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"Música barata e sem nenhum valor": samba e discriminação

30 de novembro de 2016

Com raízes negras e pobres, gênero foi menosprezado, desqualificado como música menor e até perseguido pelas autoridades. Demorou para que ganhasse um lugar cativo no imaginário sobre o Brasil.

Samba ainda vive nas comunidades pobres do Rio. Na foto, crianças participam de ensaio em escola de samba do Cantagalo Foto: Getty Images/M. Tama

"Madame diz que a raça não melhora / Que a vida piora por causa do samba / Madame diz o que samba tem pecado / Que o samba é coitado e devia acabar  / Madame diz que o samba tem cachaça / mistura de raça mistura de cor / Madame diz que o samba democrata / é música barata sem nenhum valor / Vamos acabar com o samba / madame não gosta que ninguém sambe / Vive dizendo que samba é vexame / Pra que discutir com madame?"

Perseguição, discriminação, desqualificação. Quando Janet de Almeida gravou a canção P'ra que discutir com madame, composição sua e de Haroldo Barbosa, em 1945, o samba já era trilha sonora oficial do carnaval, reconhecido dentro e fora do país, e símbolo da identidade nacional. Para chegar até aí, porém, foi preciso vencer a resistência e o preconceito de boa parte da elite nacional, preconceito que, mesmo hoje, cem anos depois de Pelo telefone, primeira canção "oficial" de samba, ainda não foi de todo eliminado.

No começo do século 20, quando o samba surgiu nas rodas dos bairros centrais do Rio de Janeiro, a elite brasileira, encantada com a Belle Époque europeia, acalentava um sonho: o de livrar-se do "atraso" do país. No Rio, então a capital federal, isso se traduzia em ações de modernização e higienização, comandadas pelo prefeito Pereira Passos a partir de 1903.

Passos construiu praças, abriu avenidas para dar lugar ao automóvel e destruiu os cortiços existentes no centro. "Até Pereira Passos, o centro do Rio de Janeiro misturava de tudo: comércio; indústrias de pequeno porte; repartições públicas; residências milionárias ao lado dos mais pobres cortiços", diz o antropólogo Hermano Vianna em O mistério do samba.

A partir daí, o centro se tornou lugar de trabalho, e a cidade começou a se tornar mais segregada. "Modernizar, para a elite dos primeiros anos do século 20, era retirar do centro da cidade todos os traços de africanidade e de pobreza, empurrando a população mais humilde para as favelas e subúrbios", escreve o jornalista André Diniz em seu Almanaque do samba.

Como a elite via os negros e "mestiços" da sociedade, recém-libertos pela Lei Áurea, em 1888, como a razão do atraso do país, estava aberta a perseguição às manifestações culturais ligadas a esses grupos. Na época, quem andasse com violão ou pandeiro nas ruas corria o risco de ser preso pela polícia, como aconteceu com alguns sambistas de primeira hora, como Ismael Silva e João da Baiana. Os dois passaram um tempo atrás das grades simplesmente por estarem portando seus instrumentos.

Roda de samba nos dias atuais no Rio de JaneiroFoto: Getty Images/AFP/C. Simon

A chamada Lei de Vadiagem, de 1890, previa a condenação de todo aquele que "deixar de exercitar profissão, ofício ou qualquer mister em que ganhe a vida [...]", e foi usada para reprimir manifestações como as rodas de samba e festas de candomblé. Surge aí o estereótipo do malandro, ligado à esperteza, mas também "sinônimo de vagabundagem, vadiagem, vida marginal", segundo Nei Lopes e Luiz Antônio Simas, autores do Dicionário da história social do samba, vencedor do Prêmio Jabuti de 2016 na categoria não ficção.

Em 1922, o grupo Os oito batutas, formado por Pixinguinha, Donga e mais seis músicos, fez uma turnê internacional, a primeira de um grupo negro e popular, passando seis meses em Paris. Foi um rebuliço. Em texto da Gazeta de Notícias de 22 de janeiro de 1922, o jornalista Benjamin Costallat comenta o fato: "Foi um verdadeiro escândalo, quando, há uns quatro anos, os 'oito batutas' apareceram. Eram músicos brasileiros que vinham cantar coisas brasileiras. [...] Segundo os descontentes, era uma desmoralização para o Brasil ter na principal artéria de sua capital uma orquestra de negros".

Nesse período, as manifestações populares eram, quando muito, toleradas ou estudadas como folclore. "Era um tempo em que a ideia que popularmente se tinha de 'cultura' estava atrelada às formas eruditas de manifestações artísticas, literárias ou técnicas. E o samba, evidentemente, estava fora desse espectro", escrevem Nei Lopes e Luiz Antônio Simas.

Não havia, porém, só preconceito, mas também um fascínio pelo universo da cultura popular. Alguns membros da elite organizavam saraus que contavam com a presença de músicos negros, por exemplo. Em O mistério do samba, Vianna escreve sobre um encontro entre os sambistas Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira com os intelectuais Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, o promotor Prudente de Moraes Neto, os compositores clássicos Heitor Villa-Lobos e Luciano Gallet. Aos poucos, as classes mais abastadas demonstravam cada vez mais abertura para o samba.

Os 100 anos do Samba

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Um dos grandes fatores que permitiu isso foi o lançamento, em 1933, de Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre. O sociólogo foi o primeiro autor a colocar a mistura de raças do Brasil como algo positivo – antes dele, a miscigenação era vista como degradante, e a elite ansiava por um embranquecimento da população. O livro de Freyre foi aclamado, e se tornou símbolo de uma mudança de mentalidade, em que a mestiçagem passa a ser celebrada. Surge aí a ideia de que o Brasil é uma democracia racial, ideia contestada por muitos pesquisadores e representantes do movimento negro hoje, por mascarar o racismo existente no país.

À época, intelectuais, políticos e membros da elite buscavam símbolos que pudessem representar o país, e a mestiçagem e o samba, agora vistos como algo original e positivo, caíram como uma luva. Com o advento do rádio e dos fonógrafos, o samba já vinha conquistando o coração dos brasileiros. Aos poucos, o ritmo foi também dominando o carnaval carioca, antes povoado por diversos estilos. A popularidade tornou o samba o candidato ideal para, a partir dos anos 1930, com o governo Vargas, deixar de ter status apenas regional e passar a ser símbolo nacional, usado como parte da propaganda nacionalista para unificar o país.

Hoje, o samba tem lugar cativo no imaginário sobre o Brasil. Outras manifestações populares, porém, não têm a mesma sorte. É o caso do funk, que também teve seus bailes reprimidos pela polícia e é estigmatizado pela sociedade. Se fosse feito hoje, talvez o clássico P'ra que discutir com madame, regravado por nomes como João Gilberto, Diogo Nogueira e Elza Soares, pudesse ser um funk, mostrando que o preconceito não é tão facilmente eliminado.