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Indígenas

19 de março de 2010

Quando a luta pela emancipação teve início, há 200 anos, grande parte da população latino-americana ficou fora do processo. Os habitantes originários do subcontinente têm algo a comemorar?

Jovem índia caiapó da região da AmazôniaFoto: picture-alliance / dpa

O filósofo mexicano José Vasconcelos Calderón chamava o povo latino-americano de "raça cósmica", por ele ter em suas veias o sangue de nativos ameríndios, escravos africanos e colonizadores europeus. Em 1992, essa "raça cósmica" se recusou a comemorar os 500 anos do "descobrimento da América", preferindo celebrar o "encontro de dois mundos".

Não é difícil imaginar as razões que as comunidades indígenas do subcontinente têm para se negarem a festejar o bicentenário das independências latino-americanas como se o acontecimento lhes tivesse representado de fato uma vitória.

Para Norbert Rehrmann, professor da Universidade Técnica de Dresden, esse descontentamento tem justificativa: "A independência da Venezuela trouxe dissabor a todos que não faziam parte da elite crioula, ou seja, índios, escravos e mestiços. Eles não foram convidados a participar da fase independentista, nem se supunha que tirassem proveito dela."

O professor e autor alemão Norbert RehrmannFoto: Norbert Rehrmann

Depois da independência

"A situação dos indígenas não melhorou depois das declarações de independência. Na era republicana, suas comunidades sofreram com as regulamentações de posse de terras, a exploração da mão-de-obra e a cobrança de impostos especiais", explica Juliana Ströbele-Gregor, pesquisadora do Instituto Latino-americano da Universidade Livre de Berlim.

"Depois da independência, intensificou-se a escravidão por endividamento. No Equador, entrou em vigência o sistema do huasipungaje; no Peru, o yanaconaje; na Bolívia, o pungaje ou colonato", lembra Olaf Kaltmeier, da cátedra de História Ibérica e Latino-americana da Universidade de Bielefeld e especialista no estudo da etnicidade no marco das mudanças históricas e dos movimentos sociais na América Latina.

Dos tributos às exportações

O "tributo índio", imposto cobrado exclusivamente dos habitantes originários do subcontinente, foi extinto após a ruptura das colônias com a Coroa espanhola. Os novos Estados, porém, restauraram a cobrança até meados do século 19, por perceberem era uma das maiores fontes de renda para os cofres nacionais. Além da volta do "tributo índio", os governos também permitiram um crescimento considerável da expropriação das terras das comunidades indígenas.

"Quando a industrialização e o enfrentamento entre as burguesias agrária e comerciante tiveram início, novas superfícies foram urbanizadas, acarretando o confisco das terras dos índios", conta Kaltmeier. Segundo o especialista, só se falou de respeitar os direitos civis dos índios mais tarde. "Muito mais tarde", enfatiza Ströbele-Gregor. "Os povos do Amazonas, chamados de 'selvagens', estiveram sob a tutela dos Estados até o início do século 20, observa.

Índio Davi Kopenawa YanomamiFoto: picture-alliance/dpa

As raízes do movimento indígena

"Durante a Colônia, sempre houve revoltas indígenas", conta Kaltmeier. "A última das que se deram nos Andes foi liderada em 1781 por Túpac Amaru e Túpac Katari. Eles transformaram a região que hoje faz parte do Peru e da Bolívia em território rebelde, mas a rebelião não seguia uma tradição de resistência nem originou um movimento. O movimento indígena surgiu apenas no século 20, alimentado em quase toda a América Latina pelas correntes marxistas e socialistas da época."

O pesquisador da Universidade de Bielefeld enfatiza: "A revolução boliviana de 1952 é um evento importante, mas, nesse caso, a causa indígena foi ocultada pela agenda dos agricultores. Somente nas décadas de 1960 e 1970 que surgiu de fato uma espécie de consciência étnica na região." Para Kaltmeier, os simpósios realizados na ilha de Barbados em 1971 e 1977 confirmam essa tese.

Saindo do isolamento

Ambos os encontros em Barbados se propunham a denunciar publicamente os sistemas coloniais em que as populações aborígenes continuavam vivendo nos Estados latino-americanos. "Barbados 1 reuniu sobretudo cientistas sociais, enquanto Barbados 2 contou com a presença de várias organizações indígenas, apoiadas por colaboradores bem-intencionados que iam desde etnólogos e antropólogos até organizações não governamentais e representantes de um catolicismo progressista", conta Ströbele-Gregor.

As declarações feitas nessas ocasiões serviram de estrutura para um discurso indigenista e deram impulso a um movimento que, até então, havia sido proposto como meta da reforma agrária. Assim que o paradigma da luta pela terra se esgotou, a chamada consciência de classe se tornou cada vez menos atraente para os indígenas.

"Isso acabou sendo expresso nos encontros de Barbados, onde o debate sobre problemas e oportunidades adquiriu uma perspectiva étnica e cultural, com ênfase nas suas normas, valores e visões cósmicas", explica Kaltmeier.

Movimento em câmera lenta

Ströbele-Gregor acrescenta: "Nos anos 1980, além de tratar do tema da propriedade de terras, passou a falar-se da necessidade do reconhecimento da população indígena, do seu direito a uma educação bilíngue e intercultural e da garantia de acesso aos serviços públicos de assistência à saúde. Na segunda metade dos anos 1990, tanto no Equador quanto na Bolívia, a meta passou a ser a convocação de assembleias constituintes com a participação de comunidades indígenas."

Indígena bolivianoFoto: AP

Hoje, tanto Olaf Kaltmeier quanto Juliana Ströbele-Gregor evitam generalizações ao falar dos "novos governos de esquerda". Ambos insistem que as relações dos países latino-americanos com suas respectivas comunidades indígenas devem ser analisadas de maneira diferenciada e independente das ideologias políticas dos seus presidentes.

Segundo os pesquisadores, as reivindicações na Bolívia parecem ser levadas mais a sério; já no Peru e no Chile o confronto com o Estado é mais acirrado; e na Venezuela, o reconhecimento formal dos direitos indígenas precisa ser respaldado com ações.

Muito por fazer

Em outras palavras, a verdadeira emancipação dos povos indígenas latino-americanos ainda está por vir. "Quando analisamos o que o Exército Zapatista de Libertação Nacional exige no México desde 1994, nos damos conta de quanto a América Latina ainda precisa mudar em suas estruturas políticas, econômicas e sociais com relação às comunidades originárias da região", finaliza Ströbele-Gregor.

Autor: Evan Romero-Castillo (eh)

Revisão: Roselaine Wandscheer