Héctor Abad: "Conciliação é muito difícil no mundo de hoje"
Nicolas Martin av
5 de janeiro de 2017
Escritor colombiano perdeu o pai na guerra civil e aborda a violência do conflito no livro "A ausência que seremos". À DW, autor conhecido como "o novo García Márquez" fala sobre o país e as chances dos esforços de paz.
Anúncio
Héctor Abad Faciolince nasceu em 1958 em Medellín. Após o assassinato de seu pai, no contexto do conflito armado em seu país, ele se exilou por cinco anos na Europa. Com o lançamento do livro A ausência que seremos, sobre a vida e morte paterna, ele se projetou na cena literária internacional, sendo hoje frequentemente citado como o novo Gabriel García Márquez.
O autor, jornalista e editor também se pronuncia sobre temas políticos em ensaios e colunas. A DW entrevistou Abad sobre o processo de paz na Colômbia, em andamento após mais de cinco décadas de combates entre governo, paramilitares e guerrilheiros, que deixaram ao menos 220 mil mortos.
DW: A literatura colombiana contemporânea trata muito de violência, assassinatos e medos. No entanto, a Colômbia é considerada um dos países mais bonitos do mundo. Por que todo esse peso?
Héctor Abad: Nossa imaginação se alimenta de nossas experiências e lembranças. Também não gosto de escrever sobre violência: eu a rechaço e não sou, eu mesmo, violento. Mas quando ela bate com toda força em sua porta, suja você de sangue e até mata um dos seus, aí parece errado e pouco autêntico não escrever sobre violência.
Nos seus livros, o senhor também trabalha sua própria história com o conflito armado na Colômbia. Por mais de 50 anos os guerrilheiros, os paramilitares e o governo se combateram. Como a guerra civil o afetou diretamente?
Minha família tem uma ligação muito estreita com a Colômbia rural, que é onde o conflito principalmente se travou. A guerrilha sequestrou duas vezes o meu cunhado. Ele possui 120 vacas e produz leite. O primeiro sequestro só durou pouco, da segunda vez ele ficou alguns meses em cativeiro. Depois disso, foi forçado a pagar regularmente uma "taxa de proteção", para poder continuar tocando o seu negócio.
Uma ex-namorada minha foi gravemente ferida num atentado a bomba do chefão do narcotráfico Pablo Escobar. Muita gente morreu. Depois do atentado, ela ficou cheia de pequenas cicatrizes, no rosto e no corpo inteiro, dos cacos de vidro que voaram na explosão.
E aí, em 1987, os paramilitares de direita fuzilaram em plena rua o seu pai, um professor de medicina muito conhecido, que se engajava pelos direitos humanos e contra a violência.
Meu pai era um homem muito bondoso e generoso. Para mim, pessoalmente, ele é com certeza a vítima mais dolorosa. Talvez não se possa comparar o conflito armado com as atrocidades das guerras europeias do século 20, mas, mesmo assim, as dimensões da violência são tremendas. Minha família foi atingida pelos dois lados, da extrema esquerda e da extrema direita. Meu pai sempre esteve convencido que um acordo de paz seria a melhor coisa para diminuir a violência no país. Eu mesmo vivi vários anos no exílio. Agora estou de volta e vejo um esforço sério de tornar realidade os sonhos que o meu pai tinha, 30 anos atrás.
A Colômbia é um país multifacetado. Numerosos intelectuais colombianos argumentam que ele não estaria pronto para a paz, devido à sua heterogeneidade. O que pensa dessa avaliação?
A Alemanha conseguiu integrar até mesmo um Estado inteiro, a RDA [antiga Alemanha Oriental]. Por que não o conseguiríamos? Aqui na Colômbia, em alguns lugares a pessoa se sente como nos Estados Unidos, em outros, como na Ásia, África ou até num país árabe. Temos vales que lembram a Suíça, há até cavalos [da raça alemã] Holsteiner. Temos música andina, africana e europeia. Nosso país é grande e multifacetado.
Mas considero errado afirmar que essas muitas Colômbias não poderiam se integrar. Como vamos saber que não estamos preparados para a paz, se não tentarmos? O sonho da humanidade, afinal, é podermos conviver, apesar de nossas diferenças. Essa é a vitória da história da humanidade.
Em 2 de outubro de 2016 os colombianos votaram em referendo contra um acordo de paz entre o governo e o grupo guerrilheiro Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). O senhor acha que agora a conciliação no país vai ter sucesso?
Da mesma forma como fui a favor da paz com os paramilitares [em 2006 quase 30 mil combatentes se desmobilizaram], eu agora também sou pelo novo acordo de paz. É a chance de a Colômbia se dedicar a problemas mais urgentes, em vez de travar uma guerra inútil e absurda, que ninguém pode vencer.
No entanto, a conciliação é muito difícil no mundo de hoje, em que vencem as ideias do ódio. Não só na Colômbia, também na Europa – na França, por exemplo – essas ideias podem se impor. E aí houve o Brexit, a vitória de Donald Trump. No momento, a confrontação tem popularidade; o espírito da época permite se apresentar como anti-establishment, e aí ser violento, racista, antifeminista e homófobo.
Apesar da sua própria história, o senhor não se define como vítima do conflito na Colômbia. Por quê?
É claro que essas vivências e perdas vão me acompanhar por toda a vida. Mas o rancor e a insistência em se ver permanentemente como vítima pode te destruir por dentro. Eu tive a sorte de poder escrever um livro sobre a vida e o assassinato do meu pai. Isso foi muito salutar para mim e me permite não mais me ver como vítima. Eu pude plantar a minha própria verdade, que também é lida por muitas pessoas.
Cronologia do conflito e do processo de paz na Colômbia
Acordo com as Farc foi alcançado após décadas de luta armada e tensões sociais na Colômbia. País trabalha agora na implementação do pacto e na reintegração de ex-guerrilheiro à sociedade.
Foto: Imago/Agencia EFE
Longo caminho da violência à paz
As décadas de violentas tensões sociais, que chegam ao fim com o novo acordo de paz na Colômbia, têm origem na luta no campo, que opôs trabalhadores rurais e proprietários de terras desde os anos 1920. As hostilidades se intensificaram a partir da década de 1960.
Foto: Reuters/J. Vizcaino
1940-1950: A Violência
Enfrentamentos sangrentos entre liberais e conservadores provocam milhares de mortes. O assassinato do liberal Jorge Elíecer Gaitán (foto), em 1948, gera protestos que ficaram conhecidos como "El Bogotazo", dando início ao período denominado "La Violencia". Membros do Partido Comunista são perseguidos, o Exército ocupa povoados e reprime os "lavradores comunistas".
Foto: Public Domain
1964: Farc e ELN
São fundadas as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), contra a concentração de terras, e o Exército de Libertação Nacional (ELN), fruto da radicalização do movimento estudantil e apoiado por adeptos da Teologia da Libertação, que prega a opção pelos pobres. O padre Camilo Torres (foto), guerrilheiro, é morto em combate. O governo colombiano recebe ajuda dos Estados Unidos.
Foto: picture-alliance/AP Photo
1970-1980: M-19 e negociações fracassadas
Surgem outros movimentos clandestinos como o M-19, que protagonizou a trágica ocupação do Palácio da Justiça em 1985 (foto), com mais de 350 reféns. A retomada do prédio pelas Forças Armadas deixa 98 mortos e 11 desaparecidos. O governo abre negociação pela primeira vez com as Farc e o ELN, mas o entendimento fracassa devido ao assassinato do ministro da Justiça.
Foto: Getty Images/AFP
Meados dos anos 80: Paramilitares
Surgem numerosos grupos paramilitares de ultradireita, a serviço de grandes proprietários de terras, contra os ataques rebeldes. Ao longo do tempo, vários desses grupos se envolvem com cartéis de droga. Quatro candidatos presidenciais e numerosos políticos de esquerda são assassinados por paramilitares entre 1986 e 1990.
Foto: Carlos Villalon/Liaison/Getty Images
1989: Desmobilização do M-19
O movimento M-19 entrega as armas em outubro de 1989, optando por disputar o poder como um partido político. Seu líder, Carlos Pizarro, candidata-se a presidente. Em 1990, ele é morto durante a campanha eleitoral.
Foto: picture alliance/Demotix/K. Hoffmann
1996: Esquadrões da morte
Grupos paramilitares se reúnem no movimento Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) e formam "esquadrões da morte" com até 30 mil membros.
Foto: AP
1998-99: Presidente Pastrana tenta negociar
Eleito em 1998, o presidente Andrés Pastrana inicia negociação com as Farc. Conversa também com o ELN (foto) e a AUC. Um vasto território até então controlado pelas Farc, no sul do país, comemora o recuo do grupo. Um massacre interrompe as conversas com a AUC.
Foto: picture-alliance/dpa
2002: Ingrid Betancourt e Álvaro Uribe
Depois que as Farc sequestram um avião, o governo interrompe o diálogo. Em 23 de fevereiro é sequestrada a candidata à presidência Ingrid Betancourt (foto). Álvaro Uribe ganha as eleições em maio, intensifica o combate militar e repudia qualquer entendimento. Ele é reeleito em 2007 e Betancourt, libertada em 2008.
Foto: AFP/Getty Images
2003-06: Recuo dos paramilitares e anistia
Após longas negociações, aproximadamente 32 mil paramilitares da AUC se rendem (foto). Até 2014, cerca de 4.200 deles são julgados por violações dos direitos humanos. Muitos retomam as armas. Em junho de 2005 é aprovada a Lei de Justiça e Paz, uma ampla anistia para membros dos esquadrões da morte.
Foto: picture-alliance/dpa
2007-08: "Falsos positivos"
Políticos de direita, acusados de vínculo com os paramilitares, são detidos em 2007 pela primeira vez. Aliados de Uribe também são atingidos. Em setembro de 2008 é revelado o escândalo batizado de "falsos positivos": entre 2004 e 2008, mais de 3 mil pessoas foram mortas pelo Exército para adulterar a estatística de guerrilheiros eliminados. Centenas de militares foram julgados até agora.
Foto: Jesús Abad Colorado
2012: Iniciados diálogos de paz com Farc
Ex-ministro da Defesa Juan Manuel Santos é eleito presidente da Colômbia em junho de 2010. Dois anos depois, entra em vigor a Lei de Vítimas e Restituição de Terras, para compensar os deslocados pelos combates. Em novembro têm início oficialmente os diálogos de paz entre governo (foto) e as Farc.
Foto: Reuters
2014-15: Santos reeleito e prazo para a paz
Santos se reelege em 2014. O governo colombiano anuncia conversações con o ELN. Enquanto isso, entendimentos com as Farc são interrompidos e reabertos devido a ações militares de ambos os lados. Em 23 de setembro de 2015, em Havana, Santos e Rodrigo Londoño Echeverri (Timochenko), líder das Farc, concordam com a meta de assinar um termo de paz em até seis meses.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Ernesto
2016: Diálogos de paz com ELN
Em 30 de março, Frank Pearl, representante do governo da Colômbia, e Antonio García, chefe da delegação do ELN (foto), anunciam em Caracas o início de um processo formal de diálogos de paz. Em relação às Farc, desacordos levam ao adiamento da assinatura do acordo de paz definitivo, cujo prazo expira em 23 de março.
Foto: Reuters/M. Bello
Junho de 2016 - Dia da paz
Acordo de paz entre o governo colombiano e as Farc foi finalmente concluído. A decisão foi recebida com entusiasmo tanto pela população do país, como pela comunidade internacional. O cessar fogo definitivo foi assinado em Cuba em 23 de junho com a presença do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e outros presidentes e observadores.
Foto: picture-alliance/dpa/EPA/A. Ernesto
Agosto de 2016 - Acordo histórico
Em 24 de agosto, governo e Farc selaram o acordo final que encerra as negociações de paz realizadas em Havana nos últimos quatro anos. Ele foi assinado pelos chefes das equipes de negociação de ambas as partes, Humberto de la Calle, pelo governo, e Luciano Marín, conhecido como "Ivan Márquez", representando a guerrilha, assim como pelos embaixadores de Cuba e Noruega, fiadores no processo.
Foto: Reuters/E. de la Osa
Setembro de 2016 – Assinatura
Três dias após os líderes das Farc ratificarem por unanimidade o acordo de paz, o documento foi assinado pelo presidente colombiano, Juan Manuel Santos, e pelo número um do grupo armado Rodrigo Londoño Echeverri, conhecido como Timochenko, em Cartagena, em 26 de setembro. Numa cerimônia que lembrou as vítimas da guerra, o líder guerrilheiro pediu perdão pelo sofrimento causado durante o conflito.
Foto: Reuters/J. Vizcaino
Outubro de 2016 – Não
Em 2 de outubro, os colombianos foram às urnas decidir sobre o futuro do acordo de paz. Em resultado surpreendente, 50,22% dos eleitores rejeitaram o documento. Apenas 37% dos colombianos participaram do plebiscito, ou seja, cerca de 13 milhões dos 34 milhões de eleitores.
Foto: picture alliance/AP Photo/A. Cubillos
Outubro de 2016 - Nobel da Paz para Santos
Apenas cinco dias depois do referendo sobre o acordo as Farc, os apoiadores do processo de paz foram reconhecidos internacionalmente. O presidente colombiano Juan Manuel Santos foi homenageado com o Prêmio Nobel da Paz. A cerimônia de premiação foi realizada em dezembro de 2016 em Oslo.
Foto: Getty Images/AFP/T. Schwarz
Novembro de 2016 - Ratificação no Parlamento
Após uma série de alterações no texto original do acordo de paz, o Parlamento colombiano ratificou o pacto em 30 de novembro de 2016.
Foto: Getty Images/AFP/G. Legaria
Junho de 2017 - Desarmamento
A entrega das armas pelos guerrilheiros das Farc ocorreu em três fases sob a supervisão da ONU. Em 27 de junho de 2017, Santos declarou: "Hoje é, para mim e para todos os colombianos, um dia especial, um dia em que trocamos as armas por palavras."
Foto: picture-alliance/dpa/A. Pineros
Agosto de 2017 - As novas Farc
As Farc desarmadas selaram num congresso em 27 de agosto de 2017 o abandono da luta armada e sua reformulação como partido político. O ex-líder guerrilheiro Rodrigo Londoño (foto) foi eleito presidente do partido. Sua saúde fragilizada, no entanto, impediu que ele se candidatasse às eleições presidenciais.
Foto: picture-alliance/AP Photo/F. Vergara
Março de 2018 - Farc nas eleições
Pela primeira vez desde o fim da luta armada, representantes das Farc participam de eleições legislativas em 11 de março de 2018. Apesar de o partido das Farc só ter recebido 50 mil votos, ele obteve cinco assentos em cada uma das duas casas legislativas, como determinou o acordo de paz. O partido conservador do antigo presidente Álvaro Uribe foi o grande vencedor do pleito.