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Entrevista

Juliana Lugão10 de junho de 2007

Maurício Dias e Walter Riedweg falam à DW-WORLD sobre suas investigações e propostas estéticas, que vão desde a discussão das relações de alteridade até a antítese documentário x ficção.

Uso de máscaras nas entrevistas: 'Voracidade Máxima'Foto: Dias & Riedweg

Trabalhando juntos desde 1993, Maurício Dias e Walter Riedweg, ou MauWal, como eles mesmos assinam, investigam "o outro". A relação, o encontro e a diferença com o outro, que pode ser um funkeiro, um gigolô, um vizinho, um detento numa cadeia em Atlanta, um policial da Califórnia ou um árabe muçulmano no Egito. E colocam frente a frente o documentário e a ficção.

De um celular de alguém da equipe técnica em Kassel, com ruídos e interrupções para discussões sobre a montagem das instalações na documenta 12, a dupla Maurício Dias e Walter Riedweg falou à DW-WORLD sobre os trabalhos que serão expostos a partir de 16 de junho na cidade. Uma conversa sobre uma obra que fala, sobretudo, dos dias de hoje.

DW-WORLD: Nos trabalhos de vocês, personagens cotidianos e a rua estão sempre em foco, são sempre abordados. Em que medida isso aproxima os vídeos de documentários?

Maurício Dias e Walter Riedweg: Nossos trabalhos são estudos sobre a alteridade. Falamos das relações entre as pessoas. Isso pode ser em um nível psicológico, psicanalítico, – entre dois indivíduos, por exemplo – ou em um âmbito sociopolítico: como os grupos sociais se relacionam. Nesse sentido, obviamente, as relações com o documentário ficam muito estreitas, já que é um trabalho de documentação de algo existente.

Há, entretanto, um outro pensamento que nos orienta: acreditamos que toda imagem não é, a priori, nem documental nem fictícia . O que determina que uma imagem seja considerada fictícia ou documental é a literatura que se cria a partir dela ou a literatura a partir da qual ela foi criada.

A gente joga com essa dicotomia o tempo todo: há a documentação das coisas reais, realidades, formas de viver, mas também a reinvenção dessas formas. Ou seja, o trabalho não é feito com atores, mas nossas obras não são documentários feitos a partir dessas pessoas. Algumas cenas são proposições fictícias: às vezes um roteiro ou uma coreografia, que vêm a partir do diálogo que a gente estabelece no processo de trabalho.

Em que medida a videoarte se distancia do documentário na contemporaneidade?

Um dos aspectos formais que norteia o nosso trabalho é justamente esse diálogo entre o documentário e a forma. De uma maneira geral, as relações de aproximação e distanciamento entre videoarte e documentário estão sempre presentes, seja qual for o trabalho com vídeo.

Ao começar a gravar uma imagem com a câmera, o artista está, necessariamente, tomando algumas imagens que são da ordem documental. O vídeo não é uma página limpa em que você sai desenhando. A questão é qual é o foco de cada trabalho. Alguns são puramente formais e outros lidam com a questão da representação.

A instalação passou por Barcelona, Paris, São Paulo e agora KasselFoto: Dias & Riedweg

Vocês já trabalharam em várias cidades do mundo. Intervir na vida urbana é um dos principais focos? Por que a constante mudança?

A questão, na verdade, é: por que se fazem eventos de arte contemporânea em tantos lugares distintos e eles têm a mesma cara? Porque uma Bienal em Xangai pode ser tão parecida com uma Bienal em Havana ou uma Bienal no México? A gente simplesmente aceita os convites para os eventos que acontecem em diversas partes do mundo.

O artista tem essa relação íntima com a vida do cigano, com a vida do imigrante. Não dá para mostrar o trabalho só onde se vive. Senão, o artista morre de fome e o trabalho não se dissemina. Da mesma forma que um ator viaja em turnê, um artista plástico é obrigado a se locomover no espaço pra poder mostrar o seu trabalho. E, claro, foi atendendo aos convites que a gente tornou o trabalho conhecido, porque no Brasil a coisa é mais complicada – estar sempre lá não permite viver profissionalmente de artes plásticas.

Além disso, a gente tem interesse em conhecer outros contextos que não sejam os nossos, queremos também conhecer outras formas de vida, outras pessoas, além daquilo que está à nossa volta normalmente. Como nosso trabalho é um diálogo entre nós e o outro, há uma negociação de idéias com as pessoas que são tema do trabalho, uma vez que elas também são, de certa forma, responsáveis pela autoria. O que acontece freqüentemente é que o convite seja feito para desenvolver um trabalho no lugar onde o evento vai acontecer. Um desses é a documenta, onde a gente está expondo dois trabalhos.

O diretor artístico Roger Buergel viu nosso trabalho em Barcelona, Paris e São Paulo e nos trouxe para a documenta. Mas pediu para a gente fazer algo novo, que de alguma forma se relacionasse com Kassel. Este outro trabalho, embora não seja feito em Kassel, foi um desafio que acabou nos ajudando a conservar a linguagem estética que tentamos desenvolver, desta vez de uma forma globalizada.

Clique para saber mais sobre o que a dupla vai levar para Kassel!

Além de autores, vocês, muitas vezes, são personagens dos vídeos que produzem. De que forma essa intervenção influencia nos resultados? Quais os objetivos de investigação que impulsionam essa intervenção?

De alguma forma, o que a gente faz são relatos do encontro com o outro. A gente sempre procura personagens e pessoas que sejam diferentes da gente. E não necessariamente esses outros são personagens e nós criadores. Para que o diálogo que queremos estabelecer seja construído de forma um pouco mais verdadeira, é importante que a gente diga quem a gente é. Isso porque o trabalho não é sobre o outro, mas sobre as relações que nós todos temos uns com os outros.

Em alguns dos vídeos, isso chega ao ponto extremo de a gente participar visualmente do trabalho, como é o caso de uma das peças mostrada na documenta, que se chama Voracidade Máxima. Esse trabalho foi feito em 2003, em Barcelona, com os jovens que, no Brasil, são chamados michês.

Eles precisavam esconder a identidade, porque todos são imigrantes ilegais, além de a própria prostituição ser ilegal e de o segredo ser extremamente importante nessa prática – as pessoas que se prostituem e sobretudo as que pagam por um prostituído ou uma prostituta querem segredo.

A situação trouxe a necessidade de se colocar máscaras. Como era a gente que ia conduzir as conversas que construíram formalmente o trabalho, fizemos máscaras de látex com a nossa cara, para eles colocarem durante a entrevista.

Quando eu [Maurício Dias] faço a entrevista no vídeo, aparecem eu e um michê, que está usando uma máscara de látex que reproduz meu rosto. Quando é o Walter que faz a entrevista, o michê está com uma máscara de látex com o rosto dele.

As entrevistas com esses gigolôs da prostituição masculina gay são feitas na cama: a gente aparece sem camisa, só com uma toalha, como se estivéssemos num hotel. A instalação reproduz o ambiente : há uma cama com um lençol azul, exatamente como é o cenário onde o vídeo foi feito, com duas grandes projeções e dois grandes espelhos, adicionando o espectador àquelas imagens.

Com as máscaras e o cenário, a gente criou a mesma identidade visual para o entrevistado e o entrevistador – para o artista, e para o prostituto. A instalação cria um jogo de sedução e confusão para falar de uma coisa que é real. O vídeo acaba ficando com um aspecto de documentário ficcional. Um ambiente foi criado para falar de questões delicadas de uma realidade que todos conhecem.

O QG atual da dupla é o Rio de Janeiro. Como a cidade instigou o trabalho de vocês?

No ano de 1999, fomos morar no Rio porque íamos participar da 24ª Bienal de São Paulo. Hoje a gente vive lá, no bairro de Santa Tereza, que é um bairro cercado por seis favelas. Cerca de 25% da população desse bairro é favelada, então a relação de alteridade, que a gente investiga no nosso trabalho, está no dia-a-dia, na convivência com as pessoas da favela.

'Funk Staden': encontro entre Rio de Janeiro e KasselFoto: Dias & Riedweg

No Rio, não tem como evitar isso. A cultura da favela, ao contrário do que muita gente pensa, é enorme, super interessante e super contemporânea. O samba é uma coisa maravilhosa e o funk também é outro que a gente aprendeu a apreciar. Acabamos entrando de cabeça no universo do funk para o trabalho feito especialmente para a documenta.

Para a documenta 12, um trabalho que relaciona o relato de Hans Staden sobre o Brasil com o movimento funk carioca está sendo preparado por vocês. Quais as relações entre os dois focos?

O nome do trabalho é Funk Staden. Se o funk é a parte carioca, o Staden é a parte de Kassel. Funk Staden reconta o 28º capítulo do livro Wahrhaftige Historia, escrito por Hans Staden, que é um cidadão de Kassel.

Hans Staden nasceu em um vilarejo, em um subúrbio de Kassel, que se chama Homberg , e morreu em Wolfhagen, outro vilarejo suburbano de Kassel. Quando a gente chegou a Kassel para pesquisar o que fazer aqui para a documenta, foi na História que a gente encontrou nosso mote. Mais especificamente em 1557, ano em que o livro Wahrhaftige Historia foi escrito em Kassel.

Esse livro reúne os primeiros registros literários que foram feitos sobre o Brasil. Nele, Hans Staden conta sua aventura de quando sai de Kassel e vai para o Brasil, onde é capturado pelos índios tupinambás – os índios da costa entre Rio e São Paulo.

Esses índios eram antropófagos: acreditavam que, na medida em que comessem a carne do inimigo, absorveriam a sua bravura. Enfim, também trabalhavam de alguma forma com a alteridade. Hans Staden não foi considerado um homem bravo e corajoso pelos nossos índios tupinambás e, por isso, foi poupado.

Ao se liberar, voltou pra Europa e escreveu em Kassel, o Wahrhaftige Historia, que se tornou um dos primeiros best-sellers da história da literatura européia. Até o fim do século 18, esse livro já tinha sido traduzido para 40 idiomas e circulado pela Europa inteira. Através do Wahrhaftige Historia, criou-se um mito do selvagem dos trópicos e ficou legitimada toda a violência do processo de colonização.

No capítulo 28, Hans Staden conta como os tupinambás celebravam e decoravam o inimigo, antes de matar com um certo instrumento chamado ivirapema. Conta como as índias comiam os brancos inimigos, como fritavam o cérebro, comiam a carne humana.

Nosso trabalho reconta esse capítulo, revisitando a questão da percepção sobre a cultura do outro na história. Para isso, a gente fez um ivirapema nosso. Um bastão como o dos índios, sendo que na ponta, em vez lanças e chocalhos, a gente tinha três câmeras de vídeo. Fomos para os bailes funk das favelas cariocas durante um ano, filmando tudo com esse bastão.

Os funkeiros dançam com o bastão na mão e, ao mesmo tempo, filmam o baile. O Funk Staden é um tríptico de vídeos, em que você vê o capítulo 28, de Hans Staden, recontado a partir do universo funk carioca contemporâneo. É a videoinstalação que abre o Schloss Wilhelmshöhe, onde estão os trabalhos que lidam de alguma forma com a História e com a cidade de Kassel.

Clique para ler o final da entrevista com Maurício Dias e Walter Riedweg!

Quais são as questões que a arte deve investigar nos dias de hoje?

A arte deve servir de plataforma de reflexão sobre a vida, sobre as maneiras como a gente se relaciona uns com os outros e com o espaço onde vivemos. No nosso trabalho, as questões abordadas não são, ao contrário do que muitos pensam, sociais. São questões humanas, que não dependem da situação geográfica.

A imigração, por exemplo, que é um dos nossos temas principais, pertence tanto ao terreno da subjetividade quanto ao terreno da política. Se o problema da imigração for visto de uma forma ligada ao Estado, à defesa de território, ele se torna, de fato, um problema sociopolítico.

Mas se a imigração for encarada como um direito de se locomover no espaço, que é um direito e um desejo que todo ser humano tem, chega-se a um nível subjetivo de questionamento. Muita gente emigra, simplesmente porque quer mudar de espaço. E a maneira como isso é regrado, através do passaporte, é vista como uma questão geográfica, mas hoje em dia é puramente econômica.

A documenta 12 pretende investigar três questões: "O que é a vida nua?" , "A modernidade é o nosso passado?" , "O que deve ser feito?". Dentre essas, qual (ou quais) vocês acreditam investigar no trabalho que preparam para o museu de 100 dias?

Foram o Roger Buergel e a Ruth Noack que escolheram o Voracidade Máxima, não sei com que questão em mente. Intuitivamente a gente diria que é um trabalho que focaliza a pergunta que leva em conta a questão da vida nua, da violência da vida, e como a gente se relaciona com isso. O Voracidade Máxima fala diretamente das possíveis relações que existem entre sexualidade e economia. E isso fica claro naquela cama, é na cama que acontece esse encontro, na prostituição.

'Vida nua' em Funk Staden: do século 16 ao mundo globalizadoFoto: Dias & Riedweg

No Funk Staden, as três questões estão, de alguma forma, abordadas. A gente pega a modernidade tendo o século 16 como origem, que é a época do mercantilismo, das expansões marítimas, o berço da atual globalização.

A questão da vida nua também está lá, porque a mesma violência que existia no ato canibal da antropofagia dos índios, existiu no processo de colonização, e existe na maneira como os funkeiros são marginalizados socialmente e culturalmente.

O grito de dor, o grito guerreiro do índio, não deixa de ser o grito do funkeiro que maldiz a sociedade, a polícia e as relações sociais. O Rio de Janeiro é apenas um singelo retrato da perversidade que existe no capitalismo globalizado atual. O problema é inerente à nossa época.

Por último, "o que fazer agora" está na postura dessa documenta, que é a de propor o diálogo e trazer trabalhos que proponham diálogos, servindo muito mais como plataforma para pensar a situação atual do que como uma plataforma crítica de estéticas e formalismos.

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