Gaby Reucher / Augusto Valente10 de setembro de 2016
Da Revolução Francesa à "Primavera Árabe", o festival de música em Bonn aborda diferentes facetas dos ideais de liberdade e igualdade. Quem nasce primeiro: a revolução na sociedade ou a arte da revolução?
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Ao conversar com alguns compositores sobre a assim chamada "Primavera Árabe", a pianista Seda Röder se surpreendeu. "Eu achava que, com as minhas raízes culturais turcas, eu tivesse uma noção dessa revolução." Na verdade, ela admite, é difícil entender esse processo no Oriente Médio, assim como se orientar em meio à avalanche de informações. "Talvez a música ajude", arrisca.
Para seu recital multimídia no Beethovenfest, Röder pediu a artistas de cinco países que expressassem em música o que a "Primavera Árabe" significa para eles.
O egípcio Amr Okba acha que tudo está ainda pior hoje do que antes da revolta popular de 2011. Sua obra Facebook critica o crescente radicalismo na sociedade e a influência das redes sociais. O compositor também vê criticamente o papel desempenhado pelos Estados Unidos no Egito.
Röder descreve assim a peça de Okba: "Eu toco no piano um tema em acordes que vai se intensificando cada vez mais. Mas os acordes estão sendo sempre interrompidos bruscamente, e tudo volta ao começo. Quando se tem finalmente a sensação de que o tema vai continuar, soa o hino nacional americano." Os demais compositores no programa vêm do Bahrein, Síria, Tunísia e Turquia.
Ascensão da burguesia
Durante quatro semanas, a partir desta sexta-feira (09/09), a influência das revoluções sociais sobre a música é o tema do festival Beethovenfest, em Bonn.
As revoluções e suas músicas
Quer americana, francesa, russa ou árabe, por convicção ou obrigação, há séculos os compositores criam obras destinadas a apoiar ou comentar as revoluções. Mas também há espaço para vozes críticas.
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Melodias e ritmos revolucionários
Compositores de diversos países e épocas têm feito música inspirada por ideias e eventos revolucionários. A Revolução Francesa de 1789, em especial, deixou forte marca em numerosas peças musicais. Porém outros levantes também tiveram sua trilha sonora.
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Canto da independência americana
Até hoje, "Yankee Doodle" é uma das melodias populares mais conhecidas dos Estados Unidos. Ela era a canção dos revolucionários que almejavam se libertar da dominação britânica – coisa que alcançariam em 1776. Thomas Jefferson elaborou a Declaração de Independência, enfatizando a liberdade e igualdade de todos os seres humanos. E a Revolução Francesa abraçou essas ideias.
Músico de Napoleão
Etienne-Nicolas Méhul foi o compositor revolucionário por excelência. A ele Napoleão Bonaparte encomendou um hino famoso na virada do século 18 para o 19, "Le chant du départ" (O canto da partida). Porém o líder esnobou a "Missa solene" de Méhul para sua coroação como imperador. Ao compositor francês fica o mérito de ter inspirado Beethoven na "Quinta sinfonia", apelidada "Do Destino".
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Ópera de salvação
Também o italiano Luigi Cherubini foi contagiado pelo espírito da revolução. Em 1800 sua "ópera de salvação" "Os dois dias, ou O aguadeiro" fez sucesso estrondoso. Esse gênero operístico trata do resgate de uma personagem injustamente perseguida. Aqui, o vendedor de água salva um conde de pagar com a vida por suas ideias progressistas. O obra foi fonte de inspiração para "Fidelio" de Beethoven.
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Fascínio da "Eroica"
Em 1803 a "Sinfonia nº 3" de Beethoven, apelidada por ele "Eroica", rompia com todas as convenções do gênero. Mais longa e dramática do que qualquer obra até então, ela nasceu como verdadeira "música da revolução", em honra a Napoleão. No entanto Beethoven retirou a dedicatória quando o líder francês se fez coroar imperador – traindo, assim, os ideais de liberdade, igualdade, fraternidade.
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Homenagem à Revolução Russa
Sergei Prokofiev compôs em 1937 sua "Cantata pelo 20º aniversário da Revolução de Outubro". Além de um total de 500 instrumentistas e coristas, ela inclui tiros de canhão, metralhadora e sino de alarme. A bombástica obra sobre textos de Marx, Engels e Lenin caiu, no entanto, em desagrado com o ditador Stalin, só sendo estreada em 1966, em versão reduzida.
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Déspota humilhado
O poeta e libertário Lord Byron escreveu em 1814 uma "Ode" à abdicação de Napoleão, em que zombava do imperador. Em 1942, sob a impressão do domínio nazista, Arnold Schoenberg musicou o poema para recitante, piano e quarteto de cordas. Um crítico musical contemporâneo apontou paralelos entre Bonaparte e Hitler – que o compositor politicamente engajado não contradisse.
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Beatles, 1968 e "Revolution"
A primeira canção que os Beatles gravaram para o "álbum branco" foi "Revolution". John Lennon a compôs em 1968, durante uma estada na Índia, inspirado nos protestos estudantis de Paris, na Guerra do Vietnã e no atentado contra Martin Luther King. A "Revolução" dos Beatles, porém, é pacífica, sem tiros nem extremistas violentos.
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"Os pensadores da Revolução Francesa já sabiam que se pode manipular as pessoas com música", lembra o musicólogo Stefan Aufenanger. "Em manifestações de massa e festas revolucionárias, precisa-se de música. Ela tem que ser simples, compreensível e entrar fácil no ouvido."
Enquanto a música profana clássica tinha seu posto tradicional nas cortes da nobreza, nos anos anteriores à Revolução Francesa a burguesia ia se fortalecendo. Isso se fez notar sobretudo na ópera, aponta Aufenanger. Estavam na moda os libretos trazendo ou personagens modernas, burguesas, ou da Grécia antiga, em que se tematizava o fim da tirania. Mais tarde os próprios temas da Revolução Francesa ganhariam o palco.
No centro, a Eroica de Beethoven
Ludwig van Beethoven (1770-1827) também era um paladino dos ideais de liberdade, igualdade, fraternidade. Sua Sinfonia nº 3, Eroica tem conexões diretas com a Revolução Francesa. Originalmente o músico natural de Bonn a dedicara a Napoleão Bonaparte, mas retirou a homenagem decepcionado, depois que o primeiro-cônsul se proclamou imperador da França.
Também do ponto de vista musical, a Eroica merece o rótulo de revolucionária. Em seguida às ousadias harmônicas e formais do movimento inicial, o segundo é uma lenta marcha fúnebre – algo que jamais se vira antes, numa sinfonia. Com 40 a 60 minutos de duração, ela também é a obra do gênero mais longa composta até então.
Como obra central do Festival Beethoven em 2016, a Sinfonia nº 3 será apresentada em diversas versões – do original orquestral a um trio de jazz, passando pela transcrição de Franz Liszt para piano solo.
O forte caráter emocional de formas musicais como a marcha fúnebre e os enormes contrastes dessa "música da revolução" também marcaram gerações subsequentes de compositores. "Beethoven influenciou Hector Berlioz nas mudanças dinâmicas, também na instrumentação opulenta, além do clima musical sombrio."
Essa tradição de adotar recursos sonoros bombásticos se estende, por exemplo, até o russo Sergei Prokofiev (1891-1953), que em 1936 empregará até metralhadoras em sua Cantata pelo 20º aniversário da Revolução de Outubro, a fim de representar com um máximo de realismo as batalhas históricas.
Música das revoluções, revoluções da música
Mas não é apenas no contexto das revoluções políticas que a música revolucionária nasce. Certas obras fazem jus a esse título por os seus autores terem inventado novas sonoridades, ritmos ou harmonias, ou por ampliarem as possibilidades da produção através de novas técnicas ou de meios eletrônicos.
No início do século 20, em plena época de inovações tecnológicas, o russo Alexander Scriabin (1872-1915) sonhava com uma "obra de arte total" integrando música, texto, dança, cores e cheiros. Após a Primeira Guerra Mundial, Arnold Schoenberg (1874-1951) queria romper com o passado recente, também musicalmente. Para tal, desenvolveu o método dodecafônico de organização dos sons, em substituição ao tradicional sistema total.
Luigi Nono (1924-1990) e Karlheinz Stockhausen (1928-2007) igualmente entraram para a história da música da música como revolucionários, a partir de seus ousados experimentos na década de 1950. Entre outras inovações, ambos usaram sons eletrônicos e gravações magnéticas como "instrumentos" adicionais.
O romeno György Ligeti (1923-2006), por sua vez, protagonizou uma espécie de contrarrevolução nos anos 60 – em pleno regime dos rigores ("cacofonias", diriam alguns) da composição serial na Europa –, ao ousar propor obras orquestrais iridescentes, quase impressionistas, verdadeiros monstros de beleza sonora.
Sob a direção de Nike Wagner, bisneta do – revolucionário – compositor Richard Wagner, tanto a música das revoluções como as revoluções na música têm espaço na edição de 2016 do Beethovenfest.
Lado a lado com a Eroica, constam do programa, entre muitas outras, La fabricca illuminata, de Nono, e Lontano, de Ligeti. E "Songs of Spring", o recital com o piano de Seda Röder, violino, cantora, recitante e vídeo, sobre a "Primavera Árabe" – uma revolução que, para muitos, ainda está longe de terminar.
Beethoven: de revolucionário a ícone pop
Poucos compositores foram tantas vezes modelo para artistas plásticos quanto Beethoven. Desde retratos de contemporâneos seus até a pop art de Warhol, as inúmeras visões do músico testemunham uma popularidade universal.
Foto: picture alliance/H. Lohmeyer/Joker
Cabeleira carismática
Olhar sério, expressão ligeiramente severa, juba de leão: poucos compositores ostentam uma imagem tão popular como a do alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827). <br>No entanto, foram sobretudo os retratos do fim de vida que fixaram essa imagem de artista revolucionário, combativo e difícil. <br><br>
Foto: AP
Conquistando Viena
Nesta miniatura de 1803, da autoria de Christian Hornemann, o jovem músico dá uma impressão enérgica, sublinhada pela ponta de um sorriso. Na época, Beethoven acabara de angariar o apoio de alguns dos mais influentes mecenas da nobreza vienense.
Visita ao príncipe
Até ambos se desentenderem, um dos primeiros benfeitores do compositor foi o príncipe Carl von Lichnowsky. Datado de 1900, o quadro "Beethoven toca na casa de Lichnowsky", de Julius Schmid, parece já antecipar a desavença entre o nobre e o voluntarioso artista.
Foto: picture-alliance/akg-images
Orgulho e autoconfiança
Em 1812, na cidade de Teplice, Boêmia (hoje República Tcheca), Beethoven se encontrou com Johann Wolfgang von Goethe. É lá que ocorreu o lendário e escandaloso "passeio": enquanto o autor se curvava respeitosamente diante de um príncipe, o compositor passou direto, de cabeça erguida. Pelo menos foi assim que Carl Rohling imaginou a revolucionária cena, seis décadas após a morte do músico.
Foto: Wikipedia public domain
Música e revolução
Beethoven não trilhou apenas caminhos musicais inéditos, mas também se deixou inflamar pelas ideias da Revolução Francesa. Nesta pintura de 1804, Willibrord Joseph Mähler o retratou portando uma lira diante do Templo de Apolo. Seu gesto peremptório parece indicar o desejo de inovação.
Foto: picture-alliance/ dpa
Marca registrada
Não há dúvida: Ludwig van Beethoven foi um dos artistas mais populares de seu tempo. Prova disso são os relativamente numerosos retratos que chegaram até nós. Um dos mais conhecidos é este de 1820, em que Joseph Karl Stieler o apresenta com a partitura da "Missa Solene" na mão.
Foto: CC
Variante pop
Comparado a seus colegas pintores, Stieler retratou Beethoven de forma mais idealizada, não tanto realista. Mais tarde, o quadro a óleo serviria de modelo para gravuras, onde os contornos eram naturalmente enfatizados. E certamente não foi por acaso que o norte-americano Andy Warhol escolheu justamente esse retrato para suas manipulações no estilo da pop art.
Foto: AP/The Andy Warhol Museum
Motivo de street art
Também em Bonn, cidade natal do artista, há uma série de variações do quadro de Stieler. Seja como escultura em pedra, diante da Beethovenhalle, seja como afresco, ou – bem próximo à casa onde nasceu e que hoje é um museu – como grafite no muro de uma residência.
Foto: DW
Cada nota, uma luta
Só após a morte de Beethoven, em 1827, a posteridade ficou sabendo que a criação musical não era para ele uma tarefa simples. Relatos de contemporâneos que o vivenciaram no ato de compor influenciaram a imagem do maestro enredado na luta implacável e incondicional pela obra perfeita. Como neste quadro de Carl Schlösser, feito por volta de 1890.
Foto: picture-alliance / akg-images
Gênio e loucura
As geniais obras beethovenianas deixavam perplexos seus contemporâneos. Para as gerações subsequentes de compositores, por outro lado, elas se impuseram como modelo e parâmetro difícil de superar. Talvez por isso pareça quase demoníaca esta visão de Hermann Torggler, criada em 1902 a partir da máscara mortuária do compositor.
Foto: ullstein bild - Lombard
Ícone pop
Pouquíssimos compositores eruditos são tão conhecidos hoje no mundo inteiro como Ludwig van Beethoven – e não só graças à indefectível bagatela para piano "Para Elise"! A biografia do músico foi dramatizada várias vezes para o cinema, e até mesmo transformada em desenho animado (foto) e história em quadrinhos.