Livro da alemã Juli Zeh inspira nova série da MTV Brasil
3 de junho de 2013A primeira cena de A Menina Sem Qualidades mostra a protagonista Ana (Bianca Comparato). Ela se levanta, olha para frente e diz seu nome para uma sala de aula cheia. É seu primeiro dia na nova escola, e o professor quer saber mais sobre a nova aluna.
"Vocês adoram dizer na internet do que gostam e do que não gostam", diz o professor. Ana responde que não gosta di internet. "Curioso alguém da sua idade não se interessar pela internet", rebate o adulto, com ironia.
"A internet gira em torno de três temas: sexo, dinheiro e guerra. Eu não acho que novas ideias surjam de discursos livres e públicos. Não tenho nada contra a liberdade. Eu tenho preguiça da internet. Veja, clique, compre", reponde a menina, colocando o telespectador, assim, no mundo de Ana.
O diálogo é emblemático para apresentar a adaptação para a televisão do livro Spieltrieb (2004), da escritora alemã Juli Zeh, que no Brasil recebeu o nome de A Menina Sem Qualidades.
O projeto surgiu antes mesmo de o livro ser lançado no Brasil, quando o tradutor Marcelo Backes enviou para o diretor Felipe Hirsch uma versão em português da obra que ele acabara de traduzir. Ele sabia que o diretor iria gostar da história.
A ideia inicial era transformar o livro de Zeh em uma peça de teatro, mas o projeto se modificou e cresceu se tornando uma série com 12 episódios, atualmente no ar na MTV Brasil.
A série, orçada em 3 milhões de reais, quer surpreender a audiência falando com o público jovem sem julgamentos e pudores. Segundo a diretora-geral da MTV Brasil, Helena Bagnoli, o programa é um conteúdo mais sofisticado do que se encontra geralmente na TV aberta no Brasil.
Hirsch busca inspiração no cinema independente americano e nas modernas séries de televisão para criar um clima de ternura, intimidade e desespero. A trilha sonora descolada e as belas cenas falam de personagens com profundas cicatrizes sociais e morais.
Sentimento universal
No livro, a história se passa em uma escola na pequena Bonn, capital da antiga Alemanha Ocidental. Ali, dois adolescentes começam a desenvolver uma obsessiva dependência em uma relação de amizade que ultrapassa fronteiras e questiona moralidade, compaixão e previsibilidade.
Do bucolismo industrializado do coração da Europa, a história foi transferida para o bucolismo tropical e caótico da classe média de São Paulo. A cidade, no entanto, tem um papel secundário na série, que foca no isolamento de Ana e em suas relações em casa e principalmente na nova escola.
A escola é o universo social dos adolescentes, que podem construir personalidades e lidar com conflitos complexos em um mundo de adultos perdidos, onde os jovens são sobrecarregados com informação e comunicação via internet.
Enquanto no gigantesco mundo as vanguardas do que é bom ou mau se subvertem, no microcosmo da escola, tanto em Bonn como em São Paulo, desenvolve-se uma história vibrante.
Os personagens, que receberam o nome de Ana e Alex no Brasil, são considerados pós-niilistas: nem no "nada" eles acreditam. Para o diretor há uma forte crença nesse vazio, mas é algo que será revelado no decorrer da história. Eles manipulam os colegas mais frágeis e os professores da escola particular que estudam em São Paulo.
A série reflete sobre a falta de moral dos personagens, questionando valores e princípios da sociedade contemporânea, mas de maneira sutil, já que o que explode na tela são os sentimentos e certa frieza encantadora, principalmente na atuação convincente de Bianca Comparato como Ana.
Mesmo com 27 anos, a atriz não se intimidou em viver uma adolescente de 16. O que causa certo estranhamento no começo da série ganha vida no trabalho corporal da atriz, que consegue com versatilidade mostrar a complexidade da personagem, mesmo nas cenas de nudez ou sexo.
O livro capta uma condição contemporânea dos jovens, que várias partes do mundo hoje encontram problemas comuns em lidar com o dia a dia e com as pressões de um mundo contemporâneo onde a informação suprime o tempo – e muitas vezes a infância.
A sensação atual do presente foi transferida para a televisão. A série cresce nos seus momentos de silêncio e introspecção, ganhando força na ótima trilha sonora. No entanto, os diálogos soam, muitas vezes, bem resolvidos demais na boca dos jovens, o que pode criar certa artificialidade.
Processos radicais
A Menina Sem Qualidades mostra não só a descoberta de uma nova realidade, mas o poder que a juventude tem em adolescentes que são colocados, cedo e imaturamente, em contato com questões complexas e adultas.
Ana é uma menina inteligente, que parece não querer romper seu isolamento, até que Alex ingressa em sua turma. O jovem se aproxima e confere poder à garota, o que a convence a participar de uma perversa trama que inclui seduzir o professor Tristán, vivido pelo ator argentino Javier Drolas.
Para o diretor, o desejo do professor pela jovem transgride os padrões. O envolvimento dos dois quebra convenções e crenças da jovem. O personagem de Alex tem um uma visão extremamente pragmática do mundo, e é nesse mundo que sua crueldade funciona. O pragmatismo se torna mais importante que a visão amorosa do mundo.
Para Hirsch, o motor da série é o impacto que a história tem com qualquer um que entra em contato com ela. Ele acredita que a escritora radicalizou processos como o conflito de gerações, os juízos de valores e os padrões morais.
A trama foi adaptada para a TV por Hirsch, Marcelo Backes e Renata Melo. “O livro da Zeh permite um sobrevoo poético sobre essa geração. Não é algo caricatural, como são muitos programas de televisão que têm um olhar mercadológico sobre a juventude, pois precisam vender produtos associados a ela. Acho uma grande coragem botar outras texturas no ar”, conclui o diretor.