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PolíticaFrança

Macron recebe Lula com honras de chefe de Estado em Paris

17 de novembro de 2021

Desafeto de Bolsonaro, líder francês se reúne com ex-presidente no Palácio do Eliseu. Atual líder nas pesquisas e cumprindo agenda intensa na Europa, Lula diz em Paris que "o Brasil não se resume a seu atual governante".

Luiz Inácio Lula da Silva e Emmanuel Macron
"A razão da minha viagem é recuperar a confiança no Brasil", disse Lula antes de reunião com MacronFoto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi recebido nesta quarta-feira (17/10) pelo presidente francês, Emmanuel Macron. O encontro ocorreu no Palácio do Eliseu, a sede do governo francês, em Paris. Macron recebeu Lula pessoalmente na entrada do edifício ao lado de militares da Guarda Republicana francesa, um protocolo normalmente reservado a chefes de Estado estrangeiros.

Antes do encontro, Lula disse que pretendia discutir com Macron temas como "urgência climática" e "questões globais como a fome e a pobreza", além do futuro do acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul, assinado em 2019 e que no momento está totalmente travado, em grande parte por causa do avanço do desmatamento no Brasil sob Jair Bolsonaro e a resistência de Macron em ratificar o documento.

Lula defendeu que as nações envolvidas se sentem para reformular o acordo "depois de 2022, após os processos eleitorais em vários países".

Tanto a França quanto o Brasil vão passar por eleições presidenciais em 2022. Lula, no momento, é o favorito isolado para vencer o pleito no Brasil. Macron, por sua vez, busca a reeleição e também aparece em primeiro lugar nas pesquisas para o primeiro turno.

"Estou viajando para dizer ao mundo que o que o Brasil tem de melhor é o povo brasileiro. O Brasil não se resume a seu atual governante. Essa é a razão da minha viagem. Recuperar a confiança no Brasil", disse Lula antes do encontro.

Depois da reunião com Macron, Lula disse "que os líderes mundiais precisam sentar à mesa para dialogar e enfrentar esses desafios com uma governança global". "Dividimos preocupações como o avanço da extrema direita pelo mundo e as ameaças à democracia e aos direitos humanos. Agradeço pela cordial recepção."

Macron recebeu Lula ao lado de militares da Guarda Republicana francesa, um protocolo normalmente reservado a chefes estrangeirosFoto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

Em uma declaração oficial emitida após o encontro, o gabinete de Macron disse que Lula "compartilhou sua visão sobre o papel do Brasil no mundo, observando como, nos últimos três anos, o Brasil se apartou do sistema multilateral e de grandes acordos internacionais".

Contraste com Bolsonaro

A recepção amistosa de Macron e Lula foi encarado como um recado ao atual presidente brasileiro. No Twitter, o correspondente do jornal francês Le Monde no Brasil classificou a reunião como "uma bofetada em Jair Bolsonaro".

Nos últimos três anos, Bolsonaro travou um relacionamento extremamente hostil a Macron, e as relações entre Brasil e França se deterioram a um nível que não era visto desde o  início dos anos 1960, quando os dois países travaram uma disputa sobre direitos de pesca.

Em julho de 2019, Bolsonaro esnobou em Brasília o ministro das Relações Exteriores da França, Jean-Yves Le Drian, cancelando em cima da hora uma reunião - pouco depois, o brasileiro apareceu numa live cortando o cabelo. O "bolo" intencional não passou despercebido na França, e Bolsonaro justificou o gesto grosseiro afirmando que foi uma reação à agenda de Le Drian no Brasil que previa encontros com ONGs "que ferram" o Brasil.

"Dividimos preocupações como o avanço da extrema direita pelo mundo e as ameaças à democracia e aos direitos humanos. Agradeço pela cordial recepção", disse Lula após o encontroFoto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

No mês seguinte, o relacionamento se deteriorou ainda mais quando Macron começou a fazer objeções públicas ao Acordo entre a UE e o Merscosul, citando as intensas queimadas que castigavam a Amazônia e a agenda antiambiental de Bolsonaro. Macron ainda sugeriu que os países do G7 discutissem a destruição da floresta.

A posição do francês irritou membros do governo Bolsonaro e da família do presidente, que logo passaram a proferir insultos públicos contra Macron. As ofensas se intensificaram após Macron afirmar em nota que Bolsonaro "mentiu" sobre as garantias que havia dado sobre a preservação da Amazônia à época da assinatura do acordo.

Ainda em agosto de 2019, Bolsonaro endossou nas redes sociais um comentário sexista sobre a aparência da esposa de Macron, Brigitte. O ministro da Economia, Paulo Guedes, também repetiu a ofensa sexista em um evento com empresários. O então ministro da Educação, Abraham Weintraub, chamou Macron de "cretino" e "calhorda oportunista". O ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, por sua vez, fez um trocadilho com o nome do francês, chamando-o de "Mícron".

Macron respondeu publicamente ao insulto proferido contra sua esposa, afirmando que esperava que os brasileiros "tivessem logo um presidente à altura do cargo". "É triste, é triste para ele, primeiramente, e para os brasileiros", disse Macron.

O acordo entre o Mercosul e a UE se enfraqueceu ainda mais após outros países europeus como Irlanda, Austria e Holanda apresentarem objeções.

Uma relação tensa. Bolsonaro e seus ministros já ofenderam Macron publicamenteFoto: picture-alliance/J. Witt

Giro europeu

Lula passou por Paris como parte de um giro pela Europa, que começou pela Alemanha e que tem como objetivo reatar as relações com políticos do continente e oferecer um contraste com o isolado Bolsonaro, que em três anos de governo não construiu nenhum relacionamento significativo com as potências europeias e se destacou mais pelos ataques que fez a líderes do bloco.

Com uma agenda cheia, Lula travou reuniões amistosas com algumas figuras proeminentes do bloco europeu, como Olaf Scholz (o provável próximo chanceler federal da Alemanha) e Josep Borrell (chefe da diplomacia da UE). Os encontros de fato contrastaram com a recente viagem de Bolsonaro à Itália, na qual o atual presidente brasileiro se viu isolado e sem travar diálogos relevantes com figuras do bloco europeu.

Em quase três anos de governo, Bolsonaro também não fez nenhuma viagem exclusiva de Estado a um país europeu, no máximo participando de alguns encontros multilaterais no continente, tal o seu nível de isolamento entre as democracias europeias. Nesse ponto, a recepção com honrarias concedida por Macron a Lula nesta quarta-feira parece deixar explícito que a França já considera um futuro pós-Bolsonaro nas suas relações com o Brasil.

Durante sua Presidência (2003-2010), Lula travou relações amistosas com a França, especialmente com o ex-presidente Nikolas Sarkozy, com quem fechou diversos acordos bilionários na área militar. Em 2020, os dois se encontraram em Paris.

O petista também é próximo da atual prefeita de Paris, Anne Hidalgo, que também é candidata à Presidência da França em 2022, e o ex-presidente François Hollande. Os dois últimos são social-democratas como Lula. Já Macron é de centro-direita.

Na terça-feira, Lula ainda concedeu em Paris uma palestra durante a conferência sobre o Brasil no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po). A conferência "Qual o lugar do Brasil no mundo de amanhã?" foi organizada para marcar os dez anos do título de Doutor Honoris Causa que Lula recebeu do Sciences Po.

No evento, Lula fez críticas a Bolsonaro e citou realizações do seu antigo governo. "É inevitável comparar o Brasil que tínhamos há dez anos ao isolamento em que o país se encontra hoje", disse o ex-presidente.

Em Paris, Lula ainda se encontrou com o esquerdista Jean-Luc Mélenchon, líder do movimento França Insubmissa, e que também vai concorrer à Presidência em 2022.

Muitas das falas de Lula na última semana na Europa também contrastaram com declarações recentes de Bolsonaro. O ex-presidente descreveu aos europeus um quadro de penúria econômica e social no Brasil e também falou da importância da preservação do meio ambiente.

Bolsonaro, que no momento cumpre uma agenda no Oriente Médio, por outro lado disse aos seus anfitriões árabes que a "Amazônia não pega fogo" por ser "úmida". Já Paulo Guedes tentou pintar um quadro de crescimento da economia, que é desmentido por estatísticas do próprio governo.

Na terça-feira, enquanto Lula anunciava que iria se encontrar com Macron, Bolsonaro usou as redes sociais para divulgar um vídeo que mostra o luxo da sua suíte num hotel extravagante do Bahrein. Nas imagens, Bolsonaro afirmou que a conta estava sendo paga pelo rei local, Hamad bin Isa al-Khalifa, que é regularmente criticado no exterior por ter banido a imprensa livre no seu país em 2017 e por violações contra prisioneiros políticos.

"O mundo precisa de democracia"

Antes de se dirigir à capital francesa, Lula discursou e concedeu uma coletiva de imprensa no Parlamento Europeu, em Bruxelas, Bélgica. Na ocasião, ele também criticou Jair Bolsonaro, afirmando que o atual mandatário "representa uma peça importante da extrema direita mundial" que não passa de "uma cópia mal feita de Trump".

Lula ainda afirmou que as forças progressistas e social-democratas do mundo precisam se unir para derrotar a extrema direita. "O mundo precisa de democracia, de paz e não de guerra, precisa de livros e não de armas."

O evento no Parlamento Europeu foi organizado pela Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D), grupo que reúne eurodeputados social-democratas e que controla a segunda maior bancada da Casa.

"Nunca imaginei que o Brasil fosse eleger uma pessoa como Bolsonaro para presidir. De qualquer forma, nós agora temos o compromisso de devolver a democracia e o bem-estar social ao nosso povo", disse Lula no plenário do Parlamento Europeu. Ele foi aplaudido de pé pelos eurodeputados social-democratas presentes.

Em falas claramente direcionadas para contrastar com Bolsonaro, Lula ainda se manifestou sobre a importância do multilateralismo, do Mercosul, da preservação do meio ambiente e de manter boas relações com os países da União Europeia. "O povo brasileiro não quer que essa destruição continue. Os brasileiros querem a Amazônia viva e de pé." 

No domingo, Lula se reuniu em Bruxelas com o chefe da pasta da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell.

Agenda cheia na Alemanha

Lula iniciou seu giro europeu por Berlim na semana passada, sendo recebido por vários políticos alemães, com destaque para uma reunião com Olaf Scholz, atual ministro das Finanças da Alemanha e vencedor da eleição legislativa de setembro.

No momento, Scholz lidera as negociações para a formação de uma coalizão de governo que deve tê-lo como chanceler federal.

As conversas envolvem a legenda de Scholz, o Partido Social-Democrata (SPD), o Partido Verde e o Partido Liberal Democrático. O SPD terminou a eleição em primeiro lugar, com 25,7% dos votos. Se as negociações forem bem-sucedidas, Scholz deve ser o sucessor da conservadora Angela Merkel e passar a comandar a maior economia da Europa.

"Estou muito satisfeito com nossas boas discussões e aguardo com expectativa continuar nosso diálogo!", escreveu Scholz no Twitter após o encontro.

Lula e o social-democrata Olaf Scholz. Petista também se encontrou com outras figuras do SPD alemãoFoto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

O encontro e as trocas de gentilezas entre Lula e Scholz contrastam com um recente incidente entre o político social-democrata alemão e o presidente Jair Bolsonaro.

No final de outubro, Scholz foi ignorado por Bolsonaro durante uma reunião do G20, em Roma. Na ocasião, durante uma recepção geral para todos os líderes do G20 presentes, Bolsonaro conversou rapidamente com o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan.

Na mesma roda, estava Olaf Scholz. Bolsonaro, aparentemente não sabendo quem era Scholz, ignorou completamente o alemão e não lhe dirigiu a palavra. Pouco depois, enquanto Bolsonaro reclamava da mídia brasileira e trocava observações banais com Erdogan, Scholz virou as costas e foi falar com o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson.

A indelicadeza não passou despercebida pela imprensa e foi usada como um exemplo do isolamento e do comportamento errático de Bolsonaro durante seu giro pela Itália.

As relações da Alemanha com o Brasil esfriaram consideravelmente desde 2019, especialmente por causa do desmonte de políticas ambientais pelo governo Bolsonaro.

Naquele ano, a chanceler federal Angela Merkel, disse ver com "grande preocupação" a situação no Brasil sob Bolsonaro. Em 2020, o governo alemão ainda admitiu que a cooperação com o governo federal brasileiro em áreas como política ambiental e assistência aos povos indígenas estava sendo cada vez mais difícil.

Ainda em Berlim, Lula também se reuniu com os políticos do partido Die Linke (A Esquerda) Gregor Gysi e Heinz Bierbaum e outras figuras do Partido Social-Democrata de Scholz, como as deputadas Yasmin Fahimi e Isabel Cademartori e Martin Schulz, ex-líder do SPD e ex-presidente do Parlamento Europeu. Schulz, que chegou a concorrer à chancelaria alemã em 2017 mas foi derrotado por Angela Merkel, visitou Lula na prisão em Curitiba em agosto de 2018.

O ex-presidente brasileiro ainda teve encontros em Berlim com figuras do sindicalismo alemão, incluindo Reiner Hoffmann, presidente da influente Confederação Alemã de Sindicatos (DGB) e Christiane Bonner, copresidente do IG Metall, o maior sindicato de trabalhadores da indústria em toda a Europa e que mantém laços com a CUT e Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, entre outros.

A última etapa de Lula na Europa será na Espanha, onde ele deve se reunir com o atual chefe do governo espanhol, Pedro Sánchez.