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"Imprensa e ensino sofrerão ataque permanente sob Bolsonaro"

14 de novembro de 2018

Pesquisador que monitora meios digitais afirma que estratégia de ataque usada durante a campanha do presidente eleito será mantida em seu governo, com foco nos chamados valores tradicionais da família.

Jair Bolsonaro
"Campanha contra imprensa, contra as artes e contra universidades foi um dos eixos que elegeu Bolsonaro", diz pesquisadorFoto: picture-alliance/dpa/L. Correa

Uma guerra cultural tomou conta do cenário político. Tudo o que é visto como ameaça aos valores tradicionais da família – liberdade de imprensa, artes e ciência produzida nas universidades – será atacado pelo governo do presidente eleito Jair Bolsonaro, afirma Pablo Ortellado, pesquisador na área de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP).

Ortellado coordenada o projeto Monitor do Debate Político no Meio Digital, que monitora até 5 mil notícias políticas publicadas diariamente nos meios digitais. Para ele, o setor conservador entende que perdeu uma batalha sobre os valores morais da sociedade.

"Por isso, lançou uma campanha muito pesada contra a imprensa, contra os meios de comunicação na dimensão de entretenimento, contra as artes, contra as escolas e universidades. Essa campanha está em pleno curso e é um dos eixos que elegeu Bolsonaro", afirma.

Para Ortellado, a divulgação de notícias falsas faz parte da estratégia de manter a indignação e o medo de adversários entre eleitores de Bolsonaro.

DW: As mídias digitais tiveram um papel de muito destaque nas últimas eleições presidenciais, com grande volume de notícias falsas compartilhadas rapidamente entre eleitores, sem uma preocupação aparente com a veracidade das informações. A participação do brasileiro na discussão política mudou com os meios digitais?

Pablo Ortellado: Às vezes parece que notícias falsas são uma campanha de desinformação, para divulgar mentiras contra políticos. Isso até existe mesmo, não vou negar, e é relevante. Mas não é a essência do fenômeno.
O que estamos vendo é a produção de notícias para se ajustarem a narrativas políticas. Por exemplo, no caso do presidente eleito, ele difundiu uma narrativa de que o Brasil foi tomado por uma quadrilha que está aí desde a redemocratização, que está se alternado no poder fingindo que é diferente quando, na verdade, é igual e se perpetua no poder numa espécie de rodízio sistêmico.

Essa leitura provoca uma indignação no eleitor. Mas só que essa indignação precisa ser alimentada diariamente. E o que esse ecossistema, esse conjunto de sites e páginas e agora emissores de notícias falsas pelo Whatsapp fazem é adequar os fatos do dia à essa narrativa. Eles fazem isso usando fatos noticiosos.

Isso é bem diferente. A gente não está falando de jornalismo engajado de outros tempos em que a gente tinha o dono de um jornal fazendo jornalismo para atacar os adversários. Até porque, nesse fenômeno, as pessoas não fazem apuração jornalística: elas pegam os fatos apurados por outros, normalmente pela grande imprensa, e fazem uma determinada leitura. E às vezes quando essa leitura é muito forte, ela desrespeita os fatos. E eventualmente se inventam fatos para se adequar à narrativa.
E esse fenômeno é necessário porque mantém esse sentimento muito forte de indignação, de medo do adversário, de raiva. Esse sentimento precisa ser alimentado todos os dias.

Como vocês acompanham esse fenômeno no Monitor do Debate Político no Meio Digital?

No monitor, a gente coleta de 3 mil a 5 mil notícias políticas por dia. Esse número dá uma ideia da dimensão do fenômeno. Uma parte disso corresponde à imprensa tradicional, e outra é referente às páginas criadas.

O projeto foi importante para mostrar a particularidade dessa eleição. Um dos candidatos, [o presidente eleito] Jair Bolsonaro, fez uma campanha quase exclusivamente pelas redes digitais. Parecia uma campanha muito centrada no antipetismo e em defesa da segurança pública. No entanto, o entendimento é um pouco diferente quando a gente avalia o conteúdo todo. E não me refiro apenas aos conteúdos oficiais, mas ao conjunto, já que Bolsonaro conseguiu uma grande rede de sites de apoio que estavam ligados ao Facebook e que faziam o compartilhamento desses conteúdos. Durante a campanha, nós identificamos 115 páginas grandes que eram responsáveis por manter ativo o campo da campanha, isso também aconteceu nos grupos de Whatsapp.

A estratégia dessa campanha não era o antipetismo, mas a crítica a partidos políticos em geral. Praticamente na mesma proporção, houve críticas ao PSDB e ao MDB, como se PT e esses partidos fossem uma coisa só, fossem os partidos políticos que "cuidam" do Brasil e cujo principal vício é a corrupção.

O outro eixo da campanha girava praticamente todo em torno da crítica aos movimentos identitários, sobretudo o feminismo e o movimento LGBT, como ameaças à família. Praticamente toda a campanha foi orientada nesses dois eixos.

Tinha coisa de segurança pública, mas era muito inferior aos dois eixos. A campanha que elegeu o presidente foi muito centrada nas guerras culturais – usando uma expressão dos sociólogos americanos –, com quase nada de política econômica e social.

Diante desse cenário, qual deve ser o papel da grande imprensa, da chamada mídia tradicional?

O papel mais fundamental. Esse jogo está empatado, está disputado, não está completamente perdido. E acho que esse campo de batalha não deve ser abandonado porque a apuração jornalística é o que dá lastro a esse jogo.

No fundo, o que a gente está vendo são interpretações sobre o mundo. Nesse cenário conturbado, polarizado, o papel da imprensa é trazer fatos e obrigar as narrativas a se adequarem aos fatos, e não os fatos a se adequarem às narrativas. É por isso que a apuração jornalística está no coração do problema contemporâneo. Isso obriga o debate político a se referir a fatos apurados. Esse é o principal desafio: forçar esse debate político a se referir a fatos.

Faz parte da natureza do debate politico haver divergência sobre a interpretação dos fatos. O que está acontecendo agora é que as narrativas passam a ser mais importantes que os fatos, elas estão desprezando os fatos. Estão forçando a mão, estão se "autonomizando" em relação aos fatos. E é por isso que os dois lados da polarização atacam os meios de comunicação, pois os fatos atrapalham a construção das narrativas.
A função do jornalismo deve ser essa, de seguir no processo sobretudo da reportagem e da apuração para criar esses "empecilhos" às narrativas.

Ações policiais dentro de universidades durante a campanha lançaram um alerta. Houve ainda relatos de professores sobre um clima de perseguição e censura. O que deve acontecer daqui para a frente, na avaliação do senhor?

Isso está relacionado ao que a gente tem visto nos meios de comunicação. O setor conservador entende que perdeu uma batalha sobre os valores morais da sociedade. 

Eles dizem que essas instituições que reproduzem valores na sociedade foram tomadas de valores "pervertidos", equivocados, que atacam os valores tradicionais da família. 

Por isso, eles [o setor conservador] lançaram uma campanha muito pesada contra a imprensa, contra os meios de comunicação na dimensão de entretenimento, contra as artes, contra as escolas e universidades. É uma espécie de aliança de todos os setores conservadores que tradicionalmente se odeiam, das igrejas católica, evangélica, judaica, adversários entre si. Eles se uniram numa campanha contra a mudança nos valores da sociedade. Essa campanha está em pleno curso e é um dos eixos que elegeu Bolsonaro.

Cabe às instituições, todas elas, às artes, às universidades, aos museus, preservar a autonomia intelectual e artística diante desse ataque, que será permanente. Não tenho a menor dúvida. Essa foi a plataforma sobre a qual esse governo foi eleito. No caso da universidade, veremos a perseguição de valores científicos, de valores educacionais. Existe um esforço de subordinar isso a uma concepção tradicional de valores. Isso vai acontecer também com as artes. Serão tempos muito difíceis. O poder político vai tentar interferir. Vamos ver se o Supremo Tribunal Federal (STF) vai conseguir impor limites à ação do governo sobre essas instituições, que têm uma lógica própria e dependem dessa autonomia para funcionar de forma adequada.

A maneira observada de fazer campanha e ganhar as eleições vai moldar a maneira como o governo Bolsonaro presta conta aos brasileiros em geral?

Certamente. Já estamos vendo. Essa estratégia já começou. A primeira declaração do presidente eleito não foi pelos jornais, mas uma live no Facebook. Veremos isso sistematicamente. A estratégia é estabelecer um canal de comunicação direto, contornando a esfera de adversários.
Veremos ataque a universidades, escolas, imprensa e liberdade de imprensa, artistas, campanhas de boicote. Tudo vai acontecer com apoio do poder político.

Além disso, acho que o que vai caracterizar esse governo são as politicas econômicas e sociais sobre as quais não se falou nessas eleições, e para as quais ele recebeu uma espécie de cheque em branco. Como essas políticas não foram discutidas na campanha, elas são muito genéricas. E não foram respaldadas pelo voto, porque não estavam presentes na campanha.

A campanha só falou sobre político corrupto de um lado, e defesa da família de outro. Como a a campanha não envolveu as questões substantivas propriamente de politica econômica, Bolsonaro pode fazer mais ou menos o que quiser. São esperadas surpresas e reviravoltas no caminho justamente porque ele não está preso a um programa.

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