Britânica relata história de campo de concentração feminino
25 de janeiro de 2016Judeus, ciganos, presos políticos, homossexuais: muito já se escreveu sobre os diferentes grupos visados pelo regime nazista e confinados aos campos de concentração e extermínio, entre outras penas. A um determinado subgrupo entre essas vítimas, contudo, estavam reservados sofrimentos especialmente cruéis: as mulheres. No entanto, com frequência elas são esquecidas nos registros dos historiadores.
Entre 1939 e 1945, cerca de 130 mil cidadãs de 40 nações foram mantidas em Ravensbrück, o único campo exclusivamente feminino, no atual estado alemão de Brandemburgo. Dezenas de milhares delas foram assassinadas ou sucumbiram à fome, doenças ou experiências médicas.
Em If this is a woman. Inside Ravensbrück: Hitler's concentration camp for women (Se isso é uma mulher. Por dentro de Ravensbrück: O campo de concentração de Hitler para mulheres), a britânica Sarah Helm descreve o destino e o quotidiano dessas internas e suas guardas femininas, com base no testemunho de sobreviventes.
Um ano após o lançamento em inglês, o livro chega no fim de janeiro de 2016 às livrarias alemãs, sob o título Ohne Haar und ohne Namen (Sem cabelo e sem nome). A DW entrevistou a autora.
DW: Seu livro sobre o campo de concentração feminino de Ravensbrück está sendo lançado agora na Alemanha, mais de 70 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. Como ainda conseguiu falar com as sobreviventes?
Sarah Helm: Tive a grande sorte de poder encontrar muitas sobreviventes ao começar as pesquisas para o meu livro, em 2007. Obviamente a maioria era jovem na época do campo. Mas algumas não, já sendo nonagenárias quando as encontrei. Muitas eram britânicas, e algumas até minhas vizinhas. Vivo no sul de Londres, onde havia muitas polonesas. Também encontrei uma holandesa morando a apenas poucas ruas da minha casa. Foi uma surpresa grande.
Algumas estavam muito longe, claro. Tive que ir para Odessa, Donetsk, São Petersburgo e Moscou para encontrar as sobreviventes russas e ucranianas. Mas ainda estou surpresa de quantas eu achei. Encontrei-me com umas 50 mulheres. Somando aquelas com que troquei correspondência, o total chega a 60 ou 70.
Como essas sobreviventes reagiram às suas perguntas?
Eu cheguei a algumas delas quando estavam nos últimos dias de suas vidas e queriam que suas histórias fossem contadas. E, mesmo sendo tão idosas, as histórias que me contaram eram frescas, pois elas as estavam contando pela primeira vez. Algumas nunca as haviam partilhado, outras sim, mas não em detalhes. Foi muito comovente para elas, houve muitas lágrimas nas entrevistas.
Havia essa incrível sobrevivente polonesa que vivia em Londres, perto de onde moro. Maria Bielicka já tinha 90 anos, recentemente recebera um diagnóstico de câncer no pâncreas e só tinha seis meses para viver. Ela sugeriu que eu a visitasse com a maior frequência possível, pois tinha muito a dizer. Ela queria colocar tudo para fora antes de morrer.
Ravensbrück era o único campo de concentração feminino. No entanto, a história dele não é tão conhecida como as de Dachau, Bergen-Belsen ou Buchenwald, para não falar de Auschwitz. Por que acha que é assim?
Eu ainda não sei inteiramente a resposta. Em parte, é porque ele era no leste [território da República Democrática Alemã, sob regime comunista de 1949 a 1990]. Então, para os historiadores ocidentais era impossível chegar à RDA e aos documentos na Rússia. Na Alemanha Oriental, contava-se muito – como se fazia com os campos masculinos – as histórias do heroísmo comunista e da luta antifascista. Muitos outros elementos ficaram ocultos.
Outra razão é que nos anos 60 e 70, quando a história do Holocausto começou a emergir em seu horror total e inacreditável, levou algum tempo para que se retomasse o equilíbrio e se desse conta de que, embora o Holocausto judaico permaneça sendo o maior crime que a humanidade já viu, isso não era motivo para obscurecer outros aspectos do horror nazista.
Mas há definitivamente uma outra razão: os historiadores do mainstream hoje são, em grande parte, homens. E eles não estavam interessados na natureza desse campo feminino. Fazendo isso, desconsideraram uma grande parte dos crimes nazistas: os crimes contra as mulheres.
Em que sentido Ravensbrück diferia dos outros campos de concentração, onde eram mantidos homens e mulheres?
Heinrich Himmler, o responsável por todos os campos, acreditava, por exemplo, que as mulheres tinham muito mais medo de cães do que os homens. Então, em vez de torres de vigilância e armas, eles usavam um monte de cães. Também havia guardas femininas, subordinadas, claro, aos oficiais da SS [Schutzstaffel, uma unidade paramilitar nazista], mas ainda assim quem lidava diretamente com as prisioneiras eram essas mulheres. Isso pode surpreender: por que a SS se importaria com as questões de privacidade feminina e com a necessidade delas de receberem tratamento especial por outras mulheres?
Acho que em parte tem que ver com a aparência para o mundo externo: assim lembrava mais uma prisão normal do que um campo de concentração. Mas à medida que o campo se desenvolveu e ficou superlotado, a SS sentiu que precisava garantir a disciplina. O nível de crueldade cresceu rapidamente, as punições começaram a aumentar. Ele também virou um campo de extermínio, com câmara de gás.
As internas de Ravensbrück eram muito diversas. Entre elas havia comunistas, testemunhas de Jeová, prostitutas, combatentes da resistência e judias de toda a Europa. Sendo todas mulheres, a "atmosfera" era, de algum modo, diferente daquela nos acampamentos para homens?
As mulheres sofriam de maneiras diferentes. Não com tortura física, mas pelo que acontecia com seus filhos quando eram tirados delas ou levados para a câmara de gás. À medida que o campo se desenvolveu e foram chegando mais e mais mulheres, muitas estavam grávidas e eram forçadas a se submeter a abortos, à esterilização em massa, sob as circunstâncias mais cruéis. Elas foram usadas como cobaias, sentiam-se totalmente violadas.
No último ano do campo – quando a SS não conseguia controlar a natalidade infantil por haver tantas mulheres chegando de várias partes da Europa –, eles permitiram que as crianças nascessem, até mesmo que as mães os amamentassem, sabendo que esses bebês iriam morrer. Elas não tinham leite nos seios. Eu, como mulher, não consigo imaginar tortura ou crueldade maior. Qualquer percepção histórica de que, de algum modo, Ravensbrück fosse menos cruel, menos mau, é um engano total.
No livro você descreve tanto as prisioneiras quanto as guardas. Há algo que todas as guardas de Ravensbrück tivessem em comum?
Pode-se dizer que muitas delas eram alemãs comuns, que haviam aceitado o trabalho por nenhuma outra razão além de que era um emprego e que poderia de alguma maneira aumentar a renda delas. Elas pensavam que ganhariam um uniforme arrumado, um salário um pouco melhor e alguma segurança na vida. Elas não tinham instrução de alto nível, mas também não eram sem formação.
Nenhuma tinha qualquer registro criminal que levasse a crer que se comportaria de modo especialmente chocante. E logo uma grande parte delas mostrou que estava dispostas a apoiar o regime, a espancar as prisioneiras ou fazer coisa ainda pior. Algumas exibiram tendências bem sádicas. A exceção eram as que mostravam sinais de inconformidade. Algumas deixaram o emprego, outras tentaram ajudar as detidas e levar mensagens para fora.
Johanna Langefeld, a primeira chefe da guarda de Ravensbrück, é um caso muito interessante. Ela vinha do sistema presidiário e tinha o cargo mais poderoso entre as mulheres da SS. Ela acreditava em punição coletiva, mas colocava um limite nos espancamentos. Quando se deu conta das crueldades piores, como os experimentos médicos, ela se opôs ao comandante. Então, havia guardas que resistiram até certo ponto, mas elas certamente eram uma minoria.
Se Johanna Langefeld era extraordinária entre as guardas, há uma história entre as prisioneiras que tenha comovido você especialmente?
Uma que me comoveu de verdade foi a de Evgenia Klemm, uma professora de Odessa, de mais idade, que se viu capturada durante a queda da Crimeia junto com estagiárias, médicas e enfermeiras muito jovens. Muitas não contavam mais do que 20 anos de idade e não tinham a menor ideia do que estava acontecendo com elas. Mas Klemm estivera na Primeira Guerra Mundial como enfermeira; na verdade, era professora de história. E ela disse às outras que sobreviveriam, as manteve juntas continuamente e conseguiu tirar a maioria do campo.
Quando ela retornou à Rússia, Stalin puniu muitos membros da Cruz Vermelha que haviam estado presos na Alemanha por achar que eles deveriam ter lutado até a morte. Nessa atmosfera, ela perdeu o emprego como professora de história, e em 1953 se enforcou. Isso é uma tragédia humana numa escala enorme, e uma das histórias mais impressionantes em que esbarrei.
Como se poderá manter a memória viva no futuro, quando todas as sobreviventes tiverem morrido?
Minha intenção principal foi dar a elas uma voz. Ravensbrück, onde mulheres foram torturadas e exterminadas, deveria ganhar o lugar que merece em todos os relatos das atrocidades nazistas, o papel que desempenhou na história. E acho que a segunda, terceira e quarta geração tanto dos sobreviventes como dos alemães ainda estão por descobrir onde seus avós e outros parentes estavam. É importante que essas histórias continuem sendo contadas.