Justiça revoga condenação de coronel Ustra por tortura
18 de outubro de 2018
Tribunal entende que houve prescrição em ação movida por parentes de jornalista torturado e morto na ditadura militar. Comandante do DOI-Codi nos anos 1970, Ustra havia sido condenado a pagar indenização à família.
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O Tribunal de Justiça de São Paulo reverteu nesta quarta-feira (17/10) a sentença que havia condenado o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra ao pagamento de uma indenização de 100 mil reais à família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, assassinado em julho de 1971 durante a ditadura militar. Ustra morreu em 2015, aos 83 anos, vítima de câncer e problemas cardíacos.
Na decisão de primeira instância na ação por danos morais movida pela família de Merlino, o coronel Ustra havia sido condenado à indenização por ter participado e comandado sessões de tortura que resultaram na morte do jornalista.
No entanto, a defesa de Ustra recorreu da ação e conseguiu a extinção. Por unanimidade, os desembargadores Luiz Fernando Salles Rossi, Mauro Conti Machado e Milton Paulo de Carvalho Filho, entenderam que houve prescrição da ação, pois o pedido de indenização foi feito em 2010, pela esposa e pela irmã do jornalista. Os magistrados entenderam que decorreu o prazo superior aos 20 anos previstos no Código Civil para ajuizamento de processo.
Segundo o relator, Salles Rossi, a promulgação da Constituição brasileira em 1988 deve ser considerada como marco zero, a partir de quando poderia ter sido aberta a ação indenizatória. Mas em 2010, data em que a viúva e a irmã de Merlino acionaram a Justiça, já haviam se passado 22 anos.
Em 2012, em primeira instância, a juíza Cláudia de Lima Menge, determinou o pagamento de uma indenização. Menge argumentou que o caso era imprescritível porque o assassinato de Merlino deve ser compreendido como um crime contra a humanidade.
A viúva do jornalista, Ângela Mendes Almeida, lamentou a decisão da Justiça paulista e disse que vai recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
"Para mim, [a decisão] representa uma espécie de licença para torturar, porque a tortura foi completamente desqualificada [no tribunal]", disse. "Eles são juízes conservadores e acham que esses crimes não são importantes."
Integrante do Partido Operário Comunista à época, Merlino foi preso em 15 de julho de 1971, em Santos, e levado para a sede do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).
No local, ele foi torturado por cerca de 24 horas e morto quatro dias depois. De acordo com a família de Merlino, o coronel Ustra foi quem ordenou as sessões de tortura que o levaram à morte. Ustra foi comandante do DOI-Codi em São Paulo, um dos maiores centros de repressão durante a ditadura, entre 1970 e 1974.
Em abril de 2016, ao votar pelo impeachment da então presidente Dilma Roussef, o então deputado federal e agora candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL) declarou seu voto "contra o comunismo" e "pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Roussef". Bolsonaro também já chamou o coronel Ustra de "herói".
Crime imprescritível
Para o procurador regional da República Marlon Weichert, "a decisão da Justiça de São Paulo é equivocada, porque ela está em desconformidade com todos os fundamentos da Corte Interamericana [de Direitos Humanos] e com a jurisprudência do STJ". Apesar de a ação de Merlino ser de reparação e não uma ação criminal, Weichert considera que o entendimento da corte deve ser aplicado também neste caso.
"Toda a fundamentação, toda a construção do que diz a corte, que classificou os crimes cometidos pela ditadura como crimes contra a humanidade, no nosso entendimento, e isso nós defendemos desde lá de trás em outra ação reparatória que nós fizemos contra o Ustra, aplica-se também para as ações civis. Nesse sentido, a decisão do TJ-SP está equivocada", disse o procurador da República.
"O STJ tem entendido que não há prescrição para essas graves violações de direitos humanos para reparações cíveis [indenizações]. Foram casos movidos contra a União, mas também nós entendemos que se aplica aos responsáveis diretos, que são as pessoas que praticaram a violação", disse Weichert.
Ele citou que a família do jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975, também durante a ditadura militar, entrou com uma ação na década de 90 contra a União e ganhou a reparação pela Justiça.
No início de julho deste ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Cidh) classificou o assassinato de Herzog de crime contra a humanidade, o que extingue as possibilidades de prescrição e de anistia dos torturadores e assassinos. A decisão possibilita a reabertura das investigações sobre sua morte.
Regime militar que sufocou a democracia se estendeu por 21 anos. Período foi marcado por perseguições, tortura, censura, crescimento e derrocada econômica.
Foto: Arquivo Nacional
A perseguição política
A perseguição de adversários se concentrou nos meses após o golpe de 1964 e entre o final da década de 60 e início dos anos 70. Mais de 5 mil pessoas foram alvo de punições como demissões, cassações e suspensão de direitos políticos. Ao todo, 166 deputados foram cassados. O regime também perseguiu membros em suas fileiras. Pelo menos 6.951 militares foram presos, desligados e presos.
Foto: Arquivo Nacional
Assassinatos e desaparecimentos
Assim como a perseguição política, os assassinatos de opositores promovidos pelo regime se concentraram em algumas fases da ditadura. Mas todos os generais-presidentes foram tolerantes com a prática. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou a responsabilidade do regime militar pela morte de 224 pessoas e pelo desaparecimento de 210 – 228 delas morreram durante o governo Médici (1969-1974).
Foto: Arquivo Nacional
Tortura
Na ditadura, a tortura virou uma prática de Estado. Já no governo Castelo Branco (1964-1967) foram apresentadas 363 denúncias de tortura. Na fase de Médici (1969-1974), seriam mais de 3.500. O relatório "Brasil: Nunca Mais" lista 283 formas de tortura aplicadas pelo regime, como afogamentos, choques elétricos e o pau de arara. Ao longo de 21 anos, houve mais de 6 mil denúncias de tortura.
Foto: Arquivo Nacional
A luta armada
Ao dar o golpe, os militares citaram a corrupção e o esquerdismo do governo Jango. A luta armada, às vezes apontada como razão de ser da ditadura, nem foi mencionada. Só em 1966 ocorreram as primeiras ações relevantes de grupos de esquerda, que cometeriam atentados e assaltos com o objetivo de promover uma revolução. Em 1974, todos já haviam sido aniquilados, mas a ditadura duraria mais uma década
Foto: Arquivo Nacional
Os atos institucionais
O regime militar recorreu a uma série de decretos chamados atos institucionais para manter seu poder. Entre 1964 e 1969 foram promulgados 17 atos, que estavam acima até da Constituição. Alguns promoveram a cassação de adversários (AI-1) e a extinção dos partidos políticos existentes (AI-2). O mais duro deles, o AI-5, instituiu em 1968 a censura prévia na imprensa e a suspensão do "habeas corpus".
Foto: Arquivo Nacional
A censura
Boa parte da imprensa apoiou o golpe, mas vários jornais passaram a criticar o regime, alguns mais cedo, outros mais tarde. Com o AI-5, passou a vigorar uma censura prévia em vários meios de comunicação. O regime censurava até más notícias, promovendo uma imagem fictícia da realidade do país. Epidemias, desastres e atentados eram temas vetados. Músicas, filmes e novelas também foram censurados.
Foto: Arquivo Nacional
Colaboração com outras ditaduras
Junto com os regimes da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, a ditadura brasileira integrou a Operação Condor, uma aliança para perseguir opositores no Cone Sul. O regime também ajudou a treinar oficiais chilenos em técnicas de tortura. Um dos casos mais notórios de colaboração foi o sequestro em 1978 de dois ativistas uruguaios em Porto Alegre, que foram entregues ao país vizinho.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
O milagre econômico...
Após três anos de ajustes, os militares promoveram a partir de 1967 investimentos e oferta de crédito. A fórmula deu resultados. Entre 1967 e 1973, a expansão do PIB brasileiro foi de 10,2% ao ano. O país passou a ser a décima economia do mundo. O crescimento aumentou a popularidade do regime durante a fase mais repressiva da ditadura. Mas o "milagre brasileiro" duraria pouco.
Foto: Arquivo Nacional
... e a derrocada econômica
A conta do "milagre" chegou após os dois choques do petróleo e uma série de decisões desastradas para manter a economia aquecida. Ao fim da ditadura, o país acumulava dívida externa 30 vezes maior que a de 1964 e inflação de 225,9% ao ano. Quase 50% da população estava abaixo da linha de pobreza. Os militares pegaram um país com graves problemas econômicos e entregaram um quebrado.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Corrupção
A censura e a falta de transparência favoreceram a corrupção. O período foi marcado por vários casos, como o Coroa-Brastel, Delfin, Lutfalla e a explosão de gastos em obras. O regime promoveu e protegeu figuras como Paulo Maluf e Antônio Carlos Magalhães, que já nos anos 70 eram suspeitos em casos de corrupção. Também abafou casos, como a compra superfaturada de fragatas do Reno Unido nos anos 70.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Grandes obras
A ditadura promoveu obras faraônicas, divulgadas com propaganda ufanista, como Itaipu e a ponte Rio-Niterói. Algumas foram marcadas por desperdícios e erros, como a Transamazônica e as usinas de Angra. Em 1969, o regime criou uma reserva de mercado para as empreiteiras nacionais ao proibir a atuação de estrangeiras. É nessa época que empresas como a Odebrecht passam a dominar as obras no país.
Foto: Arquivo Nacional
Anistia e falta de punições
Em 1979, seis anos antes do fim da ditadura, foi promulgada a Lei da Anistia, perdoando crimes cometidos por motivação política. Mas ela tinha mão dupla: garantiu também a impunidade para agentes responsáveis por mortes e torturas. No Chile e na Argentina, dezenas de agentes foram condenados por violações de direitos humanos após a volta da democracia. No Brasil, ninguém foi punido.