Acostumada a glorificar seus "gênios tirânicos", indústria cinematográfica dá sinais de mudança após recente mea culpa do produtor Scott Rudin e do diretor Joss Whedon – ambos acusados de abusos.
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No início de abril, a revista The Hollywood Reporter revelou acusações de abuso no local de trabalho contra Scott Rudin. O poderoso produtor de cinema e teatro teria quebrado um monitor de computador na mão de um assistente e demitido um funcionário por esse ter diabetes tipo 1. Agora, surgem as consequências destas revelações.
No fim de semana, Rudin, o "superprodutor" por trás de filmes como A Rede Social e Lady Bird: A Hora de Voar, bem como sucessos da Broadway como O Sol é para Todos e O Livro de Mórmon, anunciou que "deixaria de participar ativamente" de suas produções teatrais.
Em uma declaração ao jornal The Washington Post, Rudin se desculpou pela "dor que meu comportamento causou a indivíduos, direta e indiretamente".
O pedido de desculpas de Rudin foi, no máximo, reticente. Claramente, ele não se desculpou por seu comportamento, apenas pela dor que causou, e teve o cuidado de não mencionar seus vários projetos cinematográficos (que incluem o novo filme de Jennifer Lawrence, Red White and Water e The Tragedy of Macbeth, com Denzel Washington e Frances McDormand).
Mas só o fato de um produtor do porte de Rudin se desculpar por qualquer coisa mostra o quanto Hollywood está mudando.
Segunda onda do #MeToo
Scott Rudin é um dos maiores nomes do showbiz. Ele alcançou o "status EGOT", tendo ganhado o conjunto completo dos prêmios Emmy, Grammy, Oscar e Tony – um feito conquistado por uma elite de apenas 16 pessoas até o momento.
Seus filmes foram indicados a 151 Oscars e ganharam 23, incluindo melhor filme por Onde os Fracos Não Têm Vez em 2007. Entre os produtores de Hollywood, Rudin pertence a uma classe própria. Desde 2017, quando seu contemporâneo igualmente bem-sucedido Harvey Weinstein foi derrubado por acusações de assédio sexual e agressão, ele ocupa o topo do setor praticamente sozinho.
As acusações contra Rudin são de outro teor, mas, em muitos aspectos, o produtor – apelidado de "Boss-zilla!" (mistura da palavra "chefe" em inglês com "Godzilla") em um perfil do Wall Street Journal de 2005 – é o impulsor da segunda onda do #Metoo.
Depois que os atores Ray Fisher e Gal Gadot acusaram o diretor Joss Whedon (Liga da Justiça) de bullying no set e outros abusos, a HBO retirou qualquer menção a ele da campanha de promoção para The Nevers, um seriado de fantasia de alto orçamento criado, escrito e co-dirigido por Whedon.
Também foram demitidos três produtores do The Ellen DeGeneres Show, um programa de entrevistas diurno que é sucesso de audiência, após vários funcionários apresentarem queixas de maus-tratos. DeGeneres, a apresentadora, pediu desculpas no ar.
Em outro caso, a atriz e ativista Gabrielle Union, jurada do America's Got Talent, aceitou um acordo proposto pela emissora NBC após entrar com uma queixa trabalhista que falava em uma cultura tóxica de trabalho. As alegações incluíam o juiz Simon Cowell fumando cigarros no set de filmagens e um convidado – o comediante Jay Leno – fazendo uma piada racista.
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Uma longa tradição de homenagear chefes valentões
O que é surpreendente e bem-vindo nisso tudo é como que tais desdobramentos vão contra uma longa tradição de glorificação do "gênio tirânico" pela indústria cinematográfica que remonta aos anos da fundação de Hollywood na década de 1920.
Entre seus notórios chefes de estúdio, estavam, por exemplo, "o monstro da MGM" Louis B. Mayer e o cofundador da Columbia Pictures, Harry Cohn – um homem que mantinha uma foto autografada de Benito Mussolini em sua mesa e que, de acordo com um documentário da BBC de 2017, fez com que mafiosos ameaçassem o ator negro Sammy Davis Jr. para forçá-lo a terminar seu relacionamento com a atriz branca Kim Novak, estrela de Um Corpo que Cai.
Na cultura do showbiz, bullying e abuso sempre foram associados ao sucesso. Mayer, por exemplo, conforme retratado em Mank – filme de David Fincher recentemente indicado ao Oscar –, é rude e abusivo com seus funcionários, mas consegue o que quer. Em sátiras de Hollywood como O Preço da Ambição (1994) e Trovão Tropical (2008), os magnatas da indústria do entretenimento são praticamente psicopatas desequilibrados. Tal comportamento audacioso nem sempre recebe a aprovação do público, mas frequentemente deixa, no mínimo, uma forte impressão.
Combatendo a desumanização de Hollywood
Assim como no caso de Weinstein, os abusos de Rudin no local de trabalho eram um segredo aberto em Hollywood, mas, anteriormente, foram minimizados ou classificados como uma evidência de sua "paixão". Em um perfil de 2010, o The Hollywood Reporter apelidou Rubin de "o homem mais temido da cidade". Era para ser um elogio.
Esse tipo de "elogio" agora é coisa do passado. Encorajado pelo sucesso de #MeToo, outro movimento vem ganhando força em Hollywood, tornando o abuso de qualquer tipo no local de trabalho algo inaceitável.
"Todo mundo merece um local de trabalho seguro", disse em comunicado no sábado o sindicato de artistas de teatro Actors 'Equity, pedindo também a Rudin que liberasse seus funcionários de acordos de sigilo para permitir que outras pessoas afetadas apresentassem suas queixas.
Talvez quem melhor tenha formulado a questão seja a atriz ganhadora do Tony Karen Olivo. Após as revelações dos abusos contra Rubin, Olivio disse que não iria mais participar de Moulin Rouge, musical da Broadway produzido por ele. "A justiça social é mais importante do que brilhar", escreveu Olivo em seu Instagram.
"Construir uma indústria melhor para meus alunos é mais importante do que colocar dinheiro no bolso [...]. O silêncio sobre Scott Rudin? Inaceitável. Inaceitável. Isso é o mais fácil, pessoal. Ele é um monstro. Isso deveria estar fora de discussão. Aqueles de vocês que dizem que têm medo, vocês têm medo de quê?", questionou a atriz.
O racismo e os filmes hollywoodianos
O drama "Green Book" foi premiado com o Oscar de melhor filme de 2019. O tema da segregação racial já foi abordado por Hollywood diversas vezes no passado.
Foto: picture alliance/AP/Universal/P. Perret
Melhor filme de 2019
A história contada pelo diretor Peter Farrelly é baseada em fatos reais. Viggo Mortensen (esq.) faz o papel de um chofer de um pianista negro que viaja pelos estados do sul dos EUA, orientando-se pelo "Green Book: o Guia". A particularidade: o livro informa motoristas sobre restaurantes e hotéis que são exclusivamente para pessoas negras – um sinal claro de segregação racial.
Foto: picture alliance/AP/Universal/P. Perret
"Infiltrado na Klan"
Em 2019, o Oscar do melhor roteiro adaptado foi para um filme que também aborda a segregação racial. "Infiltrado na Klan", do diretor Spike Lee, remonta igualmente a uma história verídica. Nos anos 1970, um policial negro consegue se infiltrar na Ku Klux Klan. Desde a década de 1980, o cineasta afro-americano vem abordando o tema do racismo nos EUA.
Foto: D. Lee/F. Features
"Pantera Negra"
Um terceiro filme que aborda – no sentido mais amplo – o tema do racismo também arrebatou três Oscar este ano. "Pantera Negra", adaptação de HQ dos estúdios Marvel, apresentou pela primeira vez um super-herói negro. Os autores de quadrinhos Stan Lee e Jack Kirby criaram os personagens na década de 1960, no auge do movimento pelos direitos civis.
Foto: picture-alliance/Marvel Studios
Homens brancos julgam…
Em 1957, o filme "Doze homens e uma sentença" foi uma das primeiras obras do cinema americano a tratar do racismo. Como thriller judicial em primeira linha, a estreia cinematográfica do diretor Sidney Lumet também abordava os preconceitos dos doze jurados brancos, responsáveis pelo veredicto contra um jovem porto-riquenho no tribunal.
Foto: picture-alliance/United Archives
"No calor da noite"
Dez anos depois, foi Sidney Poitier quem abriu mais portas em Hollywood. No drama "No calor da noite", Poitier interpreta um policial do norte que tem de resolver um caso no sul dos EUA e se depara com um racismo abismal. O filme foi premiado com cinco Oscars – e coroou Poitier como primeiro superastro afro-americano do cinema do país.
Foto: picture-alliance/United Archiv/TBM
"Mississippi em chamas"
Rodado nos EUA pelo diretor britânico Alan Parker, em 1988, "Mississippi em chamas" aborda assassinatos de negros e investigações do FBI. Um crítico escreveu: "A direção sensacionalista de Parker (faz) praticamente tudo para transformar 'Mississippi em chamas' num pastiche de filme de gângster. Mesmo assim, a película rompe um tabu: põe a culpa em toda uma camada burguesa de americanos brancos."
Foto: ORION PICTURES CORPORATION
"Conduzindo Miss Daisy"
Um ano depois, o australiano Bruce Beresford trouxe às telas a história sentimental produzida em Hollywood "Conduzindo Miss Daisy". Da mesma forma que "Green Book: o Guia", este filme também foi um exemplo de como se pode lidar com o tema no cinema: de forma conciliatória e sentimental. Ele conseguiu levar quatro Oscars.
Foto: picture-alliance/Mary Evans Picture Library/Majestic Films
"Gran Torino"
Em 2008, o diretor e estrela de Hollywood Clint Eastwood surpreendeu seus fãs com o drama "Gran Torino". Nele, Eastwood interpreta um americano racista, que nutre preconceitos principalmente contra a população de origem asiática nos EUA. No decorrer do filme, o personagem interpretado por Eastwood se transforma por meio de vivências pessoais para melhor.
Foto: Imago//Unimedia Images
Mais Clint Eastwood
Um ano depois, Eastwood abordava novamente, de outra forma, o tema do racismo. No drama biográfico esportivo "Invictus", ele conta a história da seleção sul-africana de rúgbi. "Conquistando o inimigo" foi o título do livro original. Eastwood lançou um olhar sobre a África do Sul na era pós-apartheid. Morgan Freeman fez o papel de Nelson Mandela.
Foto: AP
"O mordomo da Casa Branca"
Este filme também se encaixa na tradição de filmes americanos sobre o racismo com o ímpeto esclarecedor: "O mordomo da Casa Branca" (2013), com Forest Whitaker e Oprah Winfrey nos papéis principais. Ele conta a história baseada em fatos verídicos autênticos do mordomo afro-americano Eugene Allen, que trabalhou para oito presidentes dos EUA. A película também reflete a recente história americana.
Foto: picture alliance/AP Images
"Doze anos de escravidão"
Lançado nos cinemas em 2013 e premiado com o Oscar de melhor filme um ano depois, "Doze anos de escravidão" faz um retrospecto dos primórdios da escravatura nos EUA. O filme do artista britânico Steve McQueen, que também faz sucesso como diretor de longas-metragens, encenou o drama sobre racismo com atores famosos – e convenceu a Academia de Hollywood.
Um ano depois, a diretora americana Ava DuVernay também mergulhou na história. Em "Selma", ela abordou as marchas de ativistas dos direitos dos negros e da população em geral da cidade de Selma para Montgomery, no estado do Alabama. No filme, David Oyelowo interpreta Martin Luther King, Tom Wilkinson (foto) aparece como o insensível presidente Lyndon B. Johnson.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Nishijima
"Loving: uma história de amor"
Três anos atrás, o diretor americano Jeff Nichols surpreendeu o público com o sensível drama "Loving: uma história de amor", no qual também se resgata um capítulo da história do racismo nos EUA. O filme destaca a luta de um casal que se rebela contra a lei dos casamentos mistos proibidos – conseguindo êxito em tribunal.
Foto: picture-alliance/ZUMAPRESS.com/Focus Features
"Corra"
Certamente uma das contribuições mais originais sobre o tema do racismo no cinema foi o filme "Corra" em 2017. Ao contrário de tantas produções hollywoodianas bem-intencionadas, mas muitas vezes piegas, o diretor afro-americano Jordan Peele fez um filme de gênero no qual o racismo é apresentado com elementos de terror e comédia – o resultado é uma mescla de gêneros muito original e convincente.
No mesmo ano, o diretor Barry Jenkins conquistou o Oscar de melhor filme com "Moonlight: sob a luz do luar". Em três capítulos, Jenkins conta a história de um homossexual afro-americano. Esteticamente convincente, o filme é um exemplo de obra cinematográfica formalmente interessante e que implementa seu tema embasada e diferenciadamente, dispensando melodrama e sentimentalismo.
Foto: picture alliance/AP Photo/D. Bornfriend
"Eu não sou seu negro"
Além dos muitos filmes com os quais o cinema americano tem contribuído para o assunto nas últimas décadas, houve documentários esporádicos. Em "Eu não sou seu negro" (2016), o diretor haitiano Raoul Peck baseou de forma muito convincente seu olhar retrospectivo sobre o racismo nos EUA, especialmente em textos do escritor afro-americano James Baldwin.