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Teatro

Simone de Mello19 de fevereiro de 2007

A mais recente peça de Peter Handke, encenada no Berliner Ensemble, retoma coreografia da contemporaneidade em cenas fragmentárias que comportam tanto os gestos do cotidiano como a dimensão do mito.

Atores Carmen-Maja Antoni e Axel Werner numa cena da nova peça de HandkeFoto: picture alliance / ZB

"E vejo mais dois andando pelo palco. Agora um fecha o caminho do outro, coloca o braço sobre seus ombros e faz-se ouvir: 'Tente não ver as coisas de forma tão trágica'. O outro repulsa o braço para longe. O primeiro repete o gesto e diz: 'Isso pode acontecer com qualquer um. Então o goleiro que deixou passar uma vez a bola entre as pernas tem que parar de jogar para sempre só por isso? O ator que mordeu a ponta da língua ao dar um salto tem que abandonar a profissão por isso? O cirurgião que esqueceu a tesoura na barriga do paciente tem que virar lenhador no Amazonas por isso? O filho que bateu na mãe tem que se jogar do Matterhorn por isso?'

E o outro volta a repelir, não, arremessar para longe o braço alheio, fazendo-se ouvir: 'Tem, tem sim. E o cirurgião também tem que se jogar do Matterhorn, junto com sua tesoura. E o ator também, para que morda a língua até a raiz. E o nosso goleiro idem, para não ter que ficar vendo sem parar a cena do gol na televisão'. E de novo o braço em volta dos ombros. E de novo o braço sacudido para longe.

'Então o serial killer tem que ser punido só por isso? O terrorista suicida se explodir com suas vítimas só virtualmente? Como você sabe consolar. Um consolador inato. E seu consolo, ele sim consegue deixar a pessoa inconsolável mesmo, e não é de hoje. E no mais – não é nada pessoal, viu – não só o seu consolo, mas qualquer consolo, desde sempre. Só que o jeito de você consolar é o mais desconsolado de todos.' O primeiro baixa a cabeça; e fica assim. O outro, que já seguira em frente, retorna depois de um tempo e agora é ele a colocar o braço em volta dos ombros do primeiro. E assim os dois desaparecem."

Drama reencontrado

Pares surpreendidos em meio à paisagem, envolvidos em conversas sem início nem fim, insinuando potenciais enredos em fragmentárias miniaturas cênicas: esta é a mais nova peça de teatro do escritor austríaco Peter Handke, Die Spuren der Verirrten (As Pegadas dos Perdidos, 2006) encenada pela primeira vez por Claus Peymann, numa montagem que estreou no último sábado (17/02) no Berliner Ensemble.

Peter HandkeFoto: AP

"Em Spuren der Verirrten, eu não tinha tema nenhum", declarou o autor em recente entrevista à imprensa alemã, "a não ser pequenas constelações que observei nas ruas de Paris. Por exemplo duas crianças voltando da escola para casa. Uma queria carregar a bolsa da outra, mas esta não deixava: 'Sai, vai embora'. Devia ter acontecido algo entre as duas antes, mas não dava para saber o quê".

Em Die Stunde, in der wir nichts voneinander wussten (traduzida para o português como 'A hora em que não sabíamos nada uns dos outros'), uma peça de 1992 que consiste apenas de indicações de cena, Handke já havia experimentado com esta espécie de found drama. Mas o observador sutil, capaz de encontrar na realidade cenas mais dramáticas que as encenadas, está sentado na platéia desta vez:

"E volto a tomar meu lugar como espectador. Desde sempre, não faço nada a não ser assistir. E este passou a ser o meu papel. De tanto assistir, não cheguei a fazer mais nada. Se bem que dizem que sou bom espectador, sim, um observador convincente, e isso seria mais que um bom ouvinte. O quão convincente? Isso ainda se verá, quem sabe."

Da instabilidade das formas

"Não se pode perder nenhuma forma", diz uma das figuras perdidas neste drama. Como grande compilador de formas, capaz de conferir aos menores sinais e indícios do presente – sobretudo em sua prosa narrativa – uma dimensão épica universal, Handke coleciona em sua última peça momentos híbridos, entre o cômico e o trágico, o explosivo e o inofensivo, o nonsense e o emblemático. Mas sua grande mestria é o senso temporal e rítmico com que interliga esses achados numa curva dramática que supera a força de qualquer enredo.

O intrigante desta nova peça, assim como de toda a ficção handkeana dos últimos cinco anos – A Perda da Imagem (2002), Don Juan (2004) e o recém-lançado Kali (2007) – é o ambíguo limite entre a serenidade do momento presente e a ameaça subliminar de um iminente conflito que se configura apenas indicialmente, matendo-se invisível. Uma crônica da atualidade?

Elisabeth Rath (segunda da esquerda) e o elenco do Berliner Ensemble em 'Spuren der Verirrten'Foto: picture alliance / ZB

Em Spuren der Verirrten, as cenas com caráter ainda cotidiano degeneram, ao longo da peça, num mundo sombrio. O passeio dos transeuntes parece se converter em estranho fluxo migratório, os perdidos de antes são os desterrados e fugitivos de depois. O tráfego continua o mesmo, mas sob uma nova luz, de nuances apocalípticas. Com os mesmos gestos circunstanciais do início, passa-se a entrever a gravidade bíblica de Abraão e Caim e a dimensão mítica de Medéia e Édipo.

Mas a sombra do fim dos tempos é dissipada pela intervenção de um personagem solitário, o "terceiro" em meio aos pares, que reinterpreta o apocalipse como fim de jogo, como final do tempo de atuação. E no fim é o próprio espectador fictício que intervém, anunciando que já passou a época da tragédia, após terem se abolido os culpados.

Fins falsos e o efeito de estranhamento

Todos esses fins falsos seriam ótimas deixas para o diretor Claus Peymann explorar o efeito de estranhamento brechtiano a que recorre explicitamente apenas em momentos esporádicos, como nas passagens em verso, transformados em canções. Mas o espectador fictício, autor e público em um e claro recurso do teatro épico, é mais passivo na encenação do que o próprio texto insinua.

Claus PeymannFoto: AP

Die Spuren der Verirrten é um texto em prosa corrida, com diálogos embutidos. Com isso, o grande dinamismo e a expressividade do texto que emoldura os diálogos acabam se perdendo, se a encenação apenas reproduzir as passagens dialógicas. Este é o caso da montagem de Peymann, um diretor que encena Handke desde suas primeiras peças na década de 60.

Com uma caracterização típica dos passantes como personagens identificáveis, as figuras de Peymann perdem o caráter anônimo e esboçado que têm no texto. O diretor elimina grande parte do que a peça de Handke tem de circunstancial e gratuito, levando a uma grave perda de ambigüidade.

Talvez Die Spuren der Verirrten evidencie, como nenhuma outra peça anterior de Handke, a dificuldade de encenar uma literatura que vive da contínua autocorreção do discurso e da permanente transformação das imagens. A mera concretização em palco já implica estabilizar a imagem literária, algo fatal para a poética handkeana. Só mesmo com enorme poder de abstração e sutileza esta peça pode ser encenada de forma convincente.

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