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Literatura

19 de janeiro de 2011

O trabalho é resultado de uma viagem feita em 2008, quando o jornalista Fernando Scheller decidiu acompanhar o cotidiano de uma família muçulmana por dois meses. Em entrevista, o jovem escritor falou à Deutsche Welle.

Família Khan mora em Mardan, na fronteira com o AfeganistãoFoto: DW

Durante o mestrado em Economia e Política Internacional na Alemanha, o jornalista brasileiro Fernando Scheller conviveu em um ambiente multicultural. Na universidade, conheceu outros estudantes estrangeiros, entre eles, o jovem paquistanês Ishfaq Khan, de quem se tornou amigo. Da amizade, nasceu o convite para visitar o Paquistão.

Em 2008, o jornalista decidiu mergulhar na experiência de viajar à Ásia e conhecer a ex-colônia britânica de 180 milhões de habitantes cuja imagem no ocidente é frequentemente associada ao terrorismo e fanatismo religioso. Muito além de uma viagem de férias, Fernando Scheller decidiu viver uma experiência ainda mais marcante: acompanhar o cotidiano da família Khan durante dois meses na cidade de Mardan, na fronteira com o Afeganistão.

Da permanência no país nasceu o livro-reportagem Paquistão: viagem à terra dos puros, lançado em novembro de 2010 no Brasil. Puros e evoluídos é como se definem os paquistaneses, ao contrário da imagem passada pela mídia ocidental. No livro, o jornalista narra situações do cotidiano junto à família anfitriã. A narrativa tenta derrubar estereótipos e revela outros aspectos culturais.

'Paquistão' terra dos puros, em urdu, o idioma oficial do paísFoto: Globo Livros

Em entrevista à Deutsche Welle, o autor conta como foi a convivência com a família Khan, além de abordar aspectos que, muitas vezes, passam despercebidos no ocidente: o povo paquistanês é tão vítima do terrorismo quanto o resto do mundo.

Deutsche Welle: Você diz que a inspiração para o livro nasceu depois que você se tornou amigo de um estudante paquistanês durante um mestrado na Alemanha. Mesmo assim, já havia antes algum tipo de interesse pela Ásia ou isso nunca havia passado por sua cabeça?

Fernando Scheller: Não. A ideia do livro, na verdade, surgiu bem depois do convite para visitar o Paquistão. Foi quando decidi ficar um período mais longo no país que propus à editora uma obra que retratasse, do lado de dentro e a partir da visão de um brasileiro, o cotidiano de uma família muçulmana. Como jornalista, sempre achei que o específico é mais interessante do que o geral. Por isso, meu objetivo foi retratar um microcosmo desconhecido para a maioria das pessoas. Uma visão livre de preconceitos ou visões pré-concebidas.

Como foi a reação da família Khan ao saber do seu interesse em escrever um livro para contar sobre o cotidiano deles?

Quando finalmente comecei a organizar a viagem, avisei Ishfaq que tinha a ideia de escrever um livro. Como manda a tradição pachto, tribo à qual a família pertence, o hóspede deve ser tratado com toda a atenção, apoio e proteção. Depois de uma ou duas semanas de espera, a resposta veio: o amigo brasileiro estava autorizado por Anwar Beig, o patriarca dos Khan, a escrever o livro do jeito que quisesse. Se havia ajudado e sido um bom amigo para o filho dele na Alemanha, estaria autorizado a retratar a família do jeito que achasse mais justo. A anuência foi concedida quase que totalmente livre de ressalvas. O único pedido foi que eu omitisse o nome das mulheres da família. Como isso não era possível, negociei o uso de pseudônimos, como deixo bem claro logo nos primeiros capítulos.

O Paquistão é uma República Islâmica, portanto religião e política são coisas aparentemente fundidas. Como você procurou lidar com os valores da sociedade durante a convivência no clã?

Na verdade, a constituição do Paquistão é uma mistura das leis islâmicas com ideias importadas do Reino Unido, que colonizou a região até 1947. Além disso, como o país é composto por quatro tribos, a relação e a interpretação do que diz o Alcorão costuma variar de acordo com um "filtro" de regras não escritas, muito mais antigo do que a religião em si. Embora eu tenha feito pesquisa e conversado muito com Ishfaq Khan e outros colegas de mestrado muçulmanos, os costumes são realmente diferentes dos ocidentais: os casamentos arranjados, o forte papel do patriarca na tomada de decisões, o quase inexistente contato social entre homens e mulheres são exemplos de códigos de convívio com os quais tive que me acostumar aos poucos.

Como era a comunicação com o restante da tribo, já que provavelmente nem todos falavam inglês?

Aprendi algumas palavras no idioma pachto. O interessante no Paquistão é que cada uma das quatro tribos fala uma língua diferente – o urdu, que é o idioma oficial, não é falado pela maioria dos habitantes da fronteira noroeste, junto ao Afeganistão, onde vivem os pachtos. Desta forma, o jeito foi aprender algumas expressões básicas para o convívio com os vizinhos e parentes mais distantes – como "oi", "tchau", "quero água" e "boa noite". De resto, pai e irmãos de Ishfaq falavam inglês. Com a mãe, usava algum deles como tradutor. Como ex-colônia britânica, o Paquistão tem placas escritas em inglês, o que facilitou o meu ir e vir durante os quase 20 dias que viajei pelo país após o período com a família Khan.

Fernando Scheller durante o lançamento do livro no BrasilFoto: Marina Salazar/Livrarias Curitiba

Qual foi a sua principal percepção sobre o cotidiano da família Khan?

O núcleo familiar é a base do convívio social no país. Isso me marcou muito: boa parte dos parentes dos Khan vive no mesmo bairro. A filha mais velha casou-se e mora no terreno vizinho à casa onde foi criada, com os quatro filhos. Visitar parentes é uma das principais atividades sociais. Por isso, a casa sempre vivia cheia de primos, tios, sobrinhos e amigos. Mesmo dentro da família, fica clara a separação entre os sexos: as mulheres geralmente se reúnem na cozinha, enquanto os homens ficam na sala.

A dedicação à religião também separa homens e mulheres. Enquanto eles vão às mesquitas, elas oram em casa. Entretanto, na hora de decidir casamentos, as mulheres têm poder sobre os homens: a mãe e as irmãs buscam na vizinhança, entre amigas ou conhecidas, o par ideal para os filhos. A tradição manda que, mesmo insatisfeito, o homem aceite a sugestão dada pelos familiares – afinal, como me disse um paquistanês, a família só quer o bem de seus membros.

No ocidente, a imagem do povo paquistanês é frequentemente associada a grupos terroristas. Como você procura quebrar esse tipo de estereótipo no livro-reportagem?

Gosto muito da noção de que o preconceito é a opinião sem informação – e, se meu livro conseguir mudar uma ou duas mentes, acho que vou ter cumprido meu papel. É preciso deixar claro que uma coisa são os problemas enfrentados por um país e outra são as pessoas que nele vivem. Os paquistaneses que conheci se penitenciam pelo terrorismo que assola o país e são as principais vítimas dele.

Durante a sua estada no Paquistão ocorreram dois atentados terroristas no país. Como a população costuma reagir diante desses acontecimentos?

Presenciei dois ataques terroristas, um em Mardan e outro em Islamabad, e se instaura um clima de terror toda a vez que uma bomba explode. Nunca se sabe quando o próximo ataque pode ocorrer. O ataque terrorista geralmente cumpre o objetivo de deixar as pessoas com medo. Especialmente onde a atuação do governo é inexistente, como nas áreas montanhosas mais afastadas do noroeste do Paquistão, isso pode dar origem à "talibanização", a criação de uma espécie de governo paralelo que estabelece suas leis particulares.

Na maior parte das vezes, qualquer reação contrária ao talibã é punida com a morte. Como a interpretação do Alcorão é livre, muitas vezes regras consideradas triviais pela maior parte das pessoas que pratica a religião – como os homens cultivarem uma barba do tamanho de um punho – pode ser punida com a pena capital, dependendo das regras estabelecidas pela milícia dominante.

E a sua relação com o amigo paquistanês? O que ele achou do livro, mesmo sem entender o português?

Já enviei um exemplar para ele e expliquei o conteúdo, mas nada substitui uma leitura informada. Em março, deve ficar pronta uma tradução de parte do livro para o inglês, e ele terá a oportunidade de entender a minha visão sobre o país.

Acho que ele gostará da forma como retratei o senso de humor das pessoas, o cotidiano da família e a forma de os cidadãos enfrentarem as dificuldades do dia-a-dia, como a inflação galopante, a falta de empregos e a infraestrutura deficiente. Durante minha estada no país, em um verão de quase 50 graus Celsius, a luz acabava a cada três horas. Os reservatórios das hidrelétricas estavam baixos e a geração era insuficiente para abastecer o uso mais intenso de ventiladores e aparelhos de ar-condicionado.

Ele voltou definitivamente para o Paquistão depois do mestrado ou está na Europa?

Sim. Ele ficou uns cinco anos na Alemanha, enquanto eu fiquei dois. Quando visitei a família Khan, Ishfaq estava ainda na Europa. Voltou para o país no ano passado, e trabalha na prevenção de grandes catástrofes (fez trabalhos inclusive para a Sociedade Alemã de Cooperação Técnica), o que faz sentido no país, que sofre com o terrorismo, terremotos, enchentes, entre outras tragédias sociopolíticas e naturais. Recentemente, ele se casou e já se prepara para constituir uma família.

Qual a experiência mais marcante que você levou da viagem?

Acho que hoje sou um jornalista menos propenso a generalizações ou interpretações apressadas. Colocar o paquistanês ou os seguidores do Islã em uma só caixa, como se fosse possível defini-los de modo uniforme, é uma armadilha da qual muitos não conseguem fugir.

No Paquistão, por exemplo, há quatro diferentes tribos que formam a população, todas de tradições e códigos distintos. E isso é perceptível quando se viaja pelo país. Em Mardan, é inadmissível uma mulher sair à rua com a cabeça descoberta, e muitas usam a burca. Em Islamabad, não vi sequer uma mulher de burca nos 15 dias em que lá fiquei, e era muito comum as paquistanesas circularem com roupas ocidentais, como se estivessem em qualquer outro lugar do mundo.

Autora: Dayse Freitas
Revisão: Roselaine Wandscheer