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"Operação de fake news pode reforçar ações contra Bolsonaro"

29 de maio de 2020

À DW, especialista diz que provas colhidas na operação podem ser usadas em ações que pedem a cassação da chapa presidencial no TSE. Ao ameaçar não obedecer ao STF, Bolsonaro anuncia crime de responsabilidade, afirma.

O presidente Jair Bolsonaro (à dir.) segura um exemplar da Constituição ao lado de seu vice, Hamilton Mourão
Há atualmente seis processos tramitando no TSE que pedem a cassação da chapa eleita em 2018Foto: Getty Images/AFP/E. Sa

A operação da Polícia Federal (PF) realizada na quarta-feira (27/05) contra pessoas próximas ao presidente Jair Bolsonaro, em busca de provas sobre um sistema de produção e disseminação de notícias falsas e ataques a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), pode ir além da punição de quem financiou e operou o esquema, e fornecer elementos para ações na Justiça Eleitoral que pedem a cassação da chapa presidencial eleita em 2018.

A afirmação é do pesquisador Diego Werneck Arguelhes, do Insper, especialista em separação de poderes e direito constitucional. Ele lembra a ação julgada em junho de 2017 pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que pedia a cassação da chapa de Dilma Rousseff e Michel Temer por abuso de poder político e econômico na campanha eleitoral. Esse processo foi iniciado em dezembro de 2014, mas incorporou provas produzidas ao longo da Operação Lava Jato em 2016 e 2017. No dia do julgamento, Dilma havia sido afastada do cargo há menos de um mês, Temer era o presidente em exercício, e os ministros da Corte eleitoral votaram contra a cassação da chapa por 4 votos a 3.

Há atualmente seis processos tramitando no TSE que pedem a cassação da chapa eleita em 2018, composta por Bolsonaro e seu vice, general Hamilton Mourão. Uma dessas ações diz respeito justamente ao disparo de notícias falsas durante a campanha eleitoral.

O inquérito que deu origem à operação da PF desta semana foi instaurado em março de 2019 pelo presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, que designou Alexandre de Moraes para presidir as investigações. É incomum no direito brasileiro que um juiz tome a iniciativa de instaurar um inquérito – em regra, é o Ministério Público que pede a abertura da investigação. Toffoli se baseou em um artigo antigo do regimento da Corte que busca proteger os ministros contra crimes ocorridos nas dependências do tribunal.

Bolsonaro se aproveitou da origem inusitada da investigação e da operação deflagrada pela PF para atacar o Supremo. Na quinta-feira (28/05), disse que não iria mais admitir "atitudes de certas pessoas individuais", em referência implícita ao ministro Alexandre de Moraes, sinalizando que considera desobedecer a futuras decisões da Corte. "Acabou, porra!", afirmou.

Para Arguelhes, o inquérito é válido pois outras tentativas de investigar a disseminação de notícias falsas contra os ministros do Supremo não se concretizaram. Ele também lembra que, após a abertura da investigação, o então advogado-geral da União, André Mendonça, hoje ministro da Justiça, reconheceu a sua legalidade. "A existência do inquérito já é um problema, mas, em si, ela não é tão grave quanto o problema de fundo de que o inquérito trata", afirma.

DW Brasil: O presidente do STF está certo ao abrir um inquérito para investigar possíveis crimes contra membros do tribunal e escolher um ministro para presidir a investigação e determinar ações contra investigados?

Diego Werneck Arguelhes: Há um artigo no regimento do Supremo que diz que, se um crime for praticado nas dependências do tribunal, o próprio presidente do tribunal pode instaurar o inquérito e indicar um ministro para presidir a investigação. O argumento do Supremo agora é que esse dispositivo também se aplicaria a crimes praticados no âmbito virtual, contra os ministros. É um enorme salto interpretativo.

É um artigo antigo, que nunca tinha sido exposto a esse tipo de contexto e interpretação. A Constituição é refratária a que o juiz se aproxime demais do papel de acusador. É o Ministério Público que hoje centraliza essa atuação. É preocupante colocar poder demais na mão das mesmas pessoas, que seriam ao mesmo tempo vítimas, condutores do inquérito e depois juízes de um caso que os afeta diretamente.

Mas é importante enfatizar o contexto em que esse dispositivo está sendo utilizado. Primeiro, de acordo com o que saiu na imprensa, os ministros do Supremo avisaram antes a Polícia Federal, o Ministério Público e o Ministério da Justiça sobre a produção sistemática de conteúdo de desinformação e intimidação contra eles. E essas instituições, que deveriam ter tomado a dianteira da proteção dos ministros, até para preservar o distanciamento deles em relação ao caso, não agiram.

Segundo, embora a controvérsia sobre esse inquérito não seja nova, o governo não vinha sendo, até aqui, parte dessa contestação. O então advogado-geral da União [André Mendonça, hoje ministro da Justiça] se pronunciou sobre o inquérito, reconhecendo sua legalidade. Essa tentativa do governo de agora tentar pintar o inquérito como ilegítimo, portanto, reflete uma mudança abrupta de posição. Tem a ver com as medidas adotadas na quarta-feira e com as pessoas que foram afetadas.

Na sua opinião, o inquérito então se justifica tendo em vista o seu contexto?

Há várias críticas legítimas ao inquérito, que não pode ser normalizado. Por outro lado, temos um problema grave no Brasil com desinformação e ataques a instituições. Se outras tentativas para investigar esse fato ocorreram, sem que houvesse tido resposta das autoridades, temos um problema. A existência do inquérito já é um problema, mas, em si, ela não é tão grave quanto o problema de fundo de que o inquérito trata.

Os ataques verbais a ministros do Supremo e a distribuição de notícias falsas não seriam protegidos pela liberdade de expressão?

Qual é o limite entre um meme raivoso, ou um texto com um leitura política enviesada, e um meme ou um texto com a mesma narrativa, mas incitando ódio e violência concreta contra os ministros? Em tese, parece fácil traçar essa linha. Você pode expressar ideias e críticas, mas não pode incitar manifestações concretas de violência e atribuir a alguém condutas que não aconteceram. Há no Código Penal vários crimes que restringem a liberdade de expressão nesses e em outros sentidos. No caso concreto, fica mais difícil.

Sempre temos que ter um pé atrás em restringir essa liberdade. Mas, a partir do momento em que há uma proximidade de ataque físico, com manifestantes armados, a disseminação de notícias falsas pode ser um gatilho para comportamentos violentos.

No caso de atores políticos, há problemas adicionais. Se o próprio presidente repassa e chancela desinformação sobre integrantes de outras instituições, aí entramos na esfera do crime de responsabilidade. Por exemplo, ao repassar certos conteúdos, o presidente pode estar incitando animosidade entre a população e as instituições, ou entre instituições civis e militares.

Há também o problema do financiamento dessas redes de conteúdos falso. Esse inquérito não tem por objetivo encontrar pessoas aleatórias que encaminharam memes raivosos com informações falsas ou incitando violência contra ministros do Supremo. O objetivo é verificar se há uma máquina, ligada ao mundo empresarial e a agentes estatais, que mantém esse conteúdo circulando. Por isso, as buscas e apreensões de quarta-feira incluem atores políticos e empresários.

Bolsonaro e aliados têm dado sinais de que podem não acatar ordens do Supremo. Na última sexta [22/05], o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, afirmou em nota que uma eventual apreensão do celular do presidente seria "inconcebível". Na quarta, Bolsonaro disse que não iria mais tolerar "atitudes de certas pessoas individuais", em referência à decisão do ministro Alexandre de Moraes. E cogitou recomendar ao ministro da Educação, Abraham Weintraub, que não comparecesse a um depoimento para o qual foi intimido a prestar esclarecimentos sobre uma fala na qual disse que gostaria de botar "esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF".

Qual a consequência de o presidente ou um ministro não vir a atender uma ordem do Supremo?

Seria um crime de responsabilidade. Se um presidente sinaliza que não vai cumprir uma decisão, ele não está fazendo uma crítica ao Supremo. Está anunciando um crime de responsabilidade.

Há uma série de mecanismos para atores políticos lidarem com decisões judiciais desfavoráveis. O presidente indica os ministros do Supremo, com aprovação do Senado. Um presidente que ganhe eleições suficientes pode reorientar o alinhamento da Corte. Isso faz parte do jogo. O presidente também pode apresentar uma emenda constitucional para alterar a Constituição, novamente com aprovação do Congresso, se achar que o Supremo está interpretando-a de uma forma da qual ele discorda. Mas esses dois mecanismos envolvem coisas com que Bolsonaro tem clara dificuldade de lidar: conversar com o Congresso e respeitar procedimentos. As duas coisas tomam tempo, e não se resolvem com tuítes ou canetadas.

Há ainda uma ideia delirante que aparece nesse debate: recorrer às Forças Armadas para resolver um conflito entre as instituições, supostamente com base no artigo 142 da Constituição. Isso não existe. As instituições devem resolver seus conflitos pelos procedimentos judiciais e legislativos previstos na própria Constituição.

Os ataques de Bolsonaro e seu grupo político ao Supremo vêm desde a campanha de 2018. Estaria o presidente buscando uma oportunidade para de fato desrespeitar e tentar reduzir o poder da Corte?

Isso parece estar na cabeça de várias pessoas do campo bolsonarista. É inevitável que haja cidadãos frustrados, num contexto de medo e incerteza, que comecem a ecoar soluções radicais. Mas é inaceitável que atores estatais eleitos, que devem seus mandatos às regras democráticas, alimentem ilusões desse tipo.

Descumprir uma decisão do Supremo é inaceitável. Como tantos outros pontos no governo Bolsonaro, a gente nunca sabe o que é real e o que é bravata. Mas isso não quer dizer que a bravata em si não seja perigosa, especialmente porque há uma parcela da população que ainda apoia o presidente e, apesar de tudo, ainda confia nele.

O ministro Alexandre de Moraes incluiu o período das eleições de 2018 no inquérito sobre as fake news. Isso pode ter efeitos em ações que tramitam no TSE que pedem a cassação da chapa de Bolsonaro?

Sim, as provas podem ser aproveitadas. Se surgirem nesse inquérito provas que dizem respeito ao que está sendo julgado no TSE, isso é possível. Isso já aconteceu no julgamento da chapa de Dilma e Temer, que acabou em 2017. O TSE, por 4 votos a 3, julgou improcedente o pedido, mas o voto do ministro Herman Benjamin se aproveitou bastante de informações e provas produzidas em processos judiciais da Lava Jato, depois que a ação tinha sido proposta. Mas as provas têm que ser relacionadas ao período que interessa ao TSE, que é a campanha eleitoral. E esses procedimentos são lentos. No exemplo da chapa de Dilma e Temer, mesmo com aproveitamento de provas, o julgamento ocorreu mais de dois anos depois de a ação ter sido proposta.

Nesta quinta-feira, Bolsonaro reclamou de a operação da PF ter sido autorizada por um ministro apenas do Supremo. O ministro Marco Aurélio propôs, neste ano, uma reforma no regimento para que decisões da Corte que envolvam outros poderes sejam tomadas apenas pelo plenário, e não de forma solitária por um ou outro ministro. Qual sua opinião sobre essa proposta?

É uma proposta boa. O ministro Marco Aurélio foi responsável por muitas decisões individuais profundamente problemáticas desde os anos 1990, mas a sugestão é positiva. No Brasil, todo mundo se habituou a achar que sempre tem uma chance de vencer no Supremo, dependendo de qual ministro for sorteado para ser o relator. A crítica a esse poder individual já vem de anos, e é estrutural. Bolsonaro se apropriou dessa crítica agora, mas claramente sua preocupação é com a conjuntura. Vale lembrar que foi uma decisão individual do ministro Dias Toffoli que suspendeu, em 2019, as investigações contra o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente.

 

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