Interesses divergentes dificultam êxito de califado de radicais sunitas
2 de julho de 2014Medidas drásticas marcam o início docalifado recém-proclamado pelos extremistas do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) na Síria e no Iraque. As mulheres devem se cobrir com véus dos pés à cabeça. Aos restaurantes é vedado servir bebidas alcoólicas ou permitir que os clientes fumem cigarros em suas dependências; tampouco podem tocar música ou exibir os jogos da Copa do Mundo nas televisões. Quem desobedecer está sujeito a severas punições corporais.
Muitas pessoas terão que se adaptar à vida sob uma versão mais rígida da lei tradicional islâmica, a sharia. Segundo o porta-voz do EIIL, Abu Mohammed al-Adnani, o califado se estenderá da região de Aleppo, no norte da Síria, até Diyala, no leste do Iraque.
O próprio nome da organização deixa claro que sua pretensão é nada menos do que unir todo o mundo islâmico: a partir de agora, ela passa a se chamar apenas Estado Islâmico, tendo como "califa" o líder do EIIL, Abu Bakr al-Bagdadi. Segundo o porta-voz Al-Adnani, o novo califado seria o "sonho de todo muçulmano" e o "desejo de todo jihadista".
Eliminação das fronteiras impostas
De fato, a visão de um califado atrai fortemente muitos muçulmanos da região, confirma o cientista político Stephan Rosiny, do Instituto de Estudos Globais e Regionais (Giga), de Hamburgo. O caráter religioso que o EIIL se outorga torna o movimento interessante para muitos. "Em resumo, a promessa dos radicais islamistas é que o Islã é a solução para tudo."
E, como os problemas da região são muitos, essa atratividade ultrapassa, em muito, as promessas religiosas abstratas. De início, o grupo apoiou os esforços dos sunitas iraquianos para retomar seu espaço no Estado e na sociedade iraquiana. Após a queda do sunita Saddam Hussein, e principalmente desde a posse do xiita Nuri al-Maliki como primeiro-ministro, os sunitas se sentem política e socialmente marginalizados.
Esse sentimento resultou em revoltas no noroeste do país, das quais o EIIL se aproveitou em interesse próprio. Após se instalar em Mossul e outras cidades, o grupo terrorista sunita anunciou planos ainda mais ambiciosos: ele almeja anular as fronteiras que remontam ao Acordo Sykes-Picot.
Firmado entre o Reino Unido e a França em 1916, o acordo resultou no estabelecimento das fronteiras arbitrárias da região, desmembrando os territórios dos árabes e muçulmanos entre diversos Estados. "A promessa de superar esses limites já havia sido feita no século 20 pelos nacionalistas pan-arábicos e, posteriormente, pelos muçulmanos moderados", lembra Rosiny. "Nenhum dos dois grupos a cumpriu. Agora, os radicais islâmicos querem colocá-la em prática."
Porém justamente essa pretensão pode acabar pondo em risco o sucesso do EIIL. Pois o que une essa coalizão de combatentes tribais, partidários de Saddam, fundamentalistas sunitas e jihadistas radicais é a perspectiva de pôr fim ao governo de Al-Maliki – nem todos os grupos que se aliaram ao EIIL simpatizam com a ideia de um califado transnacional.
"Dificilmente o EIIL conseguirá estabelecer ou manter seu califado em territórios maiores, já que suas concepções do Islã diferem muito das de outros sunitas nos territórios recém-conquistados", afirma o cientista político do Giga.
A questão principal, contudo, é como tal califado poderia existir. Nem seu governo nem as fronteiras abolidas unilateralmente são legitimados, sendo improvável, portanto, o seu reconhecimento internacional. Também em termos econômicos e políticos, o futuro do califado seria extremamente difícil: isolado em nível internacional, ele estaria inteiramente entregue à própria sorte.
Longe de ser unanimidade
Por essas razões, o atual passo do EIIL está longe de contar com a concordância de todos os seus aliados. Mesmo alguns grupos jihadistas nada têm a ganhar com a abolição das atuais fronteiras iraquianas. O Ansar al-Sunna, por exemplo, é a favor do estabelecimento de um califado no Iraque, porém restrito às fronteiras atuais. Outros grupos, como a Irmandade Muçulmana iraquiana, almejam uma província independente de Bagdá em termos militares, jurídicos e econômicos, mas sem romper inteiramente com o governo central.
Organizações como o Exército Islâmico no Iraque, por sua vez, se empenham pela manutenção da identidade religiosa e cultural dos sunitas dentro das fronteiras iraquianas. Já os ex-membros do partido Baath só se aliaram ao EIIL com vista a uma eventual retomada do poder. Sendo nacionalistas iraquianos, eles não têm qualquer interesse no califado.
A oposição ao regime de Maliki é o denominador comum da atual aliança. Para vários de seus membros, os êxitos alcançados nos últimos meses podem até já ser demasiados. O EIIL terá que ir em busca de novos aliados, mas sem a menor certeza de encontrá-los. Mesmo assim, muitos iraquianos temem que o grupo seja suficientemente forte para impor, sozinho, seus planos de califado, pelo menos por certo tempo.