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"Lula tem tarefa de desconstruir armamentismo como panaceia"

2 de janeiro de 2023

Especialista diz que "fábrica de distorções da realidade" nos últimos anos levou brasileiro a acreditar em saídas milagrosas para violência. Em meio a cenário de "terra arrasada", petista tem enorme desafio pela frente.

Policial dispara em estacionamento vazio, ao lado de outros policiais
"A fábrica de distorções da realidade imposta ao Brasil nos últimos anos tem levado inúmeras pessoas a acreditarem na ideia de que armar o cidadão substitui a função das polícias e garante sua própria proteção", explica o especialista em política criminal Nelson Gomes de Sant'AnaFoto: Ueslei Marcelino/REUTERS

A segurança pública, sobretudo no que diz respeito à violência urbana, é uma preocupação já histórica no Brasil. Não à toa se tornou uma das principais pautas fomentadas para a atual polarização do país, valendo-se de temas como o punitivismo e o armamentismo, por exemplo.

Sob o governo de Jair Bolsonaro, promoveram-se saídas milagrosas para a criminalidade, que compõem o que se chama de populismo penal. Entre elas, o porte de armas.

"A fábrica de distorções da realidade imposta ao Brasil nos últimos anos tem levado inúmeras pessoas a acreditarem na ideia de que armar o cidadão substitui a função das polícias e garante sua própria proteção", explica o especialista em política criminal Nelson Gomes de Sant'Ana, em entrevista à DW Brasil.

"São inúmeras as evidências que indicam não haver relação entre possuir/portar uma arma e ampliar a proteção pessoal ou social. Na prática, armar o cidadão brasileiro tem produzido impactos negativos no âmbito da violência de gênero, escolar, política e comunitária. Trata-se, portanto, de mais uma falácia armamentista de desresponsabilização do Estado."

Sendo assim, o próximo governo de Luiz Inácio Lula da Silva terá um enorme desafio pela frente, avalia Sant'Ana. "A iniciar pela desconstrução da cultura punitivista e armamentista como panaceia para a segurança pública", afirma o especialista.

"A construção de uma política criminal que rompa a lógica superficial que divide o Brasil entre cidadãos de bem que devem ser protegidos versus inimigos que devem ser exterminados é um passo fundamental para a construção de uma cultura de paz."

Sant'Ana reconhece ser difícil pensar em uma agenda mínima num cenário "de terra arrasada" como o que está sendo deixado pela atual gestão, mas ele lista temas que devem estar na ordem do dia do próximo governo: desarmamento, redução de homicídios, proteção dos grupos socialmente vulneráveis, contenção de discursos de ódio, enfrentamento dos ataques à democracia e reativação de uma real política de direitos humanos.

Já neste domingo (01/01), logo após tomar posse, Lula assinou um decreto que revoga normas do governo Bolsonaro que facilitavam o acesso a armas de fogo e munição. Entre as medidas previstas no decreto está a suspensão de novos registros de armas de uso restrito por caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) e particulares e a redução dos limites para compra de armas e munições.

"Estamos revogando os criminosos decretos de ampliação de acesso a armas e munições que tanta insegurança e tanto mal causaram às famílias brasileiras. O Brasil não quer e não precisa de armas na mão do povo. O Brasil precisa de segurança, o Brasil precisa de livro, de educação e de cultura para que a gente possa ser um país mais justo", disse Lula.

DW Brasil: A violência é hoje uma das grandes preocupações do brasileiro, tendo sido uma das principais pautas fomentadas para polarização do país, como ser a favor ou contra o porte de armas. Como o governo Lula pode abrandar essa polarização?

Nelson Sant'Ana: A pauta da segurança pública, sobretudo a ligada à violência urbana, tem se constituído como uma preocupação histórica no Brasil. Nos últimos anos, percebe-se claramente a multiplicação de um "pânico moral" atualizado pela produção de medo e insegurança contínuos em nossa sociedade. Fomenta-se cotidianamente a ideia de que a violência está fora de controle, de que os crimes se multiplicam a cada dia, de que o tráfico de drogas é o principal inimigo interno dos nossos tempos e de que nossas leis são frágeis no combate à violência. Tudo isso tem vindo acompanhado de uma série de saídas caracterizadas pelo que chamamos de "populismo penal", ou seja, saídas milagrosas para a questão da violência e criminalidade no país.

O governo Lula tem um desafio enorme pela frente, a iniciar pela desconstrução da cultura punitivista e armamentista como panaceia para a segurança pública. A construção de uma política criminal que rompa a lógica superficial que divide o Brasil entre cidadãos de bem que devem ser protegidos versus inimigos que devem ser exterminados é um passo fundamental para a construção de uma cultura de paz. O desafio segue, ainda, pela articulação em busca do que chamamos de segurança cidadã, a qual passa pelo fortalecimento das agências de segurança sem prejuízo da proteção e garantia dos direitos humanos.

É difícil pensar em uma agenda mínima em um cenário de terra arrasada como o que está sendo deixado pela atual gestão. De toda forma, o desarmamento, a redução de homicídios, a proteção dos grupos socialmente vulneráveis, a contenção de discursos de ódio e o enfrentamento dos ataques à democracia deverão estar na ordem do dia do próximo governo. A reativação de uma real política de direitos humanos pode atuar como agente transversal de todas essas pautas e muitas outras. Nesse sentido, a criação e fortalecimento dos já existentes Centros de Referência em Direitos Humanos ao longo de todo o país pode ser um ponto de partida significativo para essa retomada.

Qual o impacto de discursos como "o Brasil é o país da impunidade" e "devemos armar o cidadão de bem para sua própria proteção"?

A banalização de tais discursos promove uma verdadeira distorção da realidade. O Brasil é o terceiro país que mais encarcera no mundo. Atualmente são cerca de 800 mil pessoas presas, sendo 30% delas na condição de provisórias, ou seja, aguardando julgamento. O país prende muito, de modo seletivo e com baixíssima eficácia quando do retorno das pessoas presas ao convívio social, fato que pode ser explicado pela incrível taxa de 70% de reincidência criminal alertada em diversos estudos científicos nacionais. Desse modo, não há que se falar em impunidade para jovens, negros, pouco escolarizados e periféricos, público preferencial da política criminal brasileira e perfil majoritário da população encarcerada no país.

A fábrica de distorções da realidade imposta ao Brasil nos últimos anos tem levado inúmeras pessoas a acreditarem na ideia de que armar o cidadão substitui a função das polícias e garante sua própria proteção. São inúmeras as evidências que indicam não haver relação entre possuir/portar uma arma e ampliar a proteção pessoal ou social. Na prática, armar o cidadão brasileiro tem produzido impactos negativos no âmbito da violência de gênero, escolar, política e comunitária. Trata-se, portanto, de mais uma falácia armamentista de desresponsabilização do Estado no tocante à segurança pública.

O Estatuto do Desarmamento defendido por Lula é uma promessa de campanha possível?

O que se observou nos últimos quatro anos no país em termos de distribuição e circulação de armas é assombroso. Uma política inconsequente de liberação de armas como panaceia na segurança pública. Por óbvio, as consequências têm sido contrárias ao que se divulgava com inúmeros incidentes e episódios fatais envolvendo as armas de fogo no Brasil, sem redução evidente das taxas de criminalidade. Na atual conjuntura, retomar os processos de desarmamento da população é um imperativo civilizatório.

Por outro lado, entende-se que o novo governo enfrentará diversas resistências a um possível plano de desarmamento, seja por parte das empresas que nunca lucraram tanto com esse mercado, do novo Congresso Nacional ou de uma parte significativa da população que foi levada a acreditar na circulação e posse de armas como sinônimo de segurança individual ou coletiva.

O Brasil aprovou sua primeira Polícia Nacional de Segurança Pública somente em 2018, e o grosso dos gastos com o setor é dos estados. Nesse contexto, qual é o papel do governo federal?

O governo federal possui um papel importantíssimo na formulação de políticas de âmbito nacional, a partir do diálogo com os entes federativos. Além do papel já desempenhado pelas polícias Federal, Rodoviária Federal e do Departamento Penitenciário Nacional, o governo federal possui obrigações no fomento a políticas nacionais de enfrentamento a diferentes modalidades de violência contra mulheres, crianças e adolescentes, indígenas e idosos, por exemplo. As diretrizes para o enfrentamento à tortura, à LGBTfobia, à violência de gênero, ao racismo, aos crimes transnacionais e às chamadas facções criminosas são exemplos de desafios a serem capitaneados pela gestão federal.

Nesse sentido, a política de drogas necessita de atenção especial do governo federal, seja por seu histórico insucesso no tocante à redução de criminalidade, seja pelas consequências perversas que têm provocado em nossa sociedade, como o hiperencarceramento de homens e mulheres, o extermínio da juventude negra e o estabelecimento de territórios de não direito, marcados por chacinas e frequentes violações aos direitos humanos perpetradas, não raras vezes, por ações de segurança pública.

Além disso, considerando o que temos observado no Brasil, é muito importante que o novo governo federal atente para o crescente aumento de manifestações e crimes contra a democracia, sob argumento equivocado da liberdade de expressão. A defesa da democracia passa pelo enfrentamento dos discursos de ódio e, também, por políticas de segurança pública que previnam e enfrentem os arroubos voltados para a quebra da institucionalidade e rompimento com o Estado democrático de direito. O planejamento e a execução de ações que atentem contra a democracia sem a imediata e proporcional reação do governo federal em diálogo com os governos estaduais favorece a germinação e naturalização de ações fascistas e terroristas entre nós.

No Brasil, temos a polícia que mais mata, mas também a que mais morre durante operações. Tendo em vista esse dado, medidas como o uso de câmeras em uniformes policiais são eficazes?

Experiências como as recentemente implantadas pelo estado de São Paulo nos levam a afirmar que sim, as câmeras em uniformes têm colaborado diretamente não só para a redução da letalidade policial, como também para maior segurança do próprio policial em exercício profissional. No âmbito da segurança pública, assim como em qualquer política pública, a transparência das ações é bem-vinda e necessária. O ponto a ser problematizado reside no fato de que as câmeras não podem ser consideradas a tábua de salvação da segurança pública. Muitas das mortes de policiais e demais cidadãos tem sua origem na própria política de segurança pública, seja pela exposição ao risco, pela leniência com o autoritarismo e violência de Estado ou, ainda, pela noção distorcida de que uma boa polícia é uma polícia que mata em demasia.

Nesse sentido, a política de drogas brasileira possui relação direta com o matar e morrer na segurança pública, dado o seu caráter classista, racista e elevado de contradições que tem culminado em prisões e mortes reiteradas dos mesmos: os jovens, pretos e periféricos. Como dizia Eduardo Galeano, "os ninguéns, que custam menos que a bala que os mata".  Não são as câmeras que impedem as chacinas, as execuções e as ações milicianas, por exemplo. Decerto, tendem a impor freios à parte da violência de Estado, mas não operam nas estruturas da cultura de segurança pública brasileira.

O governo do PT tem no seu histórico o maior encarceramento em massa devido à lei de drogas de 2006, que acabou com a pena de prisão para usuários e aumentou a punição para traficantes, mas, na prática, não cumpriu a meta de diferenciá-los. O senhor pode explicar a problemática gerada por essa legislação e como Lula pode aprender com os erros do passado para enfrentar a superlotação das cadeias?

A política de drogas brasileira, a depender do ponto de vista, pode ser avaliada como um grande sucesso ou um enorme fracasso. É fracassada porque não logra êxito em seus objetivos formais, ou seja, redução de criminalidade, arrefecimento da violência e enfraquecimento do tráfico de drogas. O Brasil saltou de cerca de 400.000 pessoas encarceradas em 2006, ano da chamada "Lei de Drogas", para quase 800.000 em 2022. Os crimes ligados ao tráfico de drogas estão entre os que mais encarceram atualmente no Brasil. No caso das mulheres a situação é ainda mais grave, visto que cerca de 56% das presas no Brasil estão nessa condição em função dos chamados "crimes de drogas". Nada disso tem gerado impactos significativos nas estruturas de produção, circulação e comércio de drogas no Brasil.

Resta muito claro que a chamada "guerra às drogas" é uma grande falácia e que seu principal "sucesso" tem sido o hiperencarceramento e mortes de pessoas com raça, classe, território, escolaridade e geração muito bem definidos: os mais vulneráveis. Posto isso, o desafio para o próximo governo federal é compreender que o avanço nas políticas sociais não pode vir desacompanhado de uma profunda reflexão e reforma da política criminal brasileira. A preocupação com os mais pobres deve estar pautada no combate à fome, na promoção da saúde, na geração de renda, de modo associado ao enfrentamento do punitivismo exacerbado, do encarceramento em massa e à revisão da política de drogas, dado o seu caráter seletivo e necropolítico. 

Além do salto no encarceramento, como eram as demais principais políticas de segurança pública nos governos do PT? E por que essa pauta se tornou cara às pessoas que votaram em Bolsonaro?

Historicamente, o Brasil foi construído a partir de alicerces políticos como o racismo, a desigualdade social e a violência. Os marcadores de raça, classe e território constituíram estruturalmente a política criminal brasileira, não sendo coincidência o fato de pobres, negros e periféricos serem o público alvo principal das agências de segurança pública e do sistema prisional. Os governos do Partido dos Trabalhadores acertaram muito no investimento em direitos humanos, políticas sociais, educacionais, de enfrentamento do racismo e da violência de gênero. Isso é louvável, mas não foi suficiente para barrar os traços autoritários, racistas e classistas da política criminal vigente no país. Nunca tivemos tantas políticas de inclusão e, ao mesmo tempo, nunca se encarcerou tanto.

Apesar do hiperencarceramento e da política de morte já presente no país, o governo de Jair Bolsonaro se elegeu a partir de plataformas de campanha que propunham maior punitivismo, maior "liberdade" para as polícias e mais rigor no enfrentamento do crime organizado no país. Tudo isso associado a campanhas em favor do armamento da população como estratégia de fortalecimento da segurança individual e coletiva. Infelizmente a segurança pública desejada por boa parte da população brasileira se confunde com uma política de extermínio, desprezo ao devido processo legal e crença na prisão como panaceia. Passados quatro anos, o governo de Jair Bolsonaro se encerra marcado pelo sucateamento das políticas de enfrentamento da violência contra as mulheres, crianças e adolescentes, avanço significativo de facções e milícias em diversas regiões do país, proliferação de discursos de ódio contra minorias, aumento de perseguição e homicídios de defensores de direitos humanos, além da escalada de crimes contra o Estado democrático de direito.

Quais podem ser as principais políticas públicas do governo federal para combater o crime organizado e, sobretudo, para gerar mais sensação de segurança na sociedade brasileira?

O próximo governo federal herdará um cenário muito negativo no campo da segurança pública. A recuperação de diversas políticas ligadas à promoção de direitos humanos, à prevenção e combate à tortura, à proteção de mulheres, crianças e adolescentes, à redução de homicídios e ao desarmamento da população constam entre os principais desafios do governo Lula. A reconstrução de um país como o Brasil passa também pela revisão da Política de Segurança Pública e suas mazelas estruturais, como o racismo institucional, a criminalização da pobreza, a seletividade penal e o encarceramento em massa.

Outro desafio importante é o retorno da participação popular e instâncias de controle social junto à segurança pública. Dialogar com a população sobre quais modelos de política criminal, polícias e prisões são desejadas e necessárias para nossa sociedade é ponto fundamental para frear os abusos de Estado e avançar em direção à chamada segurança cidadã. De igual modo, retomar o diálogo com os trabalhadores das forças de segurança é tarefa mais que urgente, visto que a ideologia da extrema direita parece ter se entranhado de modo significativo em boa parte das fileiras policiais.

A margem de manobra para Lula inovar em segurança pública será estreita. A bancada de policiais e militares cresceu, e o novo Congresso está mais à direita. Isso pode causar resistência ao governo Lula e problemas de governabilidade no âmbito da segurança pública?

Não há indícios de que o próximo Congresso Nacional será mais progressista que o atual. O cenário exigirá do governo Lula habilidade política e um diálogo intenso com o parlamento, sobretudo com vistas à superação de pautas conservadoras e autoritárias. É possível que haja resistência a propostas progressistas no âmbito da segurança, mas não podemos esquecer que Lula é um político experiente, eleito por uma frente ampla de partidos e movimentos sociais e, principalmente, com uma forte base política e massivo apoio popular.

As diretrizes de programa de Lula falam em priorizar a "prevenção, a investigação e o processamento de crimes e violências contra mulheres, juventude negra e população LGBTQIA+". Que tipo de política pública executável pelo próximo governo poderia alcançar esse objetivo?

Certamente uma política que se paute pela defesa e promoção de direitos humanos como marco civilizatório. Primeiramente, retomarmos as políticas de prevenção às violências por meio de campanhas, educação sobre direitos humanos e produção de conhecimento científico sobre o tema. É central produzir subjetividades, mentes e corações que valorizem a diversidade e não se pautem pelo ódio à diferença. Dialogar com os coletivos e movimentos sociais e escutar deles próprios as principais sugestões de prevenção às violências que têm sofrido é mais que necessário. A real participação popular é a chave para o fortalecimento das políticas públicas e a política de segurança não pode ser tomada como exceção.

Para além da prevenção, o enfrentamento dos crimes de ódio, sobretudo contra mulheres, negros e LGBTQIA+ é urgente. É imprescindível o reavivamento dos órgãos e canais de denúncia, a reativação das instâncias de acolhimento e suporte a vítimas da violência, o fortalecimento da rede de atendimento e proteção de pessoas violentadas ou sob ameaça. Em gestões anteriores, os Centros de Referência em Direitos Humanos espalhados pelo país colaboraram diretamente com essa demanda, mas infelizmente não foram priorizados nos últimos anos. Além do exposto, o investimento em inteligência e repressão imediata a este tipo de crime salva vidas. A sensibilização das forças de segurança pública para pautas como o racismo, a LGBTfobia e a misoginia é peça importantíssima no tabuleiro de combate à violência contra esses grupos.

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Nelson Gomes de Sant'Ana é doutor em Psicologia pela UFRN, professor do Departamento de Ciências Jurídicas, vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFPB e desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão ligadas à psicologia jurídica, criminologia crítica e sistema prisional.

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