Tentativa de golpe divide a comunidade turca no país, provocando hostilidades entre seguidores do clérico muçulmano Fethullah Gülen e de Erdogan. Instituições rivais tentam acalmar os ânimos.
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A irritação de Ercan Karakoyu transparece em sua voz trêmula. Ele afirma que na Alemanha houve uma série de retaliações contra os membros do movimento Gülen – nome do clérigo radicado nos Estados Unidos que, segundo o governo turco, é responsável pela tentativa de golpe militar.
"A situação é assustadora, atiraram pedras contra instalações do movimento Gülen, picharam paredes, fizeram ameaças de morte", diz. Segundo ele, especialmente em redes sociais houve convocações de perseguição.
Ercan Karakoyu é presidente da Fundação para Diálogo e Educação, que atua desde 2014 como porta-voz na Alemanha do Hizmet (serviço, em turco) ou do movimento Gülen, como também é conhecido.
Ele põe a culpa na União Democrata Turco-Europeia (UETD) que, segundo ele, age como uma espécie de grupo de lobby do partido governista turco AKP, como "braço estendido" de Erdogan na Alemanha.
Karakoyu conta, ainda, que associações de mesquitas, como a Ditib, penduraram cartazes comunicando que os seguidores de Fethullah Gülen não são bem-vindos em suas comunidades. Ele cita concretamente três casos, nas cidades de Hagen, Duisburg e Günzburg.
A União Turco-islâmica para Assuntos Religiosos (Ditib) é a maior associação de mesquitas na Alemanha. Cerca de 700 mesquitas estão sob a égide da associação. A instituição se mostrou surpresa quando informada dos casos citados por Karakoyus pela reportagem da DW. "Somos uma comunidade religiosa muçulmana e não rejeitamos ninguém que venha rezar em uma mesquita.", responde a porta-voz da entidade Ayse Aydin, acrescentando que todas as mesquitas estão abertas aos que querem orar.
Golpe piora a situação
A Ditib é próxima ao departamento responsável pela religião do Estado turco. O conflito entre ela e a Fundação para Diálogo e Educação é também um conflito entre partidários de Recep Tayyip Erdogan e os de Fetullah Gülen. A disputa lança uma luz sobre o clima da comunidade turca na Alemanha, que se mostrou profundamente dividida nos dias posteriores ao fracassado do golpe na Turquia.
"O governo turco classifica o movimento Gülen como uma organização terrorista. Desde 2013, o governo turco combate fortemente o movimento e tenta afastar seguidores de Fethullah da polícia, do Judiciário e das Forças Armadas", lembra Christoph Ramm, especialista em Turquia da Universidade de Berna. Ele ressalta também que meios de comunicação leais a Fethullah Gülen, como o Zaman, jornal de maior tiragem da Turquia, foram afetados por esta "limpeza".
Influência sobre os meios de comunicação é um pilar central do movimento Gülen. Oficialmente, ele propaga um islamismo turco pacífico, em que a educação deve estar no centro, valores religiosos são associados a ações de tino econômico. O movimento está presente em mais de 140 países, constrói sobretudo escolas e instituições de ensino. Não há informações sobre seus recursos financeiros. A entidade não tem um organograma.
Christoph Ramm tem suas dúvidas sobre os verdadeiros objetivos do movimento. "Nós não sabemos como esta rede é organizada. Lembra muito uma estrutura sectária", compara. Ele frisa ser difícil obter informações e questionar as estruturas da organização. "Críticas à falta de transparência são simplesmente ignoradas."
Esperança na Alemanha
Ele vê com grande preocupação as atividades do governo Erdogan contra o movimento Gülen. "O governo faz quase uma caça às bruxas contra os adeptos de Fethullah Gülen", alerta.
Essa caça às bruxas também parece ter chegado à Alemanha. Para Ercan, os seguidores de Erdogan na Alemanha também têm culpa no recrudescimento da situação. "A UETD, por exemplo, apanha a retórica de Erdogan, palavra por palavra, e a repassa à comunidade turco-alemã", opina Karakoyu. "O resultado é que aqui se observa exatamente a mesma hostilidade", acrescenta.
Por parte do UETD, existe uma clara preocupação em se acalmar os ânimos. A associação informou, em um comunicado de imprensa, que "tais incidentes contradizem diametralmente os princípios da organização". Com relação aos apelos à violência existentes na mídia social, a entidade salienta que "não é particularmente difícil em mídias sociais usar imagens, nomes ou brasões de forma ilegal."
Hagia Sophia na disputa das religiões
A Basílica de Santa Sofia, ou Hagia Sophia, em Istambul, é objeto de uma disputa. Nacionalistas turcos querem transformar atual museu em mesquita; enquanto o patriarca dos cristãos ortodoxos quer que volte a ser igreja.
Foto: picture-alliance/Marius Becker
Marco arquitetônico
No ano de 532, o imperador romano Justiniano 1º, que residia em Constantinopla, ordenou a construção de uma imponente igreja, "como não existe desde a época de Adão e nunca existirá novamente". Mais de 10 mil operários trabalharam nela. Dentro de apenas 15 anos, a estrutura externa era inaugurada. Durante um milênio a basílica foi o maior templo do cristianismo.
Foto: imago/blickwinkel
Palco de representação estatal
Consta que Justiniano 1º investiu quase 150 toneladas de ouro na construção da Hagia Sophia ("Sagrada Sabedoria" em grego). Mas em breve ela precisou ser reformada: projetada com uma forma plana demais, sua cúpula desabou durante um terremoto. Em breve a basílica passou a ser utilizada como igreja do Estado. Desde meados do século 7º, quase todos os soberanos bizantinos foram coroados nela.
Foto: Getty Images
De igreja a mesquita
O domínio bizantino sobre Constantinopla teve fim em 1453, quando o sultão otomano Mehmet 2º conquistou a cidade e transformou a Hagia Sophia em mesquita. Cruzes cederam lugar à lua crescente, sinos e altar foram destruídos ou desmontados, mosaicos e pinturas murais foram caiados por cima. Com a construção do primeiro minarete, o prédio sacro ganhou aparência muçulmana também por fora.
Foto: public domain
De mesquita a museu
Em 1934, o fundador da República da Turquia, Mustafa Kemal Atatürk (foto), transformou em museu a "Ayasofya", como é denominada em turco, na atual metrópole de Istambul. A secularização acarretou minuciosos trabalhos de restauração. Os antigos mosaicos bizantinos foram revelados, porém cuidou-se também para não destruir os posteriores acréscimos muçulmanos.
Foto: AP
Islã e cristianismo lado a lado
A agitada história da Hagia Sophia se apresenta a cada passo aos visitantes atuais: nesta foto, os nomes "Maomé" (esq.) e "Alá" (dir.) ladeiam Nossa Senhora com Jesus no colo (ao fundo). Notáveis são também as 40 janelas da grande cúpula: além de deixar entrar a luz, elas impedem que rachaduras se expandam, destruindo a estrutura cupular.
Foto: Bulent Kilic/AFP/Getty Images
Ícones bizantinos
O mosaico mais imponente da Basílica de Santa Sofia (como também é conhecida no mundo cristão) é uma imagem do século 14, na parede da galeria sul. Mesmo não estando completamente preservado, os rostos ainda estão bem visíveis: no meio aparece Jesus, como senhor do mundo, Maria está à sua esquerda e João, à direita.
Foto: STR/AFP/Getty Images
Proibido rezar
Hoje em dia é proibido orar na Hagia Sophia. Bento 16 também obedeceu essa determinação durante a visita que fez ao local, em 2006, a qual transcorreu sob forte esquema de segurança, devido aos protestos dos nacionalistas contra a presença do papa. Recentemente a associação nacionalista-conservadora Juventude Anatólia reuniu 15 milhões de assinaturas, para que o museu volte a ser mesquita.
Foto: Mustafa Ozer/AFP/Getty Images
Alto valor simbólico
Não faltam construções sacras muçulmanas nas cercanias da Hagia Sophia. Logo ao lado erguem-se os minaretes da Mesquita do Sultão Ahmed, também conhecida como Mesquita Azul (dir.). Os nacionalistas exigem a transformação da basílica em mesquita: ela simbolizaria a tomada de Constantinopla pelos otomanos, constituindo, portanto, um legado islâmico que precisa ser preservado.
Foto: picture-alliance/Arco
Reivindicações ortodoxas
O patriarca de Constantinopla Bartolomeu 1º também reivindica a Hagia Sophia. Há anos o líder honorífico de todos os cristãos ortodoxos apela para que a basílica seja reaberta à liturgia. "A Hagia Sophia foi construída para ser testemunha da fé cristã", argumenta o bispo ortodoxo.
Foto: picture-alliance/dpa
Destino em aberto
O futuro da Hagia Sophia é incerto. Até agora, somente o partido nacionalista MHP reivindica a transformação do museu em mesquita. Dois requerimentos seus já fracassaram no Parlamento. O governo turco não se manifesta sobre essa questão, aparentemente em reação a protestos internacionais. A Unesco também está preocupada: afinal, desde 1985 a Hagia Sophia é Patrimônio Cultural da Humanidade.