Como estudar manuscritos carbonizados, soterrados pelo vulcão Vesúvio, sem desenrolá-los? Desafio científico global envolve tomografia e aprendizado de máquina. Texto decifrado filosofa sobre prazeres da vida.
Anúncio
Três jovens cientistas venceram o grande prêmio do Vesuvius Challenge por decifrar trechos de um "papiro de Herculano" até então considerado ilegível. Ele é um dos mais de 1.800 rolos manuscritos que ficaram enterrados e cobertos de entulho vulcânico cerca de 2 mil anos atrás, quando o vulcão do Monte Vesúvio, na Itália, entrou em erupção.
Vulcões italianos vistos do espaço
01:43
Antes integrando à biblioteca de uma vila romana da antiga cidade de Herculano, eles foram encontrados em 1752 por um fazendeiro local. Desde então, houve diversas tentativas de decifrá-los, mas a maioria delas destruiu os documentos, depois de tanto tempo enrolados sob a terra, semicarbonizados e frágeis.
Agora, Youssef Nader, Luke Farritor e Julian Schilliger venceram esse desafio, ao revelar quatro passagens sem desenrolar os manuscritos. Para isso, empregaram tomografia computadorizada (TC) e aprendizado de máquina (em inglês, machine learning, ML), um subconjunto da categoria mais ampla de inteligência artificial (IA).
Os trechos em questão são em grego. O objetivo era decifrar quatro passagens, cada uma com no mínimo 140 caracteres, com pelo menos 85% de caracteres "recuperáveis" – ou legíveis. Acredita-se tratar-se de textos desconhecidos de Filodemo (110 a.C. a 35 a.C.), o "filósofo em residência" da vila.
Condizente com a doutrina do epicurismo, ele discorre sobre os prazeres da beleza, da música e da comida. Fica ainda faltando cerca de 95% do papiro para ser lido. Pesquisadores creem que essa e futuras descobertas de Herculano proporcionarão insights inéditos no mundo clássico.
Como ler um manuscrito enrolado?
O Vesuvius Challenge foi lançado em março de 2023. No fim do mesmo ano, os organizadores da competição fizeram imagens dos papiros no acelerador de partículas Diamond Light Source, nas cercanias de Oxford, Inglaterra, resultando em scans de TC de alta resolução.
Os segredos de Nápoles e região
05:03
This browser does not support the video element.
Para "desenrolar" digitalmente as imagens, elas foram transformadas num volume tridimensional de "voxels" – pixels 3D semelhantes aos blocos de construção usados no videogame Minecraft. Em seguida procedeu-se à segmentação: traçando as camadas amassadas do papiro, foi possível aplainar as imagens.
O terceiro passo do processo foi identificar as regiões de tinta nos segmentos aplainados do papiro. O modelo de aprendizado de máquina empregado não estava treinado para detectar letras gregas, nem para reconhecimento ótico de caracteres (OCR, na abreviatura em inglês) ou qualquer modelo de linguagem. Em vez disso, ele simplesmente detectou manchas de tinta na tomografia e as combinou, revelando as letras.
Anúncio
Vesuvius Challenge, a força da ciência coletiva
Nadery, Farritor e Schillinger contribuíram de forma independente para decifrar o texto grego, e por seus esforços dividirão um prêmio de 700 mil dólares. Um dos organizadores do Vesuvius Challenge, Brent Seales, da Universidade de Kentucky, vinha há décadas trabalhando nos papiros de Herculano.
Raios X: muito além da medicina
04:50
This browser does not support the video element.
Ele foi o primeiro a empregar a tecnologia de TC, mas constatou ser difícil detectar a tinta, devido a sua densidade semelhante à do papiro. No entanto, os progressos se aceleraram quando Seales, o empreendedor do Silicon Valley Nat Friedman e o engenheiro Daniel Gross lançaram a competição, em março de 2023.
Dentro de poucos meses, o ex-físico Casey Handmer notou uma textura craquelada no texto, que denominou "crackle". Farritor, do atual trio de vencedores, estudante universitário e estagiário da fabricante de espaçonaves SpaceX, usou essa observação para treinar um modelo de aprendizado de máquina, decifrando a primeira palavra grega completa: ΠΟΡΦΥΡΑϹ (porphyras), que significa "púrpura".
Em outubro, o egípcio Nader, doutorando em Berlim, conseguiu ler algumas colunas de texto. O estudante de robótica suíço Schilliger, que já ganhara três prêmios de fragmentação, possibilitou o mapeamento 3D dos rolos.
Situada na região de Campânia, nas proximidades de Nápoles, Herculano foi devastada no ano 79 pela mesma erupção do Vesúvio que destruiu a vizinha Pompeia. Agora, o próximo Vesuvius Challenge é ler uma obra ou papiro inteiro até o fim de 2024.
Como era a vida em Pompeia
Fascínio pela cidade aos pés do Vesúvio e destruída há dois mil anos continua. Em Paris, em 2020, uma exposição em 3D permitiu conhecê-la bem de perto.
Foto: Colourbox
Viagem à Antiguidade
Um passeio pelas ruas de Pompeia, uma das cidades mais bonitas do Império Romano, é como uma viagem no tempo para a vida no ano 79 d.C.. O clima ameno permite às videiras crescerem nas encostas férteis do Vesúvio. De muitas casas, pode-se até ver o mar.
Foto: GEDEON Programmes
Vida no luxo
Com mais de 60 hectares, Pompeia é uma cidade grande. Oito portões e 11 torres de vigia garantem a segurança de seus cidadãos. Os romanos ricos atribuíam grande importância ao luxo: um teatro e banhos termais ofereciam variedade de lazer, os atletas tinham uma grande instalação esportiva sob plátanos e uma piscina os ajudava a se refrescar. O templo de Júpiter ficava no fórum, a praça central.
Foto: picture-alliance/Jens Köhler
Mansão restaurada
As magníficas mansões dos cidadãos mais ricos tinham pátios internos cercados por colunas, mosaicos com ornamentos no chão e lindos murais. Assim podia ser uma morada típica de dois mil anos atrás.
Foto: Beaux-Arts de Paris, Dist. Rmn-Grand Palais/image Beaux-arts de Paris
Casa dos Mistérios
Uma das principais atrações de Pompeia, esta é uma das mansões mais bem preservadas da Antiguidade. Aparentemente, a casa também servia como local de culto a Dionísio, o deus grego do vinho e do êxtase. À medida que os festivais em homenagem a Dionísio (chamado de Baco pelos romanos) eram cada vez mais marcados por excessos, o Senado os proibiu em 186 a.C..
Foto: picture-alliance
Tendas de comida e fontes
Mas nem todos os moradores de Pompeia eram ricos ou celebravam orgias. Muitos viviam modestamente e trabalhavam como agricultores, padeiros ou moleiros. Eles compravam alimentos em barracas públicas de comida, uma espécie de lanchonete da Antiguidade, e buscavam água das fontes nas ruas. As mulheres pediam apoio a Diana (foto), considerada a deusa da fertilidade e do parto.
Comércio próspero
Navios vindos da Grécia, Espanha, norte da África e Oriente Médio chegavam ao porto perto da cidade com papiro, especiarias, frutas secas e cerâmica. Os comerciantes trocavam essas mercadorias por produtos locais, como grãos, vinho e o tão procurado molho de peixe fermentado garum, um dos ingredientes básicos da cozinha da Roma Antiga. Esses jarros sobreviveram incólumes por milhares de anos.
Foto: picture-alliance/Jens Köhler
Quando a terra tremeu
Os habitantes de Pompeia desconheciam os perigos do vulcão até a terra tremer em 20 de agosto de 79 d.C., acompanhada por um profundo estrondo vindo das profundezas. Encanamentos quebraram, e paredes racharam. As pessoas pediram a ajuda aos deuses em frente ao Lararium, um santuário de culto como este, e começaram a arrumar os estragos.
Foto: GEDEON Programmes
A reconstrução
Aquele não foi o primeiro grande terremoto a abalar a região. Já em 62 d.C., muitos prédios haviam desabado. Os moradores os reconstruíram – mais esplendidamente do que antes. Isso também é evidenciado por essa ruína de uma área de banho. Ninguém sabia, 17 anos depois, que uma catástrofe terrível estaria prestes a acabar com a cidade e matar muitos de seus moradores.
Foto: Colourbox
Morte na fuga
A terra tremeu por vários dias, até o Vesúvio começar a cuspir cinzas e pedras no amanhecer de 24 de agosto. Muitas pessoas morreram soterradas por escombros ou sufocadas pelas cinzas. As que sobreviveram foram vitimadas pelo devastador fluxo de lava que se seguiu. Séculos depois, as cavidades deixadas pelos cadáveres nas rochas foram preenchidas com gesso. O pânico ainda é perceptível.
Foto: picture-alliance/C. Dixon
Narrações de Plínio e Tácito
Graças a Plínio sabe-se tanto sobre os últimos dias de Pompeia. A pedido do historiador Tácito, o sobrinho de um morador de Pompeia descreveu o que seu tio moribundo lhe contou. Durante muito tempo, acreditou-se que a erupção do Vesúvio teria sido em agosto, mas alguns historiadores acham ser provável uma data no outono europeu.
Foto: GEDEON Programmes
Séculos no esquecimento
Cerca de 2 mil dos aproximadamente 20 mil habitantes foram encontrados. Os cientistas acreditam que muitas pessoas conseguiram fugir a tempo. Esquecida por séculos, Pompeia foi descoberta acidentalmente em 1594 por trabalhadores, que encontraram antigas passagens subterrâneas com inscrições e bustos. A primeira escavação arqueológica ocorreu apenas 200 anos depois, sob o rei Carlos de Bourbon.
Foto: Parco Archeologico di Pompei, Archivio fotografico
Sensação arqueológica
Mas só em 1860 foi iniciada a escavação sistemática de Pompeia. Uma camada de cinzas de quase sete metros de espessura havia caído sobre a cidade. Até hoje, Pompeia não está totalmente exposta. Na perspectiva de hoje, a catástrofe é uma dádiva divina para os arqueólogos, porque a erupção vulcânica preservou a vida cotidiana romana como um instantâneo para a posteridade.