Isabel Allende: "Imigrante integrado é tesouro para o país"
12 de agosto de 2019O cotidiano de Isabel Allende transcorre rápido e sem descanso, num ano cheio de fortes experiências pessoais e profissionais: a morte de seus pais, o lançamento e a promoção de seu romance Largo pétalo de mar (Longa pétala de mar) e seu casamento há duas semanas.
A escritora chilena com mais de 74 milhões de exemplares vendidos e traduzidos para mais de 42 idiomas está reorganizando sua vida, diz em entrevista à DW. Uma vida que, como a trama de seu último livro, é marcada pela migração.
"Eu vivi deslocada", conta Allende sobre sua infância itinerante, adolescência como filha de diplomata e a partida para o exílio na Venezuela, após o golpe militar no Chile, até finalmente se estabelecer nos Estados Unidos. Por outro lado, "não há problema em ser deslocada quando se é escritora, porque isso obriga a ver o mundo com mais atenção, a escutar mais".
A autora conhecia desde criança a história do Winnipeg, o navio fretado pelo poeta Pablo Neruda em 1939 com mais de 2 mil republicanos espanhóis, emigrados após a Guerra Civil Espanhola, com destino ao Chile. No país se conhecia essa façanha e a contribuição dos refugiados, e sua família tinha amigos imigrados no cargueiro.
"Eu não tinha em mente escrever sobre o Winnipeg, mas comecei a sentir no ar o tema das migrações e dos refugiados, que sempre existiram, mas que agora chegam aos portões da Europa e se tornam notícia. Também nos Estados Unidos, o que se agravou muito com Trump", observa a autora.
"Sem querer, as coisas que escuto me afetam, e sempre acabam no papel. Escrevi três livros sobre deslocados", explica, referindo-se também a O amante japonês e Muito além do inverno.
A autora lamenta a atitude de "governos populistas que inflam o ódio e o medo". Nos Estados Unidos, país formado por imigrantes, houve raças e grupos discriminados em diferentes épocas, como é o caso dos hispânicos, "mas quando essa pessoa é integrada, geralmente contribui muito, e é um tesouro para o país".
A história do Winnipeg confirma isso, apesar da oposição da Igreja Católica e dos conservadores, temerosos dos refugiados comunistas, anarquistas, liberais e ateus. "Os refugiados foram muito bem-recebidos e se tornaram quase imediatamente parte do país. Sua contribuição foi extraordinária."
Vários receberam o Prêmio Nacional por sua contribuição para a arte e a história. Nos EUA, a escritora foi condecorada com a Medalha Presidencial da Liberdade em 2014, a maior honraria que o país outorga a um civil.
"Às vezes acontece de me deparar com uma história na qual não preciso inventar nada, nem tenho que buscar inspiração. Está tudo lá, é uma questão de pesquisar", revela a escritora.
Assim ocorreu com Largo pétalo de mar. No exílio na Venezuela, décadas após a jornada do Winnipeg, Isabel Allende conheceu Victor Pey, em quem se baseia um protagonista do romance. Pey, um dos refugiados do navio, era engenheiro, jornalista, e amigo pessoal de Neruda e do presidente Salvador Allende.
"Ele era da geração dos meus pais, um homem muito reservado, quase misterioso, mas nos tornamos muito amigos, e ele me contou sua odisseia, desde a Guerra Civil até a partida do Chile após o golpe militar, que foi seu segundo exílio." Como o protagonista do romance, Pey tem uma história circular. "Parece um artifício literário, no qual tento dizer que andamos em círculos ou espirais, mas aconteceu."
Milhares de vítimas da repressão deixaram o país após o golpe militar do Chile, em 1973. Como na Espanha, cerca de 40 anos antes, quando um general também se rebelou contra um governo esquerdista democraticamente eleito. Pey morreu em outubro de 2018, aos 103 anos, seis dias antes de Isabel Allende poder lhe enviar o manuscrito dedicado a ele.
Personagem Neruda
Outra personagem-chave na história e no livro é Pablo Neruda, cujos esforços como cônsul de imigração em Paris permitiram que os refugiados espanhóis embarcassem. O título do romance é retirado de um poema em que ele se refere ao Chile como "longa pétala de mar e vinho e neve", e seus versos encabeçam cada capítulo do livro.
"Tive que viajar muito, e o trabalho de Pablo Neruda sempre me acompanhou. Escrevi a maioria dos livros nos EUA, onde vivo e leio em inglês. Então, uma maneira de recuperar a língua, as imagens e paisagens do Chile é Neruda."
Sobre o fato de, hoje, o poeta ser acusado por grupos feministas de práticas machistas e violentas, Isabel Allende rebate que "não se pode julgar a obra pela vida privada do criador. O trabalho se torna um patrimônio de todos, e quem o criou pode ter sido uma pessoa com muitas falhas, como somos todos nós. Escavando um pouquinho pouco, todos temos um telhado de vidro."
Como em seus romances anteriores, aqui também há mulheres fortes, inspiradas em histórias reais, como a pianista que veio no Winnipeg e se tornou decana de uma faculdade de música. "Tenho tantos exemplos de mulheres corajosas e trabalhadoras, que não me custa nada escrever sobre elas." Na fundação que leva seu nome, a escritora trabalha com e para mulheres e garotas.
Uma integração bem-sucedida, como aconteceu com a chegada do Winnipeg no Chile, também envolve a quebra de preconceitos. "É uma questão de olhar seus rostos, ouvir sua história, abrir-se. Por que ter medo do que é diferente? O problema não se resolve fechando as fronteiras ou construindo um muro, mas tentando melhorar as condições de vida nos países de origem."
O romance Largo pétalo de mar, cujo lançamento coincide com o 80º aniversário da chegada de Winnipeg ao Chile, acaba de ser traduzido para o alemão como Dieser weite Weg (Este vasto caminho). No fim de outubro, Isabel Allende virá apresentá-lo em Berlim, Hamburgo e Colônia: "Os leitores alemães têm sido extraordinariamente fiéis a mim. Tenho uma enorme dívida de gratidão com eles."
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