Legalização de dólares pode facilitar sonegação na Argentina
26 de maio de 2025
O presidente da Argentina, Javier Milei, lançou um ambicioso e polêmico plano para legalizar e reintroduzir ao sistema financeiro grandes volumes de dólares não declarados. A medida permitirá que pessoas físicas e empresas usem livremente suas reservas de dinheiro, ainda que tenham sido acumuladas pelo mercado paralelo, sem enfrentar sanções tributárias ou penais.
"O objetivo é claro: estimular a economia permitindo que o dinheiro escondido 'debaixo do colchão' circule novamente", explica o analista político e econômico Carl Moses, de Buenos Aires. "Na Argentina, estima-se que entre 200 bilhões e 400 bilhões de dólares circulem fora do sistema. Essa magnitude não pode ser ignorada", afirma.
Em abril, Milei já havia suspendido boa parte dos controles cambiais que, desde 2019, limitavam a compra de dólar no mercado oficial a 200 dólares mensais por pessoa física. A decisão veio após o país fechar mais um acordo de resgate com o Fundo Monetário Internacional (FMI) de 20 bilhões de dólares.
A iniciativa mais recente, porém, dividiu opiniões tanto no país quanto no exterior. Por um lado, a expectativa é pelo alívio em restrições que, há anos, limitam a circulação de dinheiro e geraram uma economia paralela sustentada pela desconfiança com o sistema bancário. Por outro, críticos veem fronteiras difusas entre os conceitos de legalidade e ilegalidade, gerando preocupações entre os órgãos internacionais de supervisão financeira.
Markus Demary, economista do Instituto de Economia Alemã (IW), avalia que o plano vai na contramão dos padrões globais.” O que está sendo proposto na Argentina seria considerado na Europa como um incentivo direto à sonegação fiscal e à lavagem de dinheiro. Aqui, todos os envolvidos — de bancos a clubes esportivos — são obrigados a denunciar transações suspeitas”, ressalta.
Uma necessidade argentina?
A medida proposta pelo governo de Milei não distingue a origem do dinheiro, desde que não esteja vinculado a crimes graves. Ou seja, recursos obtidos por meio de pequenas sonegações fiscais ou comércio informal poderiam ser usados sem serem rastreados.
Moses esclarece que os controles não serão completamente eliminados: "A vigilância será flexibilizada em transações menores, como compras de consumidores, mas não em aquisições maiores, como imóveis. Mesmo assim, a mudança é clara: agora os cidadãos não são mais suspeitos por padrão."
A Argentina vive uma profunda crise de confiança institucional, após décadas de confiscos bancários e desvalorizações forçadas. Segundo Moses, isso levou a um padrão de desbancarização em massa. "Os argentinos compram dólares no mercado paralelo e os guardam em casa, mesmo que sejam legais. Ninguém confia no sistema financeiro", relata.
Para reverter essa lógica, Milei opta por uma solução prática, ainda que controversa. "Em última análise, o governo está tentando abordar uma realidade existente, não criar uma nova", acrescenta Moses.
De uma perspectiva econômica, o plano pode ter efeitos positivos no curto prazo, de acordo com Moses. Ao permitir que reservas inativas sejam utilizadas, o consumo e o investimento em bens duráveis seriam estimulados, principalmente por pequenas e médias empresas. "Muitas empresas têm um fundo paralelo. Se quiserem comprar máquinas, o fazem com esse dinheiro, mas sem recorrer a canais legais. Este esquema poderia facilitar essas transações", descreve Moses.
Preocupação internacional
A Argentina é membro do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi), que visa desenvolver políticas de prevenção e combate à lavagem do dinheiro e ao financiamento do terrorismo, e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE). Embora suas decisões soberanas não exijam autorização internacional, elas podem ter consequências.
A reintegração de dinheiro informal sem supervisão rigorosa pode ser vista como uma violação dos compromissos globais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo.
"Do ponto de vista do crime organizado, uma economia que permite a entrada de recursos sem questionamentos se torna muito atraente", alerta Demary. "A União Europeia reforçou suas regulamentações justamente para evitar isso. A Argentina corre o risco de ser incluída nas listas cinza ou negra do Gafi se não demonstrar mecanismos de supervisão adequados."
Demary ressalta aqui que um decreto facilitando a legalização em massa de recursos não rastreáveis seria impensável na Europa. "Isso está em conflito direto com a própria definição de prevenção à lavagem de dinheiro."
O projeto do governo argentino faz parte de uma lógica libertária que prioriza a redução do Estado e desconfia do controle tributário. "Para Milei, impostos são praticamente roubo, e aqueles que os sonegam estão se protegendo de um sistema injusto. Nessa perspectiva, legalizar fundos não declarados não é crime, é justiça", avalia Moses.