Irã e Israel: como a cooperação se transformou em rivalidade
Rodion Ebbighausen
Publicado 9 de agosto de 2024Última atualização 2 de outubro de 2024
Aliados próximos até a Revolução Islâmica de 1979, Tel Aviv e Teerã hoje são inimigos irreconciliáveis. A que se deve essa guinada?
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A guerra na Faixa de Gaza já se arrasta há quase um ano. Desde então, todos os dias a pergunta é, não apenas quanto tempo ela vai durar, mas também se e até onde vai se espalhar. E nessa altura, o palco dos combates nem é mais somente Gaza. Há meses ocorrem ataques com foguetes e drones também entre Israel e Líbano, Síria, Iraque e Iêmen.
O risco de um transbordamento ou intensificação da guerra aumentou significativamente. Em 31 de julho,o líder do Hamas no exílio, Ismail Haniyeh, foi vítima de um ataque a bomba direcionado em Teerã. Pouco antes, o alto comandante do Hezbollah, Fuad Shukr, foi morto num ataque aéreo em Beirute. O Hezbollah, assim como o Hamas, são classificados por diversos países como organizações terroristas.
Na semana passada, um ataque aéreo israelense no Líbano matou o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah. Poucos dias antes, uma série de explosões a pagers e walkie-talkies usados pelos membros do grupo para se comunicar mataram dezenas de integrantes da milícia.
Os ataques e assassinatos de aliados de alto escalão colocaram o regime iraniano sob pressão, principalmente por haver uma história compartilhada repleta de conflitos. Nesta terça-feira, Teerã disparou centenas de mísseis contra Israel, em retaliação às mortes de Haniyeh, Nasrallah e de um general iraniano.
De aliados a inimigos
Irã e Israel são inimigos há décadas. Teerã nega o direito de Israel de existir e ameaça o "regime sionista" com a aniquilação. Israel, por sua vez, considera o Irã como seu arqui-inimigo. Mas nem sempre foi assim.
Ambos eram aliados próximos até a Revolução Islâmica de 1979 no Irã. Este foi, inclusive, um dos primeiros a reconhecerem o Estado de Israel em 1948. Tel Aviv considerava o Irã um aliado perante os Estados árabes, no conflito do Oriente Médio. Para Teerã, Israel, apoiado por Washington, também era um oportuno contrapeso político aos países árabes vizinhos.
Israel treinou especialistas agrícolas iranianos, forneceu conhecimentos técnicos e ajudou a formar e treinar as Forças Armadas do país islâmico. O governante do Irã na época, o xá Mohammad Reza Pahlavi, retribuiu com petróleo, urgentemente necessário à economia emergente de Israel.
O Irã abrigava a segunda maior comunidade judaica fora de Israel. Embora após a Revolução Islâmica um grande número de judeus tenha deixado o país, mais de 20 mil ainda vivem no Irã.
Revolução Islâmica: um ponto de virada
Após a vitória da Revolução Islâmica no Irã, em 1979, e a tomada do poder pela ala religiosa dos revolucionários sob o comando do aiatolá Ruhollah Khomeini, Teerã cancelou todos os tratados com Israel. Por várias vezes, o aiatolá Khomeini criticou duramente Israel por sua ocupação dos territórios palestinos.
Gradativamente os iranianos desenvolveram uma retórica severa contra Israel, com o objetivo de ganhar o apoio dos Estados árabes ou, pelo menos, a simpatia das respectivas populações. Dessa forma o regime iraniano pretendia aumentar sua influência.
Em 1982, quando Israel interveio na guerra civil libanesa e invadiu o sul do país, Khomeini enviou a Guarda Revolucionária Iraniana a Beirute para apoiar as milícias xiitas de lá. Até hoje, a milícia do Hezbollah, que surgiu naquela época, é considerada o longo braço de Teerã no Líbano.
Aprofundamento do conflito
O atual líder religioso do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, que tem a palavra final em todos os assuntos, deu continuidade a essa política. Ele e toda a liderança da República Islâmica do Irã também questionam repetidamente a realidade histórica do assassinato sistemático dos judeus europeus sob o nazismo e tentam relativizar ou mesmo negar o Holocausto.
Para fortalecer sua própria posição contra Israel e a Arábia Saudita, o Irã não apenas apoiou o Hezbollah no Líbano e o Hamas em Gaza, mas também interveio na guerra da Síria do lado do presidente Bashar Al-Assad, e continua a apoiar a milícia houthi no Iêmen e o Movimento de Resistência Islâmica no Iraque. Um dos principais arquitetos dessa guerra paralela foi o general da Guarda Revolucionária Qasem Soleimani, morto por um ataque de drone dos EUA no início de 2020.
Israel tampouco se esforçou muito para reduzir as tensões com o Irã. Em diversos discursos, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu comparou a República Islâmica à Alemanha nazista, por ameaçar diretamente a existência de seu país. Ele descreveu o acordo nuclear de 2015, negociado pelas potências de veto da ONU, além da Alemanha e o Irã como um "erro de proporções históricas".
Netanyahu prometeu impedir "com todos os meios" a construção de uma bomba nuclear iraniana. Israel tem realizado repetidos atos de sabotagem contra o programa nuclear iraniano. Em 2020, o chefe desse programa, Mohsen Fakhrizadeh, foi morto. O jornal britânico The Guardian e o americano The New York Times afirmaram que todas as evidências apontavam para um assassinato direcionado pelo serviço secreto israelense. Israel não negou nem confirmou a autoria.
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Narrativa de inimizade é controversa
O conflito entre os governos nem sempre é percebido em todas as camadas da população ou da sociedade civil. "O Irã precisa rever sua relação com Israel, porque ela está defasada", disse numa entrevista, no fim de 2021, Faezeh Hashemi Rafsanjani. filha do ex-presidente iraniano Ali Akbar Hashemi Rafsanjani e ex-membra do Parlamento iraniano.
O proeminente cientista político Sadegh Zibakalam, crítico do governo, também tem repetidamente criticado a política do Irã em relação a Israel: "Essa postura isolou o país no cenário internacional", enfatizou em entrevista em 2022.
Do outro lado, também sempre há vozes que se solidarizam com o povo iraniano. Um exemplo foi o movimento Israel Loves Iran, que partiu das redes sociais para as manchetes em 2012. Em 2023, após a morte da jovem Mahsa Jina Amini, uma campanha semelhante apoiou os iranianos que saíram às ruas contra o regime. Atualmente ativistas tentam ressuscitar a campanha através da hashtag #IsraelisLoveIranians.
Na esfera política, no entanto, as frentes se endureceram mais do que nunca, sobretudo desde o ataque a Israel pelo Hamas, em 7 outubro de 2023, e a subsequente "guerra de retaliação" declarada por Israel, como descreveu o primeiro-ministro Netanyahu. De acordo com a ONU, houve mais de 120 mil mortos e feridos na guerra de Gaza até junho de 2024, a maioria mulheres e crianças.
Os disparos de foguetes do Hezbollah e os bombardeios israelenses no sul do Líbano já forçaram dezenas de milhares de habitantes da região de fronteira israelo-libanesa a deixarem suas casas.
Há, portanto, uma grande preocupação com uma eventual propagação da guerra para outros países da região. Estados Unidos, União Europeia e Alemanha pedem, por isso, moderação a todas as partes envolvidas.
A longa história do processo de paz no Oriente Médio
Por mais de meio século, disputas entre israelenses e palestinos envolvendo terras, refugiados e locais sagrados permanecem sem solução. Veja um breve histórico sobre o conflito.
Foto: PATRICK BAZ/AFP/Getty Images
1967: Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU
A Resolução 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, aprovada em 22 de novembro de 1967, sugeria a troca de terras pela paz. Desde então, muitas das tentativas de estabelecer a paz na região referiram-se a ela. A determinação foi escrita de acordo com o Capítulo 6 da Carta da ONU, segundo o qual as resoluções são apenas recomendações e não ordens.
Foto: Getty Images/Keystone
1978: Acordos de Camp David
Em 1973, uma coalizão de Estados árabes liderada pelo Egito e pela Síria lutou contra Israel no Yom Kippur ou Guerra de Outubro. O conflito levou a negociações de paz secretas que renderam dois acordos 12 dias depois. Esta foto de 1979 mostra o então presidente egípcio Anwar Sadat, seu homólogo americano Jimmy Carter e o premiê israelense Menachem Begin após assinarem os acordos em Washington.
Foto: picture-alliance/AP Photo/B. Daugherty
1991: Conferência de Madri
Os EUA e a ex-União Soviética organizaram uma conferência na capital espanhola. As discussões envolveram Israel, Jordânia, Líbano, Síria e os palestinos – mas não da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) –, que se reuniam com negociadores israelenses pela primeira vez. Embora a conferência tenha alcançado pouco, ela criou a estrutura para negociações futuras mais produtivas.
Foto: picture-alliance/dpa/J. Hollander
1993: Primeiro Acordo de Oslo
Negociações na Noruega entre Israel e a OLP, o primeiro encontro direto entre as duas partes, resultaram no Acordo de Oslo. Assinado nos EUA em setembro de 1993, ele exigia que as tropas israelenses se retirassem da Cisjordânia e da Faixa de Gaza e que uma autoridade palestina autônoma e interina fosse estabelecida por um período de transição de cinco anos. Um segundo acordo foi firmado em 1995.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Sachs
2000: Cúpula de Camp David
Com o objetivo de discutir fronteiras, segurança, assentamentos, refugiados e Jerusalém, o então presidente dos EUA, Bill Clinton, convidou o premiê israelense Ehud Barak e o presidente da OLP Yasser Arafat para a base militar americana em julho de 2000. No entanto, o fracasso em chegar a um consenso em Camp David foi seguido por um novo levante palestino, a Segunda Intifada.
Foto: picture-alliance/AP Photo/R. Edmonds
2002: Iniciativa de Paz Árabe
Após Camp David, seguiram-se encontros em Washington e depois no Cairo e Taba, no Egito – todos sem resultados. Mais tarde, em março de 2002, a Liga Árabe propôs a Iniciativa de Paz Árabe, convocando Israel a se retirar para as fronteiras anteriores a 1967 para que um Estado palestino fosse estabelecido na Cisjordânia e em Gaza. Em troca, os países árabes concordariam em reconhecer Israel.
Foto: Getty Images/C. Kealy
2003: Mapa da Paz
Com o objetivo de desenvolver um roteiro para a paz, EUA, UE, Rússia e ONU trabalharam juntos como o Quarteto do Oriente Médio. O então primeiro-ministro palestino Mahmoud Abbas aceitou o texto, mas seu homólogo israelense Ariel Sharon teve mais reservas. O cronograma previa um acordo final sobre uma solução de dois estados a ser alcançada em 2005. Infelizmente, ele nunca foi implementado.
Foto: Getty Iamges/AFP/J. Aruri
2007: Conferência de Annapolis
Em 2007, o então presidente dos EUA George W. Bush organizou uma conferência em Annapolis, Maryland, para relançar o processo de paz. O premiê israelense Ehud Olmert e o presidente da ANP Mahmoud Abbas participaram de conversas com autoridades do Quarteto e de outros Estados árabes. Ficou acordado que novas negociações seriam realizadas para se chegar a um acordo de paz até o final de 2008.
Foto: picture-alliance/dpa/S. Thew
2010: Washington
Em 2010, o enviado dos EUA para o Oriente Médio, George Mitchell, convenceu o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, a implementar uma moratória de 10 meses para assentamentos em territórios disputados. Mais tarde, Netanyahu e Abbas concordaram em relançar as negociações diretas para resolver todas as questões. Iniciadas em setembro de 2010, as negociações chegaram a um impasse dentro de semanas.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Milner
Ciclo de violência e cessar-fogo
Uma nova rodada de violência estourou dentro e ao redor de Gaza no final de 2012. Um cessar-fogo foi alcançado entre Israel e os que dominavam a Faixa de Gaza, mas quebrado em junho de 2014, quando o sequestro e assassinato de três adolescentes em mais violência. O conflito terminou com um novo cessar-fogo em 26 de agosto de 2014.
Foto: picture-alliance/dpa
2017: Conferência de Paris
A fim de discutir o conflito entre israelenses e palestinos, enviados de mais de 70 países se reuniram em Paris. Netanyahu, porém, viu as negociações como uma armadilha contra seu país. Tampouco representantes israelenses ou palestinos compareceram à cúpula. "Uma solução de dois Estados é a única possível", disse o ministro francês das Relações Exteriores Jean-Marc Ayrault, na abertura do evento.
Foto: Reuters/T. Samson
2017: Deterioração das relações
Apesar de começar otimista, o ano de 2017 trouxe ainda mais estagnação no processo de paz. No verão do hemisfério norte, um ataque contra a polícia israelense no Monte do Templo, um local sagrado para judeus e muçulmanos, gerou confrontos mortais. Em seguida, o plano do então presidente dos EUA, Donald Trump, de transferir a embaixada americana para Jerusalém minou ainda mais os esforços de paz.
Foto: Reuters/A. Awad
2020: Tiro de Trump sai pela culatra
Trump apresentou um plano de paz que paralisava a construção de assentamentos israelenses, mas mantinha o controle de Israel sobre a maioria do que já havia construído ilegalmente. O plano dobrava o território controlado pelos palestinos, mas exigia a aceitação dos assentamentos construídos anteriormente na Cisjordânia como território israelense. Os palestinos rejeitaram a proposta.
Foto: Reuters/M. Salem
2021: Conflito eclode novamente
Planos de despejar quatro famílias palestinas e dar suas casas em Jerusalém Oriental a colonos judeus levaram a uma escalada da violência em maio de 2021. O Hamas disparou foguetes contra Israel, enquanto ataques aéreos militares israelenses destruíram prédios na Faixa de Gaza. A comunidade internacional pediu o fim da violência e que ambos os lados voltem à mesa de negociações.
Foto: Mahmud Hams/AFP
2023: Terrorismo do Hamas e retaliações de Israel
No início da manhã de 7 de outubro, terroristas do grupo radical islâmico Hamas romperam barreiras em alguns pontos da Faixa de Gaza, na fronteira com Israel, e, em território israelense, feriram e mataram centenas de pessoas, além de sequestrarem mais de uma centena. Devido a isso, Israel declarou "estado de guerra" e iniciou uma série de bombardeios, deixando partes da Cidade de Gaza em ruínas.