista da cidade é vista como apenas uma etapa para os extremistas, que pretenderiam avançar a partir dela.
Foto: Getty Images
Atual abrangência do EI
Além das áreas atingidas pela guerra civil na Síria, o EI avançou continuamente pelo norte e oeste iraquianos, enquanto as forças federais de segurança entravam em colapso. No fim de junho, a organização declarou um "Estado Islâmico" que atravessa a fronteira sírio-iraquiana e tem Abu Bakr al-Bagdadi como "califa".
Foto: Reuters
As leis do "califado"
Abu Bakr al-Bagdadi impôs uma forma implacável da charia, a lei tradicional islâmica, com penas que incluem mutilações e execuções públicas. Membros de minorias religiosas, como cristãos e yazidis, deixaram a região do "califado" após serem colocados diante da opção: converter-se ao islã sunita, pagar um imposto ou serem executados. Os xiitas também eram alvo de perseguição.
Foto: Reuters
Guerra contra o patrimônio histórico
O EI destruiu tesouros arqueológicos milenares em cidades como Palmira (foto), na Síria, ou Mossul, Hatra e Nínive, no Iraque. Eles diziam que esculturas antigas entram em contradição com sua interpretação radical dos princípios do Islã. Especialistas afirmam, porém, que o grupo faturou alto no mercado internacional com a venda ilegal de estátuas menores, enquanto as maiores eram destruídas.
Foto: Fotolia/bbbar
Ameaça terrorista
Durante suas ofensivas armadas, o "Estado Islâmico" saqueou centenas de milhões de dólares em dinheiro e ocupou diversos campos petrolíferos no Iraque e na Síria. Seus militantes também se apossaram do armamento militar de fabricação americana das forças governamentais iraquianas, obtendo, assim, poder de fogo adicional.