Antes mesmo da posse, presidente eleito visita Dilma e destaca importância da relação bilateral: "Se o Brasil vai bem, a Argentina vai bem." Situação na Venezuela aparece como diferença mais latente.
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A presidente Dilma Rousseff recebeu nesta sexta-feira (04/12), em Brasília, o presidente eleito da Argentina, Mauricio Macri. Antes mesmo da posse, marcada para 10 de dezembro, ele mostrou, com a visita, a importância do país vizinho para a economia argentina e reforçou as mudanças esperadas na linha política na era pós-Kirchner.
A simbologia do encontro é grande no momento em que o Brasil passa por um aprofundamento da crise política, um dia depois de o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, acatar o pedido de abertura do processo de impeachment contra Dilma. Mesmo sob a sombra do impeachment, nem a presidente nem Macri cogitaram cancelar o encontro.
"Queremos fortalecer as relações comerciais", afirmou Macri, depois de dizer que ambos os países estão sofrendo processos de recessão econômica. "Se o Brasil vai bem, a Argentina vai bem. Temos que trabalhar em conjunto 24 horas [por dia], aconteça o que acontecer em nossas realidades locais."
Macri destacou ainda que Dilma confirmou a participação em sua cerimônia de posse, em 10 de dezembro, em Buenos Aires, e que os dois já deverão se reunir na ocasião. Já a presidente brasileira convidou Macri para realizar, em breve, uma visita de Estado a Brasília e trazer uma comitiva maior – desta vez foram ao Brasil a futura chanceler argentina, Susana Malcorra; o chefe de gabinete, Marcos Peña, e o assessor de assuntos estratégicos, Fulvio Pompeo.
"Macri sabe que precisa de Brasília para poder crescer de forma efetiva. Por outro lado, a nossa crise econômica mostra que o modelo econômico está criando problemas para o Brasil", opina o cientista político Leonardo Paz Neves, do Ibmec/RJ. "Parece-me que Dilma está mais aberta neste momento a promover políticas mais liberais, a exemplo de Macri."
Novas perspectivas na relação bilateral
Durante a campanha eleitoral e após ser eleito, Macri deixou claro que iria realizar profundas mudanças na linha econômica e política seguida pela atual mandatária, Cristina Kirchner. Entre as principais inflexões estão impulsionar o Mercosul e o acordo de livre-comércio com a União Europeia, discutir sobre a suspensão da Venezuela do bloco sul-americano e reforçar o intercâmbio comercial, que vem perdendo força, entre Brasília e Buenos Aires.
O bloco sul-americano tem sido um fardo para o Brasil, que, em nome da integração regional, fica de mãos atadas para negociar acordos bilaterais. A Argentina é considerada um entrave para a costura de uma proposta única de livre-comércio com os europeus – situação, agora, que pode mudar com o liberal Macri à frente da Casa Rosada.
"Por um lado, o Brasil perde o 'álibi' argentino como desculpa a explicar a razão de as negociações com a UE estarem emperradas há 15 anos", afirma Marcos Troyjo, diretor do BRICLab da Universidade de Columbia. "O próprio Brasil terá que se apressar para fazer a lição de casa 'liberalizante' que sempre pareceu 'protelável', dada a ojeriza de Buenos Aires por acordos de comércio internacional."
Mudança de postura sobre Venezuela
Sobre a Venezuela, Macri afirmou que "há uma preocupação que cada um manifesta de sua maneira". "Mas, no fundo da questão, compartilhamos dos mesmos valores", completou.
Ele declarou, ainda, que reforçou junto a Dilma a posição argentina de pressionar o Mercosul para acionar a chamada "cláusula democrática" contra Caracas. O dois países deverão aguardar os desenvolvimentos das eleições parlamentares venezuelanas, neste domingo.
O Brasil é o maior parceiro econômico da Argentina. Com a crise em Buenos Aires, as exportações para o vizinho se tornaram irregulares, indo dos 3,88% do total brasileiro de 2002 aos 9,17% de 2010. Em 2000, elas correspondiam a 11,32% e, em 2014, caíram para quase a metade: 6,34%. Mesmo com a intensa relação comercial, os argentinos impõem restrições às importações do Brasil e de outros países do Mercosul.
Para Miguel Ángel de Dios, professor de direito econômico e comercial da Universidad del Salvador de Buenos Aires (Usal), Macri está interessado em estabelecer relações comerciais e políticas muito próximas com o Brasil. E o perfil de seu governo será de restabelecer as relações com países da região e, de preferência, com Brasília, além de privilegiar o Mercosul e o acordo com a União Europeia.
"Do ponto de vista político, a Argentina vai deixar de ser indiferente até com as questões internas e de direitos humanos nos países da região", afirma Ángel de Dios. "A tendência é que as diferenças sobre Venezuela e, eventualmente, Equador e Bolívia possam se aprofundar."
O fim da era Cristina Kirchner
Após 12 anos de kirchnerismo, a Argentina elege um novo presidente. Relembre a trajetória de Cristina Fernández de Kirchner, que deixa tanto problemas econômicos quanto avanços sociais como herança de seu governo.
Foto: Getty Images/AFP/F. Monteforte
Cristina Fernández, "relato" e dramaturgia
Em oito anos de governo, Cristina se destacou por seu estilo e a tendência ao drama – foi acusada, inclusive, de criar um "relato" próprio da realidade da Argentina. Neste ano, ela deixa a Casa Rosada, e a era Kirchner chega ao fim. Com uma maioria kirchnerista no Congresso, porém, Cristina promete seguir influenciando a vida política do país.
Foto: Getty Images/A.Pagni
A sucessora de Néstor Kirchner
Cristina começou sua carreira política em 1989, como deputada pela província de Santa Cruz. Conheceu Néstor Kirchner durante a militância peronista, em 1974, e os dois se casaram no ano seguinte. Ele foi presidente da Argentina de 2003 a 2007, ano em que a mulher ganhou as eleições para sucedê-lo. A morte de Néstor, em 27 de outubro de 2010, foi um duro golpe para Cristina e seus dois filhos.
Foto: D. Garcia/AFP/Getty Images
Laços estreitos com o Mercosul
Na foto, Cristina e o presidente da Bolívia, Evo Morales, vestem trajes típicos bolivianos durante uma cerimônia na Casa Rosada, sede da presidência em Buenos Aires. Ela sempre defendeu laços estreitos com os países vizinhos. Em 2013, anunciou que aceleraria "a reconstituição do Mercosul" e, no mesmo ano, disse que a espionagem dos EUA sobre o Brasil afetava a "dignidade" de toda a América do Sul.
Foto: Reuters/M. Brindicci
A reeleição
Em 2011, Cristina foi reeleita presidente da Argentina com 54,11% dos votos. Na foto, ela posa entre os dois filhos, Máximo e Florencia, em frente ao Congresso Nacional, em Buenos Aires, após tomar posse. Atualmente candidato a deputado, Máximo está sendo investigado sob suspeita de manter contas secretas nos Estados Unidos e Irã. Ele nega as acusações.
Foto: picture-alliance/dpa/C. de Luca
Um vice em apuros
Amado Boudou, então ministro da Economia, foi nomeado vice-presidente no segundo mandato de Cristina. A escolha foi mais tarde criticada, principalmente pelas polêmicas acusações que emergiram contra ele. O escândalo político conhecido como Ciccone, por exemplo, ligou Boudou à compra de uma falida empresa monopolista a fim de operar com o Estado na impressão de notas e documentos fiscais.
Foto: picture-alliance/dpa/S.Goya
A luta contra o "Clarín"
O debate sobre a concentração da mídia segue aberto na Argentina. Cristina Kirchner travou uma longa batalha contra o grupo argentino "Clarín", acusando-o de monopólio midiático. Ao mesmo tempo, foi criticada por estimular a criação de um grupo de "veículos viciados no governo", segundo apontou, em entrevista à DW, a jornalista Laura di Marco, autora de uma biografia não autorizada da presidente.
Foto: picture alliance/dpa Fotografia
Direitos humanos
Cristina deu continuidade às políticas de direitos humanos de Néstor: aprovou leis acerca do casamento gay e da transexualidade e apoiou a busca por crianças desaparecidas durante a ditadura militar argentina (1976-1983). Na foto, ela conversa com Estela de Carlotto, presidente da organização Abuelas de Plaza de Mayo. Seu neto, Guido, recuperou a verdadeira identidade ao ser encontrado em 2014.
Foto: picture-alliance/dpa
Discurso em rede nacional
A presidente está acostumada a falar em rede nacional – algo aplaudido por seus seguidores e criticado pela oposição. Ao se dirigir ao público, Cristina mantém um estilo sempre muito pessoal e, para muitos, carismático. "O kirchnerismo trouxe independência à Argentina", disse ela em um de seus discursos, em julho de 2015.
Foto: picture-alliance/dpa/L. La Valle
Falta de transparência
Em junho de 2015, Cristina enviou ao Congresso um projeto de lei para que alguns programas sociais sejam ajustados de tempos em tempos. Entre eles está o Benefício Universal por Filho (AUH, na sigla em espanhol), equivalente ao Bolsa Família. Esses avanços na área social, porém, acabam sendo ofuscados pela falta de transparência com os índices de pobreza, a alta inflação e o déficit fiscal.
Foto: Reuters/E. Marcarian
Argentina versus "fundos abutres"
A batalha contra os chamados "fundos abutres" segue no país. Em setembro de 2015, a ONU aprovou uma resolução, recomendada pela Argentina, que propõe a criação de um marco legal para a reestruturação da dívida soberana. O ministro da Economia, Axel Kicillof (dir.), comemorou a decisão como "um passo fundamental".
Foto: Leo La Valle/AFP/Getty Images
Cristina, papa e "Estado Islâmico"
Em setembro de 2014, o papa Francisco recebeu Cristina, sua compatriota, no Vaticano. Após um encontro privado com o pontífice, a presidente revelou ter sofrido ameaças do grupo extremista "Estado Islâmico" (EI) por conta de sua posição diplomática diante dos conflitos no Oriente Médio – ela é favorável à existência de dois Estados: o da Palestina e o de Israel.
Foto: picture-alliance/dpa
Incentivo à cultura
Em nível nacional, o governo Cristina Kirchner deu um impulso importante à realização de eventos culturais e artísticos, mas com um estilo claramente personalista. Na foto, a presidente argentina participa da inauguração do Centro Cultural Kirchner, em Buenos Aires, em maio de 2015. Na ocasião, ela classificou o local como o "mais importante centro cultural da América Latina".
Foto: Reuters/Argentine Presidency
Duas cirurgias
Em seu segundo mandato como presidente da Argentina, Cristina foi submetida a dois procedimentos cirúrgicos sérios: um para remover um tumor na tireoide, em janeiro de 2012, e outro para drenar um hematoma cerebral, em outubro de 2013. Ela teve boa recuperação em ambos os casos, mas precisou ficar afastada do trabalho por um curto período de tempo.
Foto: picture-alliance/dpa
Negócios com a Rússia
Cristina se reuniu com o presidente russo, Vladimir Putin, em abril de 2015, e do encontro pode ter saído muito mais que os acordos energéticos e econômicos firmados. Em ano eleitoral na Argentina, o gesto chegou a ser interpretado como um esforço da presidente para afastar o país de seu tradicional alinhamento com os Estados Unidos e a União Europeia e estimular uma aproximação com os Brics.
Foto: Reuters/A. Nemenov
Caso Nisman choca o país
A morte do promotor Alberto Nisman abalou a sociedade argentina e continua sem esclarecimento perante a Justiça. Ele foi encontrado morto em casa em 18 de janeiro de 2015, dias antes de divulgar um relatório polêmico contra a presidente. Nisman acusaria Cristina de ajudar a acobertar o pior ataque terrorista da história do país: o atentado a bomba à Associação Mutual Israelita Argentina, em 1994.
Foto: picture-alliance/AP Photo/Pisarenko
Sucessor da era Kirchner?
Daniel Scioli, da coligação Frente para a Vitória, é o candidato à presidência argentina capaz de dar continuidade ao programa político do kirchnerismo. Segundo especialistas, o governo deixa como herança para o próximo presidente graves problemas econômicos e estruturais, mas também avanços sociais e um aumento no nível de consumo da população.
Foto: Reuters/A.Marcarian
Adeus à figura que polariza
Com seu estilo autoritário e maternal, Cristina Kirchner polarizou a sociedade argentina. Esteve cercada de acusações de corrupção, e a insegurança jurídica cresceu durante seu governo. Por outro lado, deu impulso à cultura e aos direitos civis. Ao dizer adeus, Cristina deixa um legado complexo à próxima administração, e é improvável que se afaste totalmente da agenda política do país.